Dois Meninos

Lima Barreto

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De há muito queria eu dizer publicamente todo o bem que me merecem o esforço e o ardor intelectual desses dois meninos que se assinam Tasso da Silveira e Andrade Murici.

Motivos de toda ordem me têm impedido; mas hoje, felizmente, posso fazê-lo, se não completa, ao menos com a máxima boa vontade.

Muito moços, tanto assim que eu, não me considerando de todo velho, os posso tratar assim familiarmente, paternalmente, de meninos, estrearam, como toda a gente, com “plaquettes” de versos, nas quais, se não havia remígios, não denunciavam, contudo, quedas irremediáveis.

Eram, como se costuma dizer, os seus cartões de visita, apresentando-os ao complicado mundo das letras.

Daí por diante, cedendo a uma incoercível vocação íntima, lançaram-se à crítica literária, à boa crítica do estudo profundo, simpático, sereno, de autores e de obras. Mostraram essa aptidão aqui e ali, fundaram uma excelente revista – América Latina – que vai prosperando com o vagar com que prosperam essas nobres tentativas entre nos.

Não contentes com isso, publicam, de quando em quando, ensaios sobre autores notáveis, em que se acham, a par de pequenos defeitos próprios à pouca idade dos signatários, qualidades de penetração e discernimento artístico, difíceis de encontrar em inteligências tão moças.

Nossas letras, apesar de não serem ricas em amadores de qualquer ordem, já têm, entretanto, produção suficiente para exigir o estudo isolado, monografias dos seus melhores representantes; e esses estudos devem tentar as jovens inteligências operosas, pois é campo pouco explorado, mas que parece fecundo.

Poucos deles têm merecido esse estudo, José de Alencar, poema de Araripe Júnior; Gonçalves Dias, uma biografia do Sr. Mendes Leal; Castro Alves, ensaios dos Srs. Xavier Marques e Afrânio Peixoto; Machado de Assis, este, por ser assim como herói anônimo da Academia, mereceu diversos, entre os quais avultam o de Alcides Maia e o do Sr. Alfredo Pujol.

Assim, de pronto, não me recordo de outros autores nacionais que tenham sido tomados como objeto de trabalhos especiais sobre as suas vidas e suas obras. Entretanto, isto se me afigura de uma indeclinável necessidade, para bem se aquilatar afinal do valor e do alcance do nosso pensamento total.

Desautorizadamente, julgo eu que nenhuma história da nossa literatura poderá se aproximar da perfeição enquanto não houver de sobra esses estudos parciais dos seus autores. Se não estou de todo esquecido, penso que isto já foi dito não sei por quem.

Pesquisas sobre as suas vidas, os desgostos, suas amizades, seus amores, seus começos, seus estudos, sua correspondência, tudo isso que pode esclarecer o pensamento e a tenção de suas obras, não se concebe possa ser feito por um só autor; e, tendo de julgá-los numa única obra geral, um único erudito, por mais ativo e diligente que seja, há de por força falhar e ser incompleto, se não tiver à mão esses estudos e outras achegas.

Ultimamente, porém, a atividade da nossa critica literária parece ter compreendido isto, pois surgem, de onde em onde, monografias especiais sobre autores de monta e sobre outros assuntos relativos às letras nacionais.

Farias Brito tem merecido diversas, e excelentes, de Jackson de Figueiredo, de Nestor Vítor, de Almeida Magalhães, de Veiga Lima e outros. Creio também que Nestor Vítor escreveu uma sobre Cruz e Sousa – autor que está exigindo justiça dos seus envergonhados admiradores e imitadores.

Agora, aparecem esses dois meninos, Tasso da Silveira e Andrade Murici, em dois desenvolvidos estudos literários, sob todos os aspectos valiosos e dignos de nota.

O de Tasso é um ensaio sobre Romain Rolland. Era este autor pouco conhecido entre nós antes da guerra de 1914. Esse atroz acontecimento pô-lo em foco, devido à atitude de desassombro e independência que tomou, em face da cegueira delirante do patriotismo francês; mas, apesar disso, a sua obra, o Jean Christophe, um longo romance que ele vinha compondo e publicando os volumes lentamente, desde há anos, era já estimada discretamente no seu país e, um pouco, em toda a parte onde se lê francês.

Ainda não tive a ventura de ler nenhum dos volumes, por isso nada posso dizer da justeza dos conceitos que, sobre o Jean Christophe, externa Tasso da Silveira; mas, não vem isso ao caso, porque, ao escrever estas linhas, não é o meu intuito fazer crítica da crítica.

O que me interessa, é verificar a capacidade que tem Tasso, de focar um autor e estudá-lo em todas as suas faces, com os elementos que lhe são fornecidos pela obra do mesmo.

Há de haver, por força, nesse seu estudo de autor francês, lacunas, porquanto a nós, estrangeiros, por mais esforços que façamos, será muito difícil, senão impossível, “sentir” o imponderável da ambiência nacional, histórica, tradicional, feito de uma junção de nadinhas, evanescentes – ambiência, atmosfera que cerca o autor estranho no seu meio natural, penetra por ele todo e perpassa na sua obra.

Essa ambiência sutil nos faz falta, quando, entretanto, é preciso também participar dela, para nos apurarmos com o autor, a fim de julgá-lo perfeitamente, completamente.

Não se dá isso com o trabalho de Murici, que versa sobre o Sr. Emiliano Perneta.

Além de ser conterrâneo desse notável poeta paranaense, Murici foi seu discípulo, sente-se bem, adivinha as obscuridades e justifica as contradições do seu pensamento, ilumina-lhe as sombras; enfim, compreende-o inteiramente.

O seu estudo sobre o autor da Ilusão, pode-se dizer que é definitivo e completo; e, quanto a mim, confesso, fez-me julgar de outra forma o poeta da terra dos pinheirais.

Não me deterei na análise das duas obras, porque acho abolutamente ilógica uma crítica segunda, além do que, não era bem esse, como já disse, o impulso que me fez escrever estas ligeiras e despretensiosas linhas.

O que me alvoroça, é ver que há nesses dois meninos, Tasso da Silveira e Andrade Murici, estofo para realizar os sérios estudos que os nossos autores notáveis estão exigindo sejam feitos, a fim de que não fiquemos nós outros, por uma lamentável incompreensão do pensamento deles, em junção da época em que floresciam, sabendo-se-lhes unicamente os nomes e os títulos dos seus livros.

A Folha, 1-6-1920

 

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