O Príncipe Tatu

Lima Barreto

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Das notas que andei tomando há anos, de histórias, contos, ditos, crendices de povo, conforme me contavam nos azares dos passeios e dos encontros, guardei uma: “História do Príncipe Tatu”, que nunca vi escrita nem nunca ouvi narrada senão pela pessoa que ma pronunciara pela primeira vez. Foi ela uma senhora da minha vizinhança, a quem já aludi nestas rápidas notas e cujo nome talvez tenha demais vezes citado. Trata-se de D. Minerva Correia da Costa, natural de Valença e residente à rua Piauí, em Todos os Santos, nesta cidade.

É uma história complicada e longa, cheia de peripécias fantásticas e intervenções misteriosas, que não deixa de ter aquele fundo de todos os contos para crianças, de abnegação, de sacrifício primeiro, para afinal obter-se a felicidade completa. Abstenho-me de discutir se essa generalização é segura e se é útil. Não é caso para isso, pois não sou nem folclorista nem educador; mas, infelizmente, o povo parece não dar aos primeiros matéria para que os segundos organizem livros da Carochinha dignos e de acordo com os ideais da nossa atual sociedade. Antes de tudo, porém, convém notar que já dei uma redação minha a essa história do Príncipe Tatu. Publiquei-a, com muitos erros de revisão, numa revista de inferiores do Exército, cujo nome me escapa agora. A publicação foi feita em dois números e ambos perdi-os eu; guardei as notas e agora as colijo da maneira que se segue:

Estando uma vez o rei e a rainha à janela do seu palácio, viram passar um – caçador com . um tatu às costas. A rainha, até então, não tivera a felicidade de dar à luz um filho, e por isso disse para o rei:

— Ah! meu Deus! Vês tu!… Quem me dera ter um filho, mesmo que fosse como aquele tatu!

Os seus desejos foram satisfeitos; e dentro de menos de um ano a rainha veio a ter um filho, que era um tatu perfeito.

Apesar de ser assim, foi ele criado com todos os cuidados de um príncipe e educado e instruído, conforme a sua hierarquia em nascimento.

Tendo crescido e chegado a época própria ao casamento, demonstrou desejo de desposar a filha de um conde, que tinha três.

A moça aceitou o pedido com repugnância e impôs que o seu palácio e residência fosse decorado e guarnecido como se se tratasse de um luto e o casamento se fizesse de preto. A condição foi aceita e assim os esponsais foram realizados. À hora de recolherem-se ao quarto nupcial, o Príncipe Tatu, que já encontrara a mulher no leito, disse:

— Ah! Quiseste que o nosso casamento fosse de luto, pois vais ver! Morre já e já!

Em seguida, estrangulou a mulher, cuja morte foi atribuída a outra qualquer causa, que não a verdadeira.

Ao fim de alguns anos o Príncipe Tatu, que parecia ter esquecido todos os propósitos matrimoniais, mostrou desejos de casar-se com a segunda filha do conde. Houve espanto e mesmo sua mãe quis dissuadi-lo desta sua tenção.

Da mesma forma que a primeira, entendeu a segunda que o casamento fosse feito de luto e as salas do palácio em que ele se realizasse tivessem aspecto funéreo. Aconteceu-lhe a mesma coisa que à primeira noiva.

O príncipe parecia teimar em escolher esposa sempre entre as filhas do conde. Chegou, portanto, a vez da terceira, e esta, que tinha por madrinha uma boa fada, foi avisada de que devia desejar que as cerimônias do casamento fôssem as mais festivas possível. Realizaram-se elas, portanto, com muita pompa e brilho como se fosse o enlace comum de um príncipe normal e uma princesa qualquer.

Quando o Príncipe Tatu entrou nos aposentos conjugais encontrou a mulher com a fisionomia mais natural que se pode imaginar, e que o recebia como um verdadeiro noivo da espécie humana. Muito contente com isto, o Príncipe Tatu retirou o casaco e veio a ser o homem bonito que era, mas que o encantamento fizera animal. A moça ficou exuberante de alegria, e, não satisfeita de saber-lhe o segredo, contou-o à mãe, a rainha.

Sabedora que foi do caso, não pôde a mãe conter a curiosidade e veio ver, certa noite, o príncipe seu filho com a forma humana. Julgando que lhe fizessem bem e viesse ele a ter sempre a forma da nossa espécie, a mãe e mais a sua nora lembraram-se de queimar a casca óssea do tatu na persuasão que, despertando ele e não a encontrando, não pudesse mais retomar as formas do animal que aparentava a todos ser a sua. Tal, porém, não se deu.

Sentindo o cheiro de osso queimado, o príncipe despertou e falou assim dolorosamente:

— Ah! ingrata! Fôste revelar o meu segredo! Faltavam-me só cinco dias para desencantar…

A princesa nada dizia, – só chorava; e o príncipe não a recriminava, mas continuava a falar com muito queixume na voz:

— Agora, se tu me quiseres ver, tens que ir às terras dos Campos Verdes.

Dito isso, sem que ela pudesse perceber como, o Príncipe Tatu sumiu-se dos seus olhos totalmente, completamente.

Passaram-se meses e anos e ela, sempre cheia de saudades, esperava que o seu marido voltasse da mesma forma misteriosa como a que envolvera o seu desaparecimento.

Tal, porém, não se deu. E ela, cheia de saudades, não pôde por mais tempo suportar a ausência do Príncipe Tatu, seu marido de poucos dias. Arrumou a trouxa e, sem norte e sem guia, partiu em procura das tais terras que ninguém sabia em que canto do mundo ficavam. Andou muito, muito e muito por esse mundo de Cristo, e topou afinal com uma casinha, à beira da estrada, junto da qual estava uma velhinha, de grande velhice e largo olhar de bondade.

— Minha velha, – perguntou a princesa, – onde ficam as terras dos Campos Verdes? A velhinha abandonou um instante a renda que estava fazendo sobre a almofada, e respondeu ternamente, com voz macia e pausada:

— Minha netinha, quem deve saber disso é minha filha, a Lua; é ela quem percorre todos os descampados; é ela que nos beija, é ela que nos ama; deve ser, portanto, ela, quem o saberá. Espera, minha netinha, que ela venha, pois não tardará.

Como nas clássicas histórias da Princesa Scheherazade, parece, leitores amigos, que a aurora vem rompendo; devemos por isso interromper a narração para continuá-la na noite seguinte. Deixamos de pôr aqui o habitual “continua” dos romances-folhetins, que os jornais trazem para o gáudio dos seus leitores artísticos, mas sem deixar de contar dentro de uma semana como se chega ao país dos Campos Verdes…

Hoje, 8-5-1919

 

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