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Há contos e lendas na tradição aborígine que parecem fragmento do Gênesis palpitando na selva.
O sabor que possuem leva-nos a acreditar que, em toda parte, em todos os ângulos da terra, o homem se absorvia na indagação do mistério de sua presença e deliciava-se na busca infrutífera de seu começo. Aqui, como nos Vedas, como no Gênesis, – observa um erudito viajante dos sertões – os casos humanos são resolvidos da mesma forma, isto é: no princípio tudo era felicidade, harmonia, paz de espírito; uma desobediência, uma leviandade, um episódio de amor, uma fruta proibida, trouxe a desgraça e a degradação.
Leia-se, por exemplo, esta curiosa narrativa – Iuá Ipirungaua (princípio da fruta) – que anima de tanto pitoresco, de tanta graça e filosofia, o sábio fabulário neengatu.
Antigamente, quando o mundo principiava, nós éramos como os animais: tal e qual. Comíamos, como eles, caruru, capim, matinhos verdes, ervas rasteiras. Havia mesmo um roçado onde os homens plantavam mato e dele extraíam as folhas verdes. Mas era só. Frutas, flores, mandioca, toda qualidade de coisa que nós hoje em dia comemos, nada, nada existia.
Só o vento, de vez em quando, por esquisita maldade, espalhava na terra um cheiro bom e provocante de fruta. Todo aquele que cheirava, queria logo comer. Outros acordavam como doidos e corriam na direção do cheiro. Então o vento brincava dum lado para outro, enganando a gente. E os homens ficavam sem saber o que é que fazia aquele aroma gostoso, porque quando chegavam a um certo lugar perfumado, logo o aroma sumia para outro canto.
Não era só gente que procurava donde vinha o cheiro cobiçado; os animais também procuravam.
Contam que, em certo ponto, havia uma roça nova e que bicho andava devastando.
O dono da roça começou a vigiá-la.
Um dia, bem de manhãzinha, ele viu um guabiru ir para o meio da roça e começar a comer as plantas. Mais que depressa correu e agarrou o guabiru; logo o cheiro bom lhe chegou ao nariz.
– Será tu que estás comendo minha roça? – perguntou o dono irado. Eu te mato agora para não me desgraçares.
Nisto sentiu mais forte o cheiro bom chegar-lhe ao nariz. E logo mudou de atitude, propondo ao guabiru:
– Olha se me contares onde está a árvore em que comes, eu não te mato, eu te pouparei. E poderás voltar, quando bem quiseres, à minha roça.
O guabiru, dizem, respondeu:
– Pois sim! Vamos até à beirada do rio. Aí encontrarás a fruteira grande onde estão as comidas boas.
Foram juntos até perto da cachoeira do Uaracapuri, no Alto Buopé, e o guabiru, então, disse:
– Vês aquela grande árvore? Está cheia, está repleta de frutas boas que só o acutipuru aproveita. Cheira e depois comes, para veres como o acutipuru está devorando o nosso alimento, aquilo que nos pertence.
O homem correu para casa, anunciando a nova.
Toda gente se juntou para derrubar a grande árvore, a fim de que o acutipuru não acabasse com os frutos.
E, quando já os machados abatiam o tronco, ouviu-se uma voz de Uansquém, dono da árvore, que dizia irritado:
– Quem foi o tolo que indicou a utilidade desta fruta? Isto ainda não está maduro. Deixa estar! Eu hei de saber quem foi o mal-ouvido.
E foi para debaixo da árvore, aí encontrou casca de mandioca, e nesse casca viu o caminho do dente do acutipuru.
E logo disse:
– Ah! És tu que não me respeitas! Tu anoiteces em cima da árvore, hás de amanhecer embaixo dela.
Meteu imediatamente a flecha na zarabatana e procurou o acutipuru entre os ramos.
Fazia um luar que era um dia.
Uansquém apontou a flecha para cima do galho e logo depois o bichinho vinha ao chão.
E, caindo, afundou a pedra onde seu corpo bateu.
Então Uansquém disse:
– Tu, grande tolo, estragaste as frutas para todos. Deixa estar! Tua espécie e essas gentes hão de ter fome um dia e só então hão de ver que eles próprios se desgraçaram por suas mãos.
E desapareceu.
Com a madrugada que raiava, toda gente veio para perto da árvore e ali ficou por umas mãos de lua, até que o tronco desabasse. Assim que ele caiu, os homens se precipitaram para tirar as frutas: mandioca, batata, cará, abiu, cucura. Os pássaros também vieram e começaram a beliscar o bacaba, o açaí, o muriti, o inajá, e patauá, o carana. Depois, os outros animais tiraram uxi, cumaru, o resto que havia. No fim de tudo ainda apareceu o tapir, que só encontrou macucu e somente levou macucu.
E assim foi que o avô do acutipuru conseguiu estragar a nossa existência e o nosso pomar.
Se não fosse ele, teríamos sempre frutas boas, frutas doces e fáceis.
Porque todas haviam de amadurecer e, então, Uansquém, que era bom e puro, as faria aparecer e nós não sofreríamos agora, trabalhando e fazendo roça.
Mas o acutipuru meteu-se no meio; e o resultado, já se sabe, foi estragar as frutas que nos deviam ser oferecidas amavelmente, com o tempo.
Assim foi que se inutilizou o nosso destino e principiaram os nossos trabalhos.
Tal e qual como no caso de Adão e Eva.
Fonte: ifolclore.vilabol.uol.com.br