Escultura Moderna

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Escultura Moderna é geralmente considerado como tendo começado com a obra de Auguste Rodin, que é visto como o progenitor da moderna escultura.

Escultura Moderna surgiu em simbiose com as tendências artísticas semelhantes em pintura, desenho e gravura na Europa durante os anos de 1800, durando até por volta de 1950.

Embora haja alguma discordância entre os estudiosos sobre o período de tempo exato e definição do termo, pode-se dizer que os movimentos artísticos modernistas compartilham um traço comum de romper com os ideais do passado.

Normalmente, os artistas modernistas estavam preocupados com a representação de questões contemporâneas em oposição aos grandes temas históricos e alegóricas anteriormente favorecidas na arte.

O movimento realista da década de 1850 foi muitas vezes considerado o início da pintura moderna, enquanto a obra de Rodin é visto como o progenitor da escultura moderna.

Escultura Moderna – História

A estrutura de análise das leituras de obras desenvolvidas no presente trabalho dividiu-se em três grandes percursos pela história da arte moderna e contemporânea: o primeiro itinerário aborda trabalhos da arte produzidos na passagem do século XIX ao XX, passando pelas experiências de vanguarda até meados de 1960; o segundo itinerário trata de uma produção específica, circunscrita no âmbito das discussões de site specificity e as novas atuações da arte em espaços abertos na cidade; o terceiro, com preocupação semelhante ao anterior, busca analisar de perto algumas obras que se ocuparam da noção de “arte ambiental”.

A estruturação das análises também buscou construir-se por uma alusão espacial conceitual. É nesse sentido que se optou por usar o termo “itinerário” em vez da nomenclatura mais comumente empregada “capítulo”, já que o primeiro traduz a idéia de um percurso específico, que implica necessariamente uma escolha pela qual se deixou de lado uma diversidade de outras abordagens da história, sublinhando um recorte deliberado no interior das produções moderna e contemporânea.

Escultura Moderna
Wassily Kandinsky
Primeira aquarela abstrata, 1910

Sem se ater a um critério cronológico fechado, o primeiro itinerário preocupou-se em discutir algumas questões precipitadas na modernidade da primeira metade do século XX (principalmente nos movimentos de vanguarda), com especial interesse sobre as manifestações espaciais sucedidas de um parentesco escultórico pressuposto.

O exame dessas obras tem como propósito investigar uma possível instância de ruptura precedente nos processos instaurados já no interior da produção moderna; e verificar a hipótese de que as origens históricas dessas manifestações foram respostas à crise da tradição moderna, cujas operações buscaram aproximar a arte à esfera da vida.

Embora marcadas pelo legado da modernidade, elas sugeririam questões que continuam a mobilizar o debate contemporâneo.

Os movimentos de vanguarda reivindicaram a redefinição da prática da arte em face das mudanças geradas na vida social a partir da ascensão da sociedade industrial.

Vários exemplos ecoam como evidências desse processo: as colagens cubistas, o ready-made duchampiano; e, mais à frente, a redefinição da pintura pela action painting norte-americana, que almejava projetar-se cada vez mais diretamente no espaço.

A dissertação buscou aproximar-se dos impasses engendrados na arte moderna a partir da idéia de “crise da forma” formulada por Giulio Carlo Argan. Para este, a crise engendrou-se no interior da sociedade industrial, onde a nova lógica da produção em série pôs em xeque as técnicas artesanais, fundamentadas no trabalho individual.

Em decorrência, a tradição do fazer artístico foi pouco a pouco substituída por uma metodologia projetiva e a arte viu-se, então, isolada de todo o conjunto de atividades práticas da sociedade, às quais estava ligada no passado. O objeto estético já não existe mais em si; mas, torna-se estético ao seguir a lógica da substituição do objeto industrial (sinônimo da lógica do consumo), tais como a arquitetura e o desenho industrial.

A crise da forma também corresponderia à crise da representação na arte. Já em 1911, a “Primeira Aquarela Abstrata” de Wassily Kandinsky (1866-1944) dava sinais de uma determinação da forma artística pela vontade interior do sujeito.

Em Kandinsky, a recusa à representação se enunciava como parte do processo intelectivo próprio da arte: a opção pelo uso de signos geométricos em vez das formas representativas do espaço veiculava códigos comuns que viabilizavam a comunicação em nível intelectual.

A invenção cubista das colagens também aparece para Argan como renovação do status da arte: a novidade de sua estrutura, que agrega fragmentos de objetos ordinários à superfície do quadro, aproximou o espaço do quadro ao espaço real, cotidiano e reconhecível.

É como se o arranjo estrutural da pintura passasse a configurar uma operação de demonstração da existência própria da obra de arte. A partir daí, a arte apresentava-se não mais como representação da realidade, mas realidade em si, posta no mundo e percebida por meio de uma operação ativa.

Escultura Moderna
Marcel Duchamp
Porta-garrafas, 1914.

Uma reavaliação da modernidade do século XX também evidencia as operações antiartísticas de Marcel Duchamp (1887-1968) como arautos da crise da representação e do próprio valor da arte. O ano de 1913 é, para o historiador Thomas McEvilley, o divisor de águas da produção do artista. Até então, Duchamp seguia lado a lado com as invenções construtivas dos cubistas e futuristas que, por mais inovadoras que fossem, ainda procediam segundo qualidades modernas – com ênfase no pictórico, na artesanalidade e na autoria.

O abandono dos procedimentos modernos veio com a formulação de uma prática fundada na indiferença, cujo emprego de elementos lingüísticos substituiu a hegemonia dos elementos ópticos do modernismo.

Os ready-mades duchampianos , longe de definirem-se como objetos cotidianos de qualidades “potencialmente” estéticas, impuseram seu caráter antiestético (de antiarte): “a escolha dos ready-mades sempre é baseada na indiferença e, ao mesmo tempo, na total ausência do bom ou mau gosto”.

Quanto aos domínios da tradição moderna da escultura, as análises de Krauss serviram de fio condutor à compreensão das mudanças ocorridas nesta linguagem e nas práticas artísticas a ela correlacionadas. Tal como Argan, Krauss situa o princípio de uma crise na emergência da sociedade moderna, burguesa, momento em que a idéia de escultura como categoria universal entra em colapso.

Os novos contornos foram identificados como uma exigência das vanguardas de se operar a escultura como uma categoria construída historicamente – o que significa dizer que para elas a categoria funcionara até o momento em que seu caráter histórico serviu como representação comemorativa. A lógica da escultura, como deveria ser vista, é inseparável da lógica do monumento. Por virtude dessa lógica, uma escultura é uma representação comemorativa.

É implantada em um local particular e sua linguagem simbólica discursa sobre o significado ou uso daquele local.

Além disso, a categoria monumento conteria uma espécie de caráter alegórico, aspecto tratado por Argan ao discutir a tradição barroca do monumento, uma vez que este materializa, na unidade plástica e arquitetônica, um discurso demonstrativo de valores históricos e ideológicos, representados pela figuração, cuja função seria a da retórica e da persuasão.

Tanto é assim que seu fundamento emerge na cultura renascentista, na qual servia à implantação de um estado absoluto, da cidade-capital, implantada como edificação expressiva no “núcleo de máximo prestígio no tecido urbano”.

O caráter simbólico contido na idéia de monumento também diz respeito à tradição naturalista da escultura. Krauss aponta que, dentro dessa tradição, a escultura conteria um grau de interioridade determinado segundo uma lógica compositiva (de relação entre as partes) e sua existência simbólica equivalente. Para ela, a crise da representação na escultura também significou a emancipação da forma em relação a essa interioridade; por sua vez, os indícios de uma “exteriorização” foram promovidos principalmente pelas obras de Auguste Rodin (1840-1917), Constantin Brancusi (1876-1957) e novamente Duchamp.

Escultura Moderna
Constantin Brancusi
O princípio do mundo, 1924.

Exemplo disso é a obra de Brancusi “O princípio do mundo” (1924): uma forma elipsóide em bronze polido posicionada de tal modo inclinada que nos remeteria à presença de um “ovo”. Sua superfície reflexiva é interpretada pela crítica norte-americana como qualidade que remeteria à condição de exterioridade da escultura em relação à percepção do observador.

A apreensão da escultura não se dá mais pela contemplação, incapaz de analisar suas relações internas. Ao contrário, a forma polida nos convidaria a reconhecer o modo específico como o material se insere no mundo (no caso, como uma superfície reflexiva se relaciona com o entorno) e, por extensão, no espaço real, do sujeito.

Seguindo seus estudos sobre os desdobramentos da tradição escultórica no século XX, Krauss reclamou a insuficiência da noção moderna para explicar grande parte dos trabalhos surgidos entre as décadas de 1960 e 1970, idéia central publicada no artigo “Sculpture in the Expanded Field” em 1978: “pensávamos usar uma categoria universal para autenticar um grupo de particularidades, mas a categoria vem sendo agora forçada a dar conta de uma tal heterogeneidade que se encontra, ela mesma, em perigo de colapsar”

O ápice da crise foi localizado pela autora na produção da minimal art. Suas considerações acerca da escultura minimalista – comumente entendida como trabalho “literalista”, apontam o uso de formas aparentemente idênticas e dispostas seqüencialmente com o mesmo artifício que as diferencia. Tal diferenciação se dá pela exterioridade das formas – feitas com materiais industriais lisos e/ou reflexivos – à medida que se colocam em relação ao sujeito, o que para Krauss era o fator de renovação da idéia a priori que o observador poderia ter do objeto e de si mesmo.

Os deslocamentos daí decorrentes são de diversas naturezas: a negação da natureza simbólica da arte; a crítica à autoridade do artista cujo gesto seria expressão de uma “psicologia” pessoal; a transferência da qualidade perceptiva da obra, de uma posição contemplativa de mundo a uma consciência fenomenológica da obra e de sua própria existência; a “temporalidade estendida” da obra, que para alguns autores será entendida como sua condição cênica; entre outros.

Diante da noção alargada das atuações artísticas, o itinerário segue na discussão acerca do confinamento do objeto de arte aos espaços institucionalizados e ao mercado. Sob esse ponto de vista, examina as novas práticas dos site specific works, as necessidades latentes que impulsionaram práticas de deslocamento e ruptura, novas estratégias de ação para além dos limites institucionais do meio.

O clima efervescente da década foi marcado, entre outras coisas, pelo reposicionamento do observador perante a obra, como ocorreu no Minimalismo, pela radicalidade da nova materialidade da Arte Povera e pelos experimentalismos de grupos já citados anteriormente (neoconcreto, Fluxus e situacionistas).

A arte minimalista reintroduziu o problema da especificidade do lugar na arte, contribuindo para o enfrentamento da autonomia da escultura moderna desenvolvida no decorrer da primeira metade do séc. XX. É no esteio dessa produção que se verifica o que a crítica norte-americana Miwon Kwon denominou como primeira ocorrência da poética do site specificity.

Durante a pesquisa, as considerações sobre os vínculos entre obra e lugar e suas transformações a partir de 1960 traçadas por Kwon no livro One Place After Another: Site-specific Art and Locational Identity apresentaram-se como alicerce para a compreensão de uma genealogia do site specific work.

Freqüentemente, trabalhando com a noção de gravidade, os trabalhos eram obstinados pela idéia de ‘presença’, mesmo se fossem materialmente efêmeros, e inflexível sobre sua imobilidade, mesmo diante de um suposto desaparecimento ou destruição.

Inicialmente, quer dentro do cubo branco ou fora, no deserto de Nevada, quer orientada pela arquitetura ou pela paisagem, tomou o lugar como um local real, uma realidade tangível, cuja identidade era uma combinação única de elementos físicos: peso, profundidade, altura, textura e forma de paredes e salas; escala e proporção de praças, edifícios ou parques; condições existentes de iluminação, ventilação e padrões de tráfego; aspectos topográficos distintos, entre outros.

Nessas práticas, o pressuposto em se trabalhar com os dados circunstanciais do lugar implica diferentes abordagens quanto aos propósitos de aproximação, o que pode ser resumido grosso modo ao que Rosalyn Deutsche distinguiu entre um modelo assimilativo – no qual a obra de arte se ajusta à paisagem existente por integração, produzindo um espaço unificado e “harmonioso”; e um modelo interruptor – em que a obra intervém criticamente na ordem existente de um lugar por meio de algum tipo de fratura.

Veremos mais adiante que tais práticas artísticas abriram um extenso debate, alimentado pela crítica especializada: a partir dos anos de 1970, os escritos combativos basearam-se na teses do enrijecimento da poética do site specificity como poética inseparável do lugar – fundada como contraposição à perda do lugar pela escultura moderna.

Uma vez conhecida a genealogia do site specificity desenvolvida por Kwon – sem perder de vista que as análises dedicaram-se prioritariamente ao contexto norte-americano – a dissertação toma a genealogia de exemplo para esboçar uma das preocupações fundamentais da pesquisa: a formulação de um itinerário que mapeasse algumas práticas artísticas que se dirigem ao enfrentamento das contingências do local e que variam desde sua dimensão espaço-temporal até seus contextos institucionais, culturais e/ou sociais.

Ao longo do século XX, a arte se viu desafiada pela nova sociabilidade, cuja dinâmica reagia às tendências funcionais da ordenação da vida urbana (a perda da identidade dos espaços da cidade), às novas tecnologias oferecidas pela ciência e pela indústria (mobilidade e virtualidade), aos conflitos morais acirrados nos anos de guerra, ao reposicionamento do sujeito frente ao conhecimento de si próprio, à exacerbação do aparato visual e informacional da cultura de massa, dentre outros fenômenos.

Ao referir-se aos novos desígnios da sociedade de massa e da cultura urbana, surgidos em meados da década de 1960, Walter Zanini29 aponta uma reordenação realista do mundo como sua correspondência na arte, a qual absorvia seus conteúdos simbólicos. “Houve efetivamente uma ruptura com as atitudes exclusivamente formalistas, na busca de vínculos imediatos com a existência ao redor”30.

Podemos dizer que a identificação de uma ruptura por Zanini equivaleria à crise da noção de “objeto” na arte, apreendida por alguns críticos como sua “desmaterialização”, e que viria a aparecer nas novas poéticas do specific object, não-objeto, site specific work, ambientes, instalações, environmental art, arte conceitual, happening e body art, entre outras.

O segundo itinerário desta dissertação parte da perspectiva de enfrentamento dessa nova “situação urbana”, ao tratar da produção artística surgida no espírito da contra-cultura que reivindicava a restauração dos vínculos entre arte e vida, remontando à herança moderna – tanto aquela provinda da tradição construtiva do cubismo como aquela que se originou na “desconstrução” do ready-made duchampiano.

Dentro desse conjunto, o itinerário procurou circunscrever os interesses pelos novos vínculos entre a prática artística e as experiências cotidianas que aspiravam a uma intervenção no espaço social da cidade. Podemos citar aqui as proposições ambientais do Neoconcretismo, as estratégias de atuações do Situacionismo sobre o território urbano e os acontecimentos experimentais do grupo Fluxus, entre tantas outras manifestações de vanguarda da época.

Naquele momento, o entendimento do que seria o “espaço social” se dava de modos distintos. Dentro do movimento neoconcreto, figuras como Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica exerceram importante papel na direção de uma aproximação entre arte e público.

Ao buscar compreender as nuanças construtivas do Neoconcretismo – em oposição à objetividade dos concretistas (que tinha o homem como agente social e econômico), Ronaldo Brito identifica na ruptura “neo” uma tendência que “repunha a colocação do homem como ser no mundo e [que] pretendia pensar a arte nesse contexto”31, resgatando a noção de subjetividade. Menos “profissionais de arte” e mais “homens da cultura”, como escreve o autor.

Para os situacionistas, o reconhecimento do espaço social se dava essencialmente em termos políticos, sob o qual propunham um urbanismo revolucionário32 que questionava, por um lado, o cotidiano enrijecido pelo espaço funcional de uma sociedade utilitarista; e, por outro, a cultura aderida aos dirigismos do mercado e do espetáculo. Sob influência das atuações dada, fundadas numa estética da negação e do “choque”, o situacionismo reivindicava uma postura transgressora e libertária nesse espaço social, cujo alcance só era possível por meio da “construção de situações”, ou seja, da “construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior”

Não à toa, a essência do programa situacionista era a crença no poder do transitório. As situações se davam como lugares de passagens, e os indivíduos se colocavam nelas não mais como espectadores, mas como “vivenciadores”, propriamente atuantes.

Esse novo modo de comportamento seria possível pela prática da deriva, método experimental de se caminhar pela cidade de forma distraída, sem rumo, subvertendo os trajetos fixados pela modernidade e se deixando surpreender pelo acaso/aleatório.

Uma das experiências de deriva encontra-se na proposição de Constant Nieuwenhuys (1920-2005), “New Babylon” , projeto que desenvolveu entre 1956 e 1974. Sob forma labiríntica, o artista recorre às estratégias de desorientação e jogo a fim de favorecer o desenvolvimento de uma sociedade lúdica, livre, em constante mutação34.

O que corresponderia à negação de todo e qualquer princípio orientador da cidade (uma situação de anti-cidade). No espírito situacionista, o meio ambiente urbano era o terreno de um jogo em participação, o espaço social em modificação contínua.

Tanto quanto os situacionistas, as atividades do grupo Fluxus também retomaram o espírito de negação e ironia do dadaísmo na intenção de romper com a separação entre arte e não-arte. Definia-se menos como um movimento artístico, e mais como uma atitude diante dos acontecimentos da vida e da cultura, ao “transformar as coisas da vida e do homem, aparentemente indignas da arte, em objetos de arte”35.

Suas proposições eram concebidas em grande parte sob a forma de happenings, formato que possibilitava convocar o público a participar de uma diversidade de linguagens, reunindo artistas, músicos e poetas sob a égide de uma “arte total”. Segundo Vostell, a forma do happening era a própria “consagração da vida (…) pode[ndo], naturalmente, ser uma tomada de consciência para a crítica, por meio de uma série de elementos, pelo atraso, pela frustração, pelo luto, pela alegria, evidentemente variável. Mas, no fundo, visa revalorizar a vida, não degradá-la, e por isso constitui-se numa contribuição humanista.”

Dentro de uma vertente importante que pressupõe o alargamento da noção de escultura e que contribuíram para o debate sobre as novas atuações da arte na cidade, a pesquisa elegeu como foco a ser analisado no segundo itinerário o trabalho do artista José Resende, com especial interesse sobre aqueles que trataram de enfrentar mais diretamente a cidade como meio e como suporte, dentre os quais temos: as esculturas em espaços públicos abertos, O Passante (1994, no Largo da Carioca) e Sem título (1979, na Praça da Sé); as proposições temporárias para o evento do ArteCidade de 1994 e 2001; e o trabalho para a Bienal de Sidney, em 1998.

De algum modo apresentando em contraposição a essa produção, o itinerário também se aproximou de trabalhos emblemáticos do artista norte-americano Richard Serra (1939-) que se endereçam à cidade, tais como: “To Encircle Base Plate Hexagram”, 1971; Tilted Arc, de 1981; e a série dos Props.

No terceiro itinerário, as análises terão como ponto de partida a série Magic Square, de Hélio Oiticica, artista que, no contexto brasileiro, teve importância decisiva no advento de uma escala ambiental. A série – que integra um grupo maior de trabalhos, intitulados Penetráveis – é abordada com interesse especial, pois serve como exemplo paradigmático de proposições artísticas que, entre os anos de 1960 e 1970, romperam definitivamente com o estatuto do objeto artístico, de representação e de contemplação na arte e projetaram (literalmente, pois foram realizadas como maquete, jamais executadas pelo artista em vida) uma vontade artística de atuação imersa no tecido social, que pressupunha o deslocamento do objeto para uma situação social urbana ativa.

A partir das formulações do Programa Ambiental37 de Hélio Oiticica, a dissertação recupera o significado do termo “ambiental” para designar aqueles trabalhos que lidaram com aspectos sociais e culturais da cidade como pressupostos de uma atuação ampliada da arte, e cuja manifestação se dava na experiência espaço-temporal, manifesta no embate com o fruidor.

As proposições ambientais de Oiticica promoveram um novo espectador, agora participante, fundamental para o acontecimento estético na experiência de duração da obra (espaço-temporal), presença que restabelece o antigo sonho dos modernos, da integração arte-vida, a partir não mais do projeto utópico da totalidade, mas da experiência real de enfrentamento do cotidiano das grandes cidades.

Para Celso Favaretto, desde a invenção dos bólides – definidos pelo crítico como “objetos-penetráveis” sob a forma de caixas de madeira, vidro, plástico ou cimento, sacos de pano e de plástico, latas, bacias, que continham pigmentos puros de cor para serem manipulados pelo espectador – “o corpo já é ativo, mesmo que não toque na obra” 39; a experiência pode não modificar o próprio objeto, mas modifica o sujeito pela experiência no tempo – experiência de duração na obra. Eles preparam a passagem para a “anti-arte ambiental” (termo do próprio artista).

As manifestações ambientais foram inauguradas com os Núcleos e os Penetráveis. Nelas, o espectador deveria deslocar-se da sua condição habitual, passiva, e projetar-se no trabalho como participante e ativador da qualidade estética deste, fazendo da obra uma vivência. As novas proposições ampliaram o campo de percepção do objeto artístico, ao mesmo tempo em que pressupunham a constituição da subjetividade na esfera da cultura, colocando-os frente a frente no embate cultural com a nova sociedade de consumo.

Os trabalhos projetavam-se no espaço social da cidade, no que Oiticica definiu como uma interdependência entre a “temporalidade estética” e a “temporalidade do cotidiano”40. Os Penetráveis confrontavam diversos lugares públicos, abertos, e questionavam a rotina do pedestre promovendo um jogo entre previsível e imprevisível, entre a experiência estética e a sociabilidade da cidade.

As novas proposições, concebidas a partir da matriz construtiva de Mondrian, célebre defensor da instauração do binômio arte-vida, buscaram, a um só tempo, reintegrar o objeto artístico na esfera da vida imprimindo uma dimensão emancipatória para a arte.

Escultura Moderna
Donald Judd
Untitled, 1969.
10 peças de aço inoxidável e acrílico azul, 50,5 x 122 x 122 cm.
Col. Judd Foundation.

Quando da emergência das manifestações ambientais de Oiticica, o espírito da época sinalizava um deslocamento dos interesses estéticos a espaços extra-institucionais, onde o ambiente sócio-cultural mobilizava mais diretamente o processo criativo do artista, o qual se via comprometido culturalmente com aquele.

Outras ocorrências que correspondem a tal espírito e que levaram alguns artistas a atuarem mais decisivamente no meio – incorporando os processos do fazer como trabalho de arte, assim como o contexto pressuposto e o sujeito do diálogo – também aludiram às noções de “arte ambiental”: é o caso da environmental art, tratada por Allan Kaprow e das experiências do non-sitede Robert Smithson.41

O texto “The Legacy of Jackson Pollock”, escrito por Kaprow em 1958 já apontava um deslocamento fundamental na produção artística – especialmente aquela elaborada nos domínios da pintura modernista – em termos de forma, escala e espaço.

O movimento decisivo para tal ruptura, segundo Kaprow, verificou-se nas atuações do artista norte-americano Jackson Pollock ao final da década de 1950. Suas drip paintings, concebidas nas dimensões de uma pintura-mural, prenunciaram a substituição da pintura pelos chamados ambientes (environments), ao alcançarem a dimensão do observador e invadirem o espaço do entorno42. Diante delas, o espectador refaria sua própria dimensão e a consciência de sua existência temporal.

Podemos dizer que as novas acepções de forma, escala e lugar, apontadas por Kaprow já no final da década de 1950, são levadas a cabo pela produção norte-americana subseqüente: a evidência de uma experiência fenomenológica43 na minimal art tratou de abordar o objeto de arte como um fato artístico presente franqueado à experiência temporal do sujeito.

Não por acaso as proposições tridimensionais foram mais recorrentes e assentaram-se no interesse pela dimensão espaço-temporal da obra. Os objetos específicos de Donald Judd (1928-1994), tridimensionais por princípio, tomaram o problema do espaço não mais como representação; no confronto com o ilusionismo, a tridimensionalidade é ela mesma espaço real – atual e específico.44 Quando da ocorrência de trabalhos bidimensionais, estes geralmente eram concebidos sob algum aspecto que reverberava no entorno imediato, seja pela escala de uma pintura-mural, como nos trabalhos de Sol LeWitt, seja no uso que se fazia da cor-luz, como nas instalações de luz fluorescente de Dan Flavin.

Os escritos de Hal Foster buscam contra-argumentar a aparência idealista da minimal art encabeçada pela crítica de Michel Fried ao apontar a escultura minimalista como tentativa de superar o dualismo sujeitoobjeto pela experiência fenomenológica ao dificultar a concepção de pureza em detrimento da contingência da percepção – do corpo num espaço e tempo particulares.45

Com o minimalismo a escultura não está mais isolada, sobre um pedestal ou como arte pura, mas é reposicionada dentre objetos e redefinida em termos de sua localização. Nessa transformação, recusado o espaço seguro e soberano, o observador é remetido ao aqui e agora; e ao invés de examinar a superfície de um trabalho para um mapeamento topográfico das propriedades do seu meio, é levado a explorar as conseqüências perceptivas de uma intervenção em particular num dado lugar. Esta é a reorientação fundamental inaugurada pelo minimalismo.

De par com a produção da minimal art, as mudanças de paradigma verificadas em princípios de 1960 também brotavam das novas acepções promovidas pela Arte Povera. É o que Margit Rowell tenta recuperar na emblemática exposição “Qu’est-ce que la sculpture moderne?”, realizada no Centro Georges Pompidou em Paris, em 1986.

De acordo com a curadoria, tanto os minimalistas quanto os artistas da povera abandonam a iconografia antropomórfica – que regia até pouco tempo a linguagem escultórica – em favor de uma nova dimensão, que Rowell entende como “escala de paisagem”. Segundo ela, tal dimensão se mostrara indispensável para o tipo de interação ou de confronto direto que eles queriam provocar dentro do espaço existencial; o que, imediatamente, convocaria à participação do espectador na obra.

1969 aparece como ano decisivo para o movimento povero. Neste ano, o crítico Germano Celant organizou uma publicação que reunia em tom programático uma diversidade de trabalhos, proposições, manifestações e ações – visuais e discursivas – em torno da valorização de seu caráter empírico.

Enunciavam-se os principais afrontamentos do grupo diante do sistema de arte vigente: a descrença total e absoluta na idéia de arte como mercadoria cultural e, por extensão, a destruição da função social do artista (produtor cultural); a crítica à crença na idéia de arte como valores antecipados; e a postura diametralmente oposta àquela produção que se identifica com um sistema racionalista, dito alienante, e àquela pautada por uma operação representacional da vida.

Os dois movimentos, minimal e povera, apontavam para uma valorização da experiência que se oferece como operação contingencial, cujos trabalhos seriam um testemunho memorial e físico dessa experiência – dentro do universo dos fenômenos. Porém, Celant afirmava que o artista povero valorizava a ativação e circulação da energia vital, natural, do mundo das coisas, do cotidiano; e, por meio disso, redescobrira o interesse por si próprio, colocando-se com total disponibilidade para o mundo, sem restrições. Seu objetivo não era representar a vida, apenas vivê-la, senti-la. “O importante não é a vida, mas as condições nas quais vida, trabalho e ação se desenvolvem”.49

Esses são alguns pontos de partida que se mostraram caros para a pesquisa empreendida ao longo da dissertação que buscou examinar em especial a produção que desde os anos de 1960 problematizou a tradição da escultura, projetando o campo da arte para muito além dos gêneros artísticos fixados pela tradição clássica.

O percurso por esses trabalhos de arte buscou traçar um campo de interesse comum à produção contemporânea em geral, ao delimitar os contornos de uma “escala ambiental” pressuposta em tais práticas artísticas.

Finalmente, a fim de alimentar as discussões tratadas ao longo dos capítulos, a dissertação apresentará como anexo uma entrevista com o artista José Resende, realizada em janeiro de 2006 e cronologia em cd-rom que abrange o contexto das produções de Resende e Oiticica, especialmente aquelas tratadas nos itinerários 2 e 3, partindo-se da década de 1960.

Fruto da acumulação e da organização informacional nos três anos de pesquisa – quer das investigações sobre as poéticas tratadas aqui, quer dos levantamentos iconográficos da obra dos artistas abordados no itinerário 2 e 3, esta dissertação tem a intenção de apresentar uma possível formalização visual que traduza os cruzamentos entre as produções locais e as possibilidades de conexão entre diferentes tempos históricos para a produção da arte.

Esse tipo de “navegação” da história só foi possível aqui por meio de um instrumento visual simultâneo, como nos oferece a mídia do cd-rom.

A crise da forma: a ruptura com a tradição escultórica e o advento de um “campo ampliado”

Como já enunciado na introdução, os interesses que moveram a presente pesquisa nasceram de uma vontade em se investigar os desdobramentos da linguagem escultórica a partir dos anos de 1960, privilegiando o exame de algumas manifestações exemplares ligadas à poética do site specificity e às manifestações ambientais no confronto com o meio urbano.

Para tanto, este primeiro itinerário percorre algumas obras produzidas na modernidade do século XX, considerando ainda certos exemplos da transição ao final do século anterior; tem como propósito apontar as origens possíveis da ruptura na condição moderna da escultura, ruptura encetada, principalmente, no contexto industrial de guerra pelas vanguardas (à exemplo das colagem cubistas e do ready-made duchampiano).

O trabalho discutirá o colapso da forma vivido desde os primeiros movimentos de vanguarda, que reivindicaram a redefinição da prática da arte em face das mudanças profundas geradas na vida social a partir do advento da sociedade industrial, e examinará como os desdobramentos da própria pintura levariam a produção artística a emancipar-se cada vez mais para o espaço.

Busca entender, mais adiante, como os desdobramentos da escultura conduziriam, entre outras coisas, às experimentações radicais produzidas entre 1960 e 1970, momento em que a crença moderna em uma utopia social transformadora encontrava-se enrijecida (principalmente na ordenação planificadora da vida urbana do pósguerra) 52, ao mesmo tempo em que cresciam as adesões a uma lógica de consumo massificante e individualista.

Veremos como a amplificação das atuações do trabalho de arte nos idos de 1960 (cujos contornos não seriam possíveis doravante determinar) – com um olhar atento aos “trabalhos espaciais” da arte contemporânea (happenings, performances, site specific works, instalações) – significou a reintegração do objeto artístico na esfera da vida, ou mesmo a sua desintegração nesta, a caminho de uma dimensão experimental e libertária.

Como já mencionado anteriormente, a dissertação elegeu como questão paradigmática desse processo o aparecimento da necessidade de uma “escala ambiental”.

As proposições ambientais contribuíram para ampliar o campo perceptivo do objeto artístico, ao coloca-lo frente a frente, no embate cultural, com a nova sociedade de consumo: o espectador deveria deslocar-se da sua condição habitual, passiva, e projetar-se no trabalho como participante e ativador da qualidade estética deste, fazendo da obra uma vivência.

Apesar da crítica à atitude contemplativa ter sido “marca registrada” das vanguardas do início do século XX, naquele momento ela se opunha ao tipo de experiência distanciada em termos físicos e intelectivos, onde o mundo da arte era claramente separado do mundo da vida, combatendo os artifícios da moldura na pintura e da base na escultura. Já nos anos de 1960, essa reivindicação se dá na qualidade mesma da experiência como uma atividade criadora do próprio sujeito, pressupondo uma experiência física (ao envolver o dado do corpo) e cognitiva, em termos de uma apreensão intelectual.

O que analisaremos a seguir é de que modo a “escultura” contemporânea – ou melhor, alguns trabalhos produzidos a partir da década de 1960 que derivam de uma raiz escultórica – parece ter colocado em crise o paradigma moderno da forma53.

E de que modo elas passam a se estabelecer como proposições artísticas em novo espectro, ampliado, que se oferecem ao enfrentamento do espaço da cidade e suas contradições, incitadas direta ou indiretamente pela nova dinâmica do consumo na escala das massas.

A reivindicação mais presente no pensamento artístico nas duas primeiras décadas do século passado foi a de buscar irradiar-se e assim dissolver-se na esfera da vida, para o que seria preciso problematizar os vínculos da arte com a produção industrial, sua imbricação com a nova economia; seja repondo esses vínculos em novos termos seja contestando qualquer assimilação da arte à moderna sociedade capitalista, burguesa e industrial.

Ao que parece, a edificação de uma sociedade industrial correspondeu ao momento histórico de crise de uma cultura artística arraigada num estilo de vida apartado em relação ao mundo da arte. Podemos verificar nesse ambiente boa parte das transformações sofridas na produção da arte moderna.

Remontando novamente à Argan, a crise da forma teria sua origem na implementação da nova lógica produtiva baseada na serialização. A racionalização da produção em série desafiou a manutenção do trabalho artesanal (que seguia uma lógica de funcionamento individual). E, por conseguinte, desafiou a própria tradição da arte – que remetia à valorização da artesanalidade e da autoria.

A dissolução das fronteiras entre as “belas-artes” e as chamadas “artes menores” ou artes aplicadas nos remete ao final do século XIX, quando da reivindicação de uma “arte total” (Gesamtkunstwerk), na qual integrar-se-iam todas as manifestações artísticas, da pintura e escultura, passando pela música, artesanato, até a arquitetura e o teatro.

Por um lado, as possibilidades de reprodução e acessibilidade dos objetos artesanais consideradas por William Morris (1834-1896), dentro do movimento Arts&Crafts – que reivindicava uma espécie de “socialização da arte” pela sua presença na vida cotidiana –, ainda se limitavam a uma fatura manual, valorizando sua artesanalidade.

Na Inglaterra, concomitante à sua produção na escala do objeto, mas seguindo as mesmas desconfianças dos benefícios de uma sociedade industrial, Morris lançara os princípios da “casa do subúrbio”: implantada próxima à natureza, buscava refugiar-se da industrialização e da turbulência da metrópole, numa espécie de deslocamento nostálgico que evocava à “comunidade”, a um modo de viver que estava se perdendo, antecipando, assim, os princípios da “cidade-jardim” inglesa de Ebenezer Howard.

O exemplo da casa do subúrbio de Morris sinalizou os primeiros vínculos problemáticos entre uma tradição de arte e a produção industrial. Mais adiante, na esteira do movimento inglês, Henry van de Velde (1863-1957) deu continuidade à defesa de uma arte total.

Segundo o líder do movimento Art Nouveau, tudo era passível de ser projetado (chegando a projetar até mesmo as roupas de sua esposa e sua própria casa).

Apesar disso, sua resistência à industrialização dos elementos dava sinais no texto “A Linha”, publicado em 1903, ao insistir na expressão individual do artista/arquiteto: o ornamento era um índice de beleza, e como tal deveria ser estrutural e não gratuito.

Dentro desse movimento também ocorreram mudanças importantes nas relações de trabalho que significaram a transição para o trabalho totalmente industrializado: a tradição da herança cultural doméstica é substituída pelas Escolas de Artes e Ofícios a fim de buscar uma sistematização do conhecimento do fazer artesanal.

Contudo, estas escolas ainda persistiram num modelo que valorizava a manualidade e o trabalho com prazer, sem aderir ao fracionamento do trabalho da indústria, o que significaria aos olhos de Argan, a adesão ao trabalho alienado.

Por outro, a experiência do Deutscher Werkbund54, associação alemã de artesãos liderado por Hermann Muthesius (1861-1927), mostrou-se pioneira no gesto entusiasta que partia da viabilidade de se conciliar artesanato e indústria, cuja maior preocupação era dar qualidade aos produtos desta.

A linhagem conciliadora e positiva foi explicitada, mais à frente, pela ideologia da Bauhaus de Walter Gropius (1919-1933), cuja racionalidade era pautada pela aproximação entre as esferas da arte e da indústria e pela função social do artista/arquiteto. Tal fusão só seria propiciada pela conciliação do mundo da arte com o mundo da técnica.

Nesse sentido, a sede da Bauhaus projetada por Gropius, em 1918, serviu de canteiro experimental para uma modernização industrial fundada num pressuposto ético e estético: abarcou todas as escalas de projeto, desde o plano urbanístico do campus, passando pelos blocos residenciais dos professores, até o desenho industrial das peças que finalizavam a etapa de acabamento de uma edificação.

Escultura Moderna
Auguste Rodin
A Porta do Inferno, 1880-1917.
Bronze, 635 x 400 cm.
Col. Musée d’Orsay, Paris.

No período correspondente à sedimentação de uma sociedade industrial, considerado como divisor de águas para a arquitetura e para a arte, a arte ver-se-ia totalmente envolvida no ciclo econômico de produção e consumo.

A arte, como modo exemplar de trabalho humano, deixara de existir quando o sistema tecnológico da indústria sucedeu ao do artesanato, que tinha na arte seus modelos. Com a impregnação da lógica industrial, o fazer artístico torna-se possível apenas como metodologia projetiva, o que significa dizer que o artista tinha controle estético sobre o produto apenas na sua fase de concepção.55Apartada de sua tradição artesanal, a arte não mais se caracteriza pelo objeto estético em si; no lugar disso, ela se reconhece como tal por sua implicação dentro da lógica de consumo e substituição do objeto industrial. Segundo Argan, a crise da forma reverberou na superação da representação na arte dentro da tradição clássica.

Como enunciado anteriormente, já em princípios da década de 1910, Kandinsky passa a desenvolver suas pinturas de feição abstrata, com o que contribuía para a instauração de uma produção determinada pela vontade interior do sujeito, à despeito das formas representativas tradicionais do espaço. A criação de um repertório visual geométrico indicou que o significado da pintura passa a se definir na composição do quadro, afirmando, assim, o caráter intelectivo de sua comunicação.

É a partir daqui que a arte deixa, segundo Argan, de ser representação da realidade para ser realidade em si, posta no mundo: A própria percepção da realidade deve [ria] deixar de ser um simples captar, ela é também uma função ativa: explica-se assim a relação entre as correntes construtivas e as pesquisas da psicologia da forma, que colocam a percepção como estado e ato da consciência.

Assim como a pintura moderna caminhava para sua emancipação em relação à herança acadêmica das belas-artes, a linguagem escultórica também dava sinais de mudança. Em termos gerais, até a última década do século XIX ela vinha seguindo sua tradição naturalista, com princípios alicerçados na cultura renascentista.

Tanto isso é verdade que sua lógica via-se comprometida até então com a função representativa do “monumento”. Ao buscar entender os significados da crise promovida pela escultura moderna, na direção oposta ao funcionamento naturalista, Argan considera que a ruptura com o monumento significou a ruptura com uma linguagem artística essencialmente representativa.

Sua fundação no ceio da cultura da Renascença, explica Argan, dá-se em estrita devoção à idéia de cidade-capital. O monumento significava a concreção de um discurso demonstrativo, plástico e arquitetonicamente, cujos ideais eram representados pela figuração e cuja principal função era sua adesão.

O monumento tipo, em sua alegoria, inclui por igual autoridade e persuasão e se apresenta: como uma forma plástica unitária, porque o que quer revelar é o universal de um valor ideal; como uma forma alegórica, porque não só alude, mas também desenvolve o tema ideológico; como uma forma urbanística, porque abre, desenvolve e articula o monumento “sacro” no espaço de uma cidade “sacra” intensificando ai sua projeção.57

As investigações a respeito do ocaso do monumento também foi ponto fundamental nas análises de Krauss sobre as origens de uma crise nos domínios da linguagem escultórica. A autora identifica o princípio dessa crise no nascimento de uma sociedade burguesa, para cujos anseios a idéia de escultura como categoria universal não mais corresponderia. Nesse sentido, suas origens também equivalem às imbricações estabelecidas entre a práxis arquitetônica e as novas exigências da vida moderna.

Comparações tecidas por Argan revelaram que a práxis moderna rompera com a arquitetura representativa do passado por deslocar a criação espacial pautada nas leis da natureza mediante novas técnicas e materiais que respondem a exigências concretas da vida e do trabalho. Sendo assim, ela passaria não mais a representar as autoridades da sociedade, mas a desenhar o dinamismo de suas funções, pelas quais a cidade moderna se organizava.

Um dos exemplos mais divulgados desse novo modo de operar a cidade aparece no urbanismo modernista de Le Corbusier (1887-1965), em projetos tais como: Plan Voisin, de 1925 e Ville Radieuse, de 1933, idéia que será retomada mais adiante.

Tais considerações sobre a idéia original de “escultura” convergiram, ao mesmo tempo, para o que Krauss detectou como uma categoria construída historicamente: para ela, os vínculos com a tradição e o passado existiram até o momento em que a escultura funcionava como representação a se celebrar, implantada num dado local e discursando sobre este.60

A obra “A Porta do Inferno”, que ocupa o centro das atenções do escultor Auguste Rodin (1840- 1917), entre os anos de 1880 e 1917, pressionava a tradição naturalista representativa ao modificar o espaço narrativo clássico e revelar as marcas contínuas do toque do escultor na superfície da obra. Segundo Krauss, que analisa tal processo no livro Caminhos da Escultura Moderna, a obra rompe com a premissa do monumento e passa a pleitear cada vez mais sua imersão no espaço do observador, no espaço da vida.

Ao receber a encomenda para realizar um conjunto monumental de portas que serviriam de entrada a um museu em projeto61, Rodin usufruiu do espaço tradicional do relevo – dos modelos dos grandes portais renascentistas, que descreviam uma seqüência narrativa da história – com vistas a, segundo Krauss, “represar o fluxo do tempo seqüencial”62, obrigando o observador a perceber a obra como o resultado de um processo, como fruto de uma ação temporal.

A maneira original como relaciona suas figuras63 e o modo como concebe os ciclos de ilustração de A Divina Comédia de Dante (estes apresentados simultaneamente) rompe com o princípio de singularidade espaço-temporal, desfazendo-se do pré-requisito da narrativa clássica. A sombra projetada enfatiza a independência das figuras em relação ao fundo do relevo o qual, isolado, não permite a ilusão de um espaço para além.

Pela primeira vez, o fundo atua no sentido de fragmentar as figuras que contém, de negar-lhes a ficção de um espaço virtual no qual poderiam se deslocar. O espaço na obra, que antes servia de suporte para o desenrolar de uma narrativa espaço-temporal, agora, é imobilizado.

De par com as novas concepções escultóricas do artista, podemos admitir também que a falência da função representativa nessa obra desdobrou-se na sua não realização como prevista na concepção original, encomendada para um lugar específico. Ao final, ela foi reduzida a meras cópias transpostas para coleções museológicas.

Com Rodin, a noção de escultura fundou um novo espaço que Krauss qualificou como sua “condição negativa”: um tipo de ausência do lugar (sitelessness), que implicava sua perda absoluta65. Nesses termos, a lógica da escultura moderna passava a operar em relação à perda do lugar, produzindo o monumento como abstração, funcionalmente sem lugar e amplamente auto-referencial, caracterizando-se, assim, por sua essência nômade.

A escultura, assim, dava indícios de sua autonomia em relação ao discurso da estatuária – discurso submetido aos desígnios simbólicos –, seja porque colocavam em evidência seus próprios materiais seja porque declaravam a franqueza dos seus processos construtivos.

Ao mesmo tempo em que conquistara uma liberdade discursiva, tendia mais e mais a fundir-se ao espaço da vida, em busca da aproximação entre obra e sujeito (ou seja, da efetivação do seu discurso, que só se conclui pela comunicação).

Aparentemente, a conquista de uma autonomia se mostraria paradoxal para os ideais modernos, como o querem os opositores da crítica formalista67. Porém, um olhar mais cuidadoso revela que o “mito” da autonomia não significou o descolamento da obra de arte em termos históricos; mas, ao contrário, sua emancipação em relação ao passado a fim de vincular-se a sua atualidade.

A obra de Rodin libertou-se das amarras do monumento que ditavam suas significações simbólicas e adentrou no terreno do cotidiano do sujeito (burguês). Na maturidade moderna da escultura, outro exemplo inaugural em direção à emancipação do caráter representativo do monumento e da estatuária, é o projeto original da obra “Os Burgueses de Calais” (1884- 86), um conjunto escultórico implantado sem a mediação do pedestal, concebido, portanto, num espaço contíguo ao espaço do observador.

Ao eliminar o pedestal – elemento estruturante e mediador entre o lugar e o caráter representacional da obra – as figuras de Rodin concebidas em escala real equiparavam-se à figura prosaica do observador. Ao mesmo tempo que ainda representavam uma celebração (restando algum indício da herança renascentista), as personagens de Rodin indicavam não mais a referência a um passado distante, mas faziam o elogio aos próprios transeuntes, os quais se identificariam social e culturalmente na escala humana dos burgueses.

Além disso, a celebração já não é mais mediada pela base; o conjunto escultórico é projetado para atuar diretamente no rés do chão.

Para o historiador T. J. Clark, a fim de atender às demandas da nova sociabilidade, a arte moderna vinculou-se a uma noção de atualidade e a uma noção política de autonomia. A esfera da linguagem estava diretamente comprometida com a esfera do mundo e o artista aparecia como ser social, transformador.

A celebração de uma história em Rodin buscava suas referências na atualidade, correspondendo às demandas da nova sociabilidade burguesa.

Se, por um lado, os processos de ruptura com a lógica do monumento são identificados em Rodin pela negação do instrumento mediador entre a obra e seu público, pois as figuras escultóricas se aproximaram em pé de igualdade com o observador; mais adiante, as esculturas do romeno Brancusi apontaram para a absorção na constituição da própria obra.

Nelas, a natureza do espaço da obra e a natureza espacial do entorno (recinto arquitetônico ou ambiente imediatamente externo) se misturam pela ambigüidade dos limites entre espaço e volume escultórico mediante o uso de superfícies reflexivas. Não obstante o tratamento dos materiais concebidos como formas geométricas simples, em volumes ovóides, cilíndricos e cúbicos, as superfícies polidas impregnam a obra de espaço circundante e impedem que estas sejam apreendidas em sua totalidade geométrica “pura”, a exemplo de “Pássaro no espaço” (1924).

Através dos efeitos de luz, a superfície e até mesmo a forma são dissolvidas. A peça tubular longilínea e levemente flectida nos remete a uma espécie de metonímia da ação própria de voar; a sensação de inflexão é enfatizada pela variação da incidência luminosa no bronze, que ora se ilumina ora se obscurece devido à sua inclinação.

A percepção da peça nos endereça, segundo Krauss, a uma experiência do comportamento específico da matéria inserida no mundo69.

A insistência do artista em conferir um acabamento ostensivamente polido ao bronze também nos aproxima de uma suposta admiração pelos objetos produzidos industrialmente, finalizados com a precisão da máquina.

A obstinação do artista em conferir uma aparência industrial desumanizada corresponderia, aos olhos de Krauss, ao desejo de anular qualquer vestígio artesanal da atividade no ateliê70. Vemos, por extensão, que a escultura de Brancusi significou, ainda nos primórdios da modernidade do século XX, uma possível materialização de um desses momentos históricos em que as linguagens tradicionais artísticas entram em confluência com a visualidade e a fatura industrial. A atualidade da produção do artista reafirmava-se na ruptura com a narrativa representacional da linguagem clássica.

A série Musa dormindo (concebida entre os anos de 1906 e 1911) exemplifica como a figura humana, esculpida também em material polido (mármore e bronze), foi reduzida quase que puramente à forma elementar da ovóide.

Colaborando com a redução formal, a totalidade da representação estrutural do corpo humano é relativizada por sua figuração em fragmento: a parte pelo todo.

O artista impede, com isso, que o significado da percepção escultural do corpo equivalha à sua estrutura anatômica; sua existência unitária é impossível de ser analisada.71

Escultura Moderna
Pablo Picasso
Les Demoiselles d’Avignon, 1906 – 07.
Óleo s/ tela, 244 x 233 cm.
Col. Museum of Modern Art, Nova York.

O caráter representativo clássico da escultura também é posto em xeque no momento em que o artista incorpora a base como elemento constitutivo da obra (como podemos ver na já mencionada “Pássaro no espaço”.

Tradicionalmente vista como elemento separador e idealizante de onde emergem as esculturas, a base já não preexiste em relação à obra. Ela é concebida como parte mesma da escultura, em sua unicidade e contingência em relação à figura esculpida. Já não há mais mediações entre o substrato da vida e o espaço reverenciado da arte.

O progressivo distanciamento dos pressupostos de uma narrativa representacional clássica libertou a escultura moderna em direção a uma evidência cada vez maior de sua fisicalidade, estendendo-se e vinculando-se a sua própria realização material e espacial. Sob o ponto de vista greenberguiano, tal evidência é interpretada como a derrocada da sujeição da escultura de tradição greco-romana à sua funcionalidade narrativa.

Ela passa a ser livre para manifestar-se como pura visualidade. Sob a redução modernista, a escultura abandonara o caráter monolítico, corpóreo, próprio das atividades de talhar e esculpir da tradição renascentista, em benefício de uma dessubstancialização: tal como vimos nas obras de Brancusi, as evidências de uma totalidade e das sensações de gravidade foram dissipadas pelo movimento de luz incidente na superfície polida da peça.

Desse modo, para Clement Greenberg, o ilusionismo representacional era substituído pela literalidade do próprio meio. Devido à sua existência tridimensional inexorável, “a escultura sempre foi capaz de criar objetos que parecem ter uma realidade mais densa, mais literal, do que os criados pela pintura (…).

Originalmente a mais transparente de todas as artes porque a mais próxima da natureza física de seu tema, a escultura desfruta atualmente da vantagem de ser a arte que menos adere uma conotação de ficção ou ilusão.”

É como se a questão representacional da escultura tivesse migrado de um foco naturalista e antropométrico para um interesse mais realista na atualidade da obra, aproximando-se dos domínios da nova materialidade industrial e do modo de vida burguês.

Aos olhos do crítico norte-americano, a escultura tornarase “escultura-construção”, vinculada à lógica dos objetos industriais, cuja “realidade física [é] evidente por si mesma, tão palpável e independente quanto são hoje as casas em que vivemos e os móveis que usamos.”

Como vimos até aqui, de modo geral, o modernismo contrapôs-se às tradições naturalista e historicista na arte; em substituição, buscava um espaço real, mais próximo à nova vida social e urbana que se instaurava.

Para o historiador e crítico Mário Pedrosa, os resultados de uma revolução moderna, quer permanentes ou não, conduziram a novas maneiras de viver, através da remodelação dos modos de percepção e de sentir. Daí que, uma das principais qualidades do movimento modernista, apontadas pelo artista construtivo russo László Moholy- Nagy (1895-1946) e retomadas por Pedrosa, “é a de possuir relações ocultas com a vida prática”74, dentro do qual estabelece-se uma nova espécie de arte cujos meios técnicos serão sobretudo de ordem mecânica e instrumental.

No início do século XX, a atuação das chamadas vanguardas históricas significou uma ruptura de linguagem (na esteira da herança novecentista de uma “arte total”) ao apagar as fronteiras entre as categorias tradicionais das belas-artes; ao mesmo tempo, redefinia “conceitualmente” o objeto de arte, ao reconhecer outras esferas que não a da obra única; e, como conseqüência, incitava uma nova circunscrição do próprio lugar da arte no espaço da vida social e cultural.

A ruptura encetada nos movimentos de vanguarda não só revelou a crise da arte como representação, como também, afirmou esta como ação e trabalho em resposta ao novo modus operandis da sociedade industrial. A interpretação de Argan indicaria uma nova função social da arte, pautada pela resistência à generalização de um comportamento mecanicista e alienante.

O valor de arte afirmava-se como contraponto ao trabalho alienado: “não mais se reconhece um valor em si na obra de arte, mas apenas um valor de demonstração de um tipo de procedimento que implica e renova a experiência da realidade.”

Para se elucidar as reivindicações dos próprios artistas, contra a idéia de representação, Kasimir Malevitch (1878-1935) afirmava: “A arte não mais deseja [ria] servir ao Estado e à Religião, não mais quer [ia] ilustrar a história dos costumes, não mais quer [ria] saber do objeto (como tal), e acredita [va] poder existir por si, independentemente da coisa (livre, portanto, “da fonte de vida provada durante tanto tempo”)”.

Em meio aos movimentos de vanguarda, duas vertentes se sobressaem caracterizadas por Argan como: a que buscou conciliar o mundo da arte com o mundo da técnica (tendências construtivas); e aquela que acreditava numa dissociação absoluta entre essas duas esferas (tendências “individuais”), ao proclamarem a falência do racionalismo clássico. Entendemos que o Cubismo é tributário da vertente construtiva.

Numa primeira fase de pesquisa analítica, a representação do objeto se dava de forma fragmentada; e os planos da figura e do fundo misturavam-se ao levarem o mesmo tratamento pictórico. Porém, as considerações de Ferreira Gullar sobre as interpretações recorrentes da nova espacialidade cubista chama a atenção para o fato de que a multifacetação do objeto, diferentemente de querer representar seu volume de um novo modo – interpretação que o autor considerava regressiva, pois reporia os problemas da pintura tradicional –, rompeu com a representação tridimensional desse objeto.

De certa forma, o abandono de uma profundidade fictícia fundada no espaço perspectivo renascentista – do ponto de fuga, já estava anunciado em “Les Demoiselles d’Avignon” (1906-07).

Pedrosa considera tal obra como exemplar do esforço de Pablo Picasso (1881-1973) em reduzir a pintura de Cézanne totalmente ao plano, suprimindo assim a última das ilusões que ainda restava daquele: a corporeidade física. Ao tentar resolver o problema do objeto no quadro (…) os primeiros cubistas dedicaram todo o seu esforço à criação de um novo espaço. Achar um equivalente do volume, eis a questão. Por meio de uma arquitetura mental, apresenta o objeto em todas as suas facetas.

O plano do quadro cubista rechaçara todo e qualquer espaço aparente.

Em vez disso, o espaço era sugerido sobretudo por uma ordem mental: as relações formais comportavam-se como se o objeto guardasse apenas sua “forma primária”.

Escultura Moderna
Kurt Schwitters
Merzbau, 1923 – 32.
Assemblage com materiais diversos. Contruída no decorrer de dez anos na casa do artista em
Hanôver, a obra foi destruída por uma bomba na Segunda Guerra Mundial.

Tendo resultado das experiências cubistas, como radicalização das investigações acerca do espaço pictórico ilusionista, a invenção das colagens foi considerada o passo derradeiro na pesquisa analítica sobre a estrutura funcional e representacional da obra de arte.

Tratava-se de uma pintura em cuja superfície aplicavam-se fragmentos de objetos ou materiais externos ao vocabulário tradicional da arte, como pedaços de jornal, texturas, partituras de musica, etc. O quadro era, assim, transformado em uma “forma-objeto”, dotada de realidade própria.

Em Natureza-morta com cadeira de palha (1912), considerada a primeira colagem cubista, Picasso incorpora um fragmento de oleado, cuja estampa imitava a trama de palha de uma cadeira.

O procedimento “realista” também se verificou no novo tratamento conferido a moldura: ao envolver o “quadro-objeto” com uma corda, Picasso colocava em xeque o estatuto do elemento que desenhava os limites entre a obra e o mundo real.

Ao fundar uma lógica estrutural independente para o quadro, este se aproximava do mundo por meio de sua identidade como objeto material.

A estrutura autônoma da invenção cubista, que se originava de um “procedimento realista”, orientou uma nova espacialidade para a pintura: excluiu todo e qualquer efeito ilusório que ainda pudesse remanescer do naturalismo clássico, tanto em relação ao objeto representado como ao espaço; abria-se assim aos domínios do construído e do real; e, por meio disso, estabelecia que seu mecanismo deveria funcionar no contexto da vida prática.

Ao final, como dizia Argan, “o objeto de arte tornara-se irredutível”, caracterizando, assim, sua emancipação em relação à forma. A novidade do procedimento cubista, por mais “realista” e “mental” que fosse, ainda limitava-se a uma pesquisa analítica de cunho formal e compositivo.

A introdução dos materiais brutos do mundo empírico – e, por extensão, dos produtos da cultura industrial – na tradição da alta cultura, foi radicalizada com os artistas do dada. Com preocupações distintas, a colagem dadaísta e, sobretudo os ready-mades de Marcel Duchamp (1887-1968) caminharam na direção não mais de uma pesquisa circunscrita aos domínios da pintura, mas abriram-se a investigações acerca da arte como linguagem, ao criticar tanto sua natureza como a função social do artista moderno.

As colagens dada subverteram a noção compositiva que ainda restava nos cubistas em benefício de um procedimento não-lógico, da lógica do acaso, contrapondo-se a uma espécie de conduta racional da arte que vigorava até então. Daí Argan considerar o movimento “dada” dentro das vertentes “negativas” de vanguarda.

Tanto o dada quanto o surrealismo desacreditaram na conciliação possível entre o mundo operativo da máquina e o processo criativo, essencialmente livre, da arte. Apesar de diferirem ideologicamente, suas investidas marcaram um pensamento de vanguarda que buscou operar a partir de elementos ordinários, aproximando o mundo real ao universo da arte.

“Porta-garrafas” (1914) não era senão um objeto produzido industrialmente – e portanto, com funções utilitárias pré-definidas – que o artista elegera como arte dentre os objetos que se apresentavam no espaço da sua experiência cotidiana.

O deslocamento para a esfera de interesses da arte engendrava toda uma nova gama de sentidos: ao limitar-se a designá-lo como arte, o artista afirmava sua autoria por meio de um único gesto que retira o objeto de sua função utilitária usual, sem operar qualquer ação que o transformasse fisicamente, e o transporta para a instância simbólica da arte.

O novo estatuto de obra de arte conferido ao objeto comum representou uma ação intelectiva do artista; este já não mais opera procedimentos manuais e artesanais, mas limita-se à atividade de escolha. Com isso, Duchamp cria um novo posicionamento do artista em relação ao meio. E mais ainda, ao deslocar um objeto industrializado, ele singularizava algo produzido em série para ser amplamente consumido e, assim, descartado.

Essa singularidade intencionalmente produzida serviu nem tanto para conferir um valor estético aos objetos da vida comum, mas para chamar a atenção para os mecanismos que garantiriam o estatuto de arte, pondo em cheque o próprio sistema legitimador.

Dentro ainda do universo amplificador do dada, a experiência pioneira do “Merzbau” , de Kurt Schwitters (1887-1948), nos idos de 1920, é igualmente reveladora para pensarmos a crise da forma: ao transpor materiais da rua achados ao acaso para dentro de um “ambiente-colagem”, nas circunscrições do espaço doméstico, o artista ia constituindo a obra espacial e temporalmente.

E, portanto, tais condições conferiam ao trabalho uma disponibilidade de aderência à vida cotidiana. O caráter original de “Merzbau” estava justamente no deslocamento que o artista realiza de uma idéia de “objeto-colagem” para sua existência como “ambientecolagem”, a ponto de confundi-la com uma espécie de “vida acumulada”.

Sedo assim, a obra de Schwitters contribuía de modo decisivo para o esgarçamento das categorias, tanto da pintura como da escultura, buscando conferir a elas outras dimensões e ampliando o campo de atuação da linguagem da arte.

O procedimento de colagem, inaugurado pelos cubistas, era levado ao limite; as fronteiras da arte foram diluídas no espaço e no tempo cotidianos, deslocando-se a escala do trabalho.

Todos esses deslocamentos antecipavam, assim, o que viria a ser uma das tendências artísticas contemporâneas: a dimensão espaço-temporal, que se enunciara no espaço produzido pela geração de 1960 (próxima à noção de instalação).

A premissa do nexo de continuidade entre arte e vida – do espaço contínuo, praticável – também foi determinante para outras esferas da cultura, como a Arquitetura Moderna. Destacamos aqui o pensamento de Le Corbusier, cujas influências se fizeram notar no Brasil.

As premissas corbusianas de universalização da arte e clareza formal para a prática arquitetônica moderna anunciavam suas intenções de subverter os estilos históricos em prol da eficiência técnica e funcional. Sua máxima era veiculada pela propaganda da “máquina de morar” endereçada à burguesia.

A crítica que se faz à simplicidade formal corbusiana diz respeito a um preceito estético calcado na tradição das formas puras, pelo qual a arquitetura ingressaria na esfera da arte autônoma, principalmente quanto à perda da referência ao seu contexto. O combate dirigia-se principalmente às generalizações tanto da idéia de cidade, como da própria noção de sujeito moderno.

Essa linha de raciocínio se faz claramente evidente quando nos deparamos com os argumentos do crítico Thierry de Duve, no artigo “Ex situ”, onde tece considerações sobre as relações entre lugar, escala e espaço desenvolvidas ao longo da história da arte e da arquitetura.

O grande exemplo apareceria na concepção ideal da Ville Savoye: implantada num entorno verde, a nova materialidade empregada na construção, bem como seus princípios arquitetônicos calcados nas formas elementares, destoam radicalmente do contexto e promovem uma disruptura no local.

Paralelamente, os afrontamentos em relação à nova arquitetura do International Style (principalmente aos arranha-céus de Mies van der Rohe) tratam-nas como formas vazias de significação. Aos olhos de Otília Arantes, ao final, a Arquitetura Moderna promovera a transferência da ideologia da obra para o discurso sobre a mesma.

Apesar disso, ela reconhece que foram os mesmos mestres modernos os primeiros a notar que a arte autônoma vira fetiche ao anular o seu “ser-para-outro” – o que desembocaria, mais tarde, na reificação das relações sociais do mundo imagético (da publicidade às artes eletrônicas). Para a figura central do urbanismo moderno no Brasil, Lucio Costa, o ponto de partida da nova arquitetura deveria transcender o alcance da simples beleza que resulta de um problema tecnicamente bem resolvido.

A técnica seria somente o ponto de partida para se construir, para se fazer arquitetura. Para tanto, era imprescindível que a indústria se apoderasse da construção, produzindo todos os elementos que a edificação necessitava.

Quanto à técnica, a nova práxis moderna prescrevia a revisão dos valores plásticos tradicionais: as paredes espessas auto-portantes, tradicionalmente empregadas na construção, foi substituída pela ossatura estrutural independente que sustenta, agora, uma lâmina leve e delgada. As paredes já não tinham mais função estrutural, mas simplesmente de vedação.

As construções passam a seguir um princípio de clareamento das funções, o que resultou na independência das suas partes: liberdade de planta; fachada livre, com possibilidade de balanços que recuam as colunatas e libertam o tratamento das fachadas; jogo de cheios e vazios; entre outros aspectos.

Solto no espaço e de volumes reduzidos a um purismo geométrico, o edifício alcança um valor plástico que o aproxima da arte pura, readquirindo, portanto, o que Costa entendia por “a disciplina da arquitetura”.

O autor do plano piloto de Brasília contesta os ataques recorrentes ao novo espírito ao explicar que, para ele, a simetria não era propriamente monótona, ela era uma medida para o rebatimento primário, com o jogo de contrastes, neutralizados, que definia traçados reguladores e conferia uma uniformidade.

A ausência de ornamentos aparecia como uma conseqüência lógica da evolução da técnica construtiva, condicionada à máquina. O ornato era um produto manual, de intenções artísticas individualizadas e, como tal, perdera sua primeira razão de ser com a industrialização no momento em que esta pressupôs uma lógica construtiva de formas puras, contornos nítidos e acabamentos rigorosos.

Escultura Moderna
Vladimir Tatlin
Contra-relevo de canto, 1915.

A leitura de Costa nos remonta novamente ao espírito construtivo das vanguardas cubistas, futuristas e dos russos, que acreditaram na conciliação entre arte e técnica como agenciamento que conduziria a sociedade a um era de “progresso” e democracia. Na esteira utópica das formulações modernas da arte, parte da produção dos construtivistas russos também teve importância fundamental na ruptura com o princípio representacional da arte clássica.

O grande exemplo na pintura apareceu nos primórdios da década de 1910 com Malevitch, quando exibe seu “Quadrado preto sobre fundo branco” em Moscou, que já conteria o teor dos pressupostos puristas da pintura abstrata geométrica.

Quando no ano de 1913, tentando desesperadamente libertar a arte do peso morto da objetividade, eu me refugiei na forma do quadrado, e criei um quadro que nada mais era senão um quadrado preto sobre um fundo branco, a crítica, e com ela toda a sociedade, assim se lamentou: “Tudo o que amávamos desapareceu.

Estamos em um deserto… temos diante de nos um quadrado preto sobre um fundo branco!” (…) A escalada da nãoobjetividade da arte é árdua e dolorosa… não obstante recompensadora. O elemento familiar fica cada vez mais para trás… Pouco a pouco desaparecem os contornos dos objetos; e assim, passo a passo, o mundo dos conceitos objetivos – “tudo o que amávamos e do que víamos” – acaba por se tornar invisível.

Dois anos mais tarde o artista lançou o movimento suprematista, com base numa percepção da vida que celebrava um sentimento artístico puro. Postas em comparação com o Cubismo, tais idéias representavam mudanças na abstração.

Nas palavras de Gullar: “até o Cubismo a luta era contra o objeto representado; o problema agora é emprestar transcendência a um objeto real: a própria tela.”

A arte caminhava para sua evidência concreta, compartilhando o mundo real dos objetos.

O processo seguiu, anos mais tarde, com as maquetes arquiteturais de Malevitch. Elas representaram um salto para o espaço e exprimiam o mesmo impulso que levou Vladimir Tatlin (1885-1953) à criação de suas construções de canto, denominadas contra-relevos.

Ao contrário das idéias de Malevitch, fortemente ligadas às concepções metafísicas da abstração, o construtivismo de Tatlin aspirava a uma dissolução da arte numa sociedade inteiramente nova, na qual o valor artístico se esgotara porque estaria em toda parte. A partir de 1915, influenciado pelo Cubismo de Picasso, Tatlin dá início à série dos contra-relevos espaciais, construções reais estruturadas em relação à junção de dois planos – um canto de parede – sob os quais organizavam-se demonstrativamente à medida que incluíam estes na sua realização espacial. Além disso, o emprego de materiais reais diversos – como folha-de-flandres, lata, vidro, madeira, gesso, papelão, arame, entre outros – evitava toda e qualquer ilusão pictórica.

Fascinado pela mecânica, Tatlin orientou-se num engajamento da arte funcional com vistas a uma atuação social, cuja expressão máxima se materializou no projeto encomendado pelo Departamento Revolucionário de Belas-Artes em 1919 para o “Monumento à Terceira Internacional”.

Sua obra inscreveu-se sobretudo na aspiração a uma futura utilidade prática, à serviço da revolução, e dissolvia as fronteiras entre arte, “desenho industrial” (especialmente o desenho de mobiliário) e arquitetura. Não é à toa que, a partir dos anos de 1930, o artista passa a dedicar-se ao teatro, linguagem que, segundo ele, era capaz de abarcar todas as artes.

Os irmãos Naum Gabo (1890-1977) e Antoine Pevsner (1886-1962), por sua vez, defendiam um tipo de idealismo escultural que considera o “real” como manifestação de uma realidade transcendente, opostamente ao dado de realidade “factual” como queriam os produtivistas90. Em 1920, publicam o “Manifesto realista” como parte da campanha contra a corrente construtivista de Tatlin, em favor de uma arte puramente abstrata.

As esculturas dos irmãos Gabo e Pevsner continham tais acepções de arte na medida em que empregaram o princípio da “estereometria”: segundo este princípio, as formas geométricas eram representadas não por seus volumes, mas por suas estruturas internas. A partir delas, tentavam compor uma estrutura mínima pela qual a forma pudesse se apresentar da maneira mais clara e transparente possível.

O esgotamento da arte representativa na pintura também se explica na passagem à abstração geométrica. Interessa-nos aqui não a investigação sobre as origens de uma arte abstrata, mas como tal tendência despertou um sentimento de liberdade cada vez maior em relação ao tema da representação, e, por extensão, em relação às categorias tradicionais da arte. Meyer Schapiro considera que a nova vida social e cultural é fundamental para se entender os movimentos de vanguarda.

As origens da arte abstrata localizavam-se nas novas exigências de “funcionalidade” e “aplicabilidade” das diversas atividades à esfera da vida. A representação era, para o historiador, um espelhamento passivo das coisas, devido a um processo mecânico do olho e da mão; nele, as considerações sobre os sentimentos e sobre a imaginação do artista são restritas.

Para Schapiro, a tendência à abstração na arte tem origem já no final do século XIX com os impressionistas: estes transformaram a natureza num campo privado onde sua formalização se completava no espectador. Os novos modos de percebê-la impressos reagiram à inadequação da arte vigente e fizeram da pintura um domínio do ideal de liberdade no interior da sociedade burguesa.

A partir deles, a arte pleitearia a uma autonomia, traduzida pelo historiador como “valor de uma demonstração prática”

As obras passariam a manifestar, num único momento, a etapa de projeto e a etapa da criação: posta num único plano não-histórico, a pintura abstrata advogara uma postura em que o sentimento e o pensamento precediam o mundo representado.

A abstração afirmava “a soberania da mente do artista”.

O manifesto suprematista de Malevitch, antes citado, é revelador dessa nova arte: “Entendo por Suprematismo a supremacia do sentimento ou sensação puros nas artes pictóricas”. O artista explica que as descobertas plásticas com a série com elementos derivados do quadrado significaram a experiência da ausência de objetos em favor dessa “pureza”.

Escultura Moderna
Piet Mondrian
Broadway Boogie-Woogie, 1942 – 43.
Óleo sobre tela, 127 x 127 cm.
Col. Museum of Modern Art, Nova York.

Ao lado da valorização intelectiva e da experiência visual emancipada, Schapiro identifica na mesma raíz da questão abstrata a afirmação de sua dimensão atemporal, correspondente ao encantamento desses artistas pelo primitivismo. Uma desvalorização da história, da sociedade civilizada e da natureza exterior estava por trás da nova paixão pela arte primitiva.

O tempo deixava de ser uma dimensão histórica; tornou-se um momento psicológico interno e toda a desordem de laços materiais, o pesadelo de um mundo determinador, o inquietante sentido do presente como um denso ponto histórico ao qual os indivíduos estavam fatalmente ligados – tudo isso foi transcendido automaticamente em pensamento pela concepção de uma arte instintiva, elementar, acima do tempo.

Uma arte de “relações puras” era reivindicada também por Piet Mondrian: segundo ele, “estas haviam sido ‘veladas’ na pintura mais antiga pelas particularidades da natureza, que serviam apenas para distrair o espectador do universal e do absoluto na arte, a verdadeira base da harmonia estética”. Não só de formas puras e unidades geométricas se estruturavam os quadros de Mondrian; a nova composição plástica alcançara uma redução visual pela grade de horizontais e verticais, linhas que diziam respeito às forças essenciais da construção harmônica do mundo segundo o artista.

O princípio da grade tem uma aparência estrutural arquitetônica pela rigidez com que as linhas ortogonais pintadas concordam com os limites do quadro, tal como vemos em “Broadway Boogie-Woogie” (1942-43).

Nessa mesma obra, a confluência do pensamento de Mondrian com a vertente purista da Arquitetura Moderna torna-se evidente não sé pela regularidade linear, mas também, e principalmente, pela alusão ao encantamento com o novo dinamismo da vida urbana – cujos movimentos (de pessoas, automóveis, luzes etc.) tornaram-se incessantes. O prazer por uma expressão plástica vibrante e de movimento também é identificado por Schapiro na inovação do uso das cores primárias.

Concebidas separadamente nos primeiros anos, em “Brodway” elas foram completamente embaralhadas para produzir o máximo de casualidade, variação, erguida em um equilíbrio visual dinâmico. A atitude positiva de Mondrian de par com a visão libertadora do Neoplasticismo (em termos de uma estética inovadora, do rigor e da impessoalidade) vai de encontro ao “desejo de integrar num espírito utópico sua teoria da arte a toda a vida social e à promessa de emancipação mais abrangente através da modernidade em progresso” (ao que podemos relacionar sua grade compositiva aberta, prolongada ao infinito).

Os ditos “pesquisadores da pura plástica”, expressão cunhada por Mário Pedrosa, não consideravam a arte um mundo à parte, como muitos o querem. Por uma perspectiva otimista do crítico, ao invés disso, eles fincavam suas práticas nas possibilidades do presente, objetivando extrair da nova época “neotécnica” uma arte que fosse a cristalização do estado de cultura e de civilização a que o homem potencialmente atingiu. Tal reflexão corresponde ao que, anteriormente, chamamos de “atualidade” da arte moderna, comprometida com o seu próprio tempo.

Dispensada a arte de sua missão documentária, o impulso criador e os meios de expressão do artista tem de mergulhar nos formidáveis recursos da tecnologia moderna, que criou materiais e novos objetos, libertou as cores do suporte objetivo, insinuou novas formas e abriu novas perspectivas à imaginação e à visão humanas. Concomitantemente, as análises de Greenberg sobre a abstração situam o advento da nova linguagem como desaguadouro da arte moderna, formulação exposta no texto seminal “Vanguarda e Kitsch”, de 1939.

Não deixaremos de observar as diferenças entre os autores quanto aos motivos que levaram os artistas de vanguarda à abstração, embora não pretendamos nos deter nessa questão. Greenberg julgava que a vanguarda da sociedade burguesa buscara o absoluto, fundado na arte abstrata ou “não-objetiva”, porque desembarca de um processo histórico que lhe mostrava uma arte à mercê “dos mercados do capitalismo, nos quais os artistas e os escritores haviam sido lançados pela retirada do patrocínio aristocrático.”

Já Pedrosa acreditava tratar-se de uma nova postura na arte, que se apropriava das descobertas da ciência e da tecnologia (principalmente quando à pesquisa visual), por isso mesmo, mostrava-se livre e imaginativa. O Cubismo analítico, assim, teria alcançado uma certa liberdade quanto ao espaço pictórico representacional na medida em que os artistas passam a pintar objetos em planos paralelos ao plano da tela, com o que faziam desaparecer o espaço tradicional da representação, deixando restar apenas o espaço em que a existência desses objetos era possível.

Greenberg considera que os rumos tomados pela arte moderna seguiram cada vez mais na direção de uma auto-reflexividade: esta, era a única capaz de lhe garantir um padrão de qualidade e de autonomia num mundo assolado pelo kitsch. Segundo o autor, “‘pureza’ significava autodefinição, e a missão da autocrítica nas artes tornou-se uma missão de autodefinição radical”.

De acordo com tal argumento, a pintura modernista se viu obrigada a abandonar todo e qualquer princípio de representação, não dos objetos reconhecíveis, mas do tipo de espaço que estes poderiam ocupar, culminando na evidência de sua dimensão plana – de sua condição de superfície.

Sob o ponto de vista greenberguiano, essa evidência teve sua maior expressão na nova pintura norte-americana, entre as décadas de 1940 e 1950. O estudo considera que a originalidade trazida pelo Expressionismo Abstrato em relação à tradição pictórica européia precedente apresentava-se não tanto pela sua consciência bidimensional do próprio meio – sua planaridade –, mas pelo abandono da figuração clássica por completo, o que representou a conquista de sua condição livre dos preceitos representacionais daquela. Para esses pintores, o processo criativo passava a se basear sobretudo na figura do artista e nos seus sentimentos, o que pareceu possível pela escolha da abstração de formas.

É nesse sentido que a negação do caráter representacional e do espaço ilusionista da perspectiva clássica atingiria sua radicalidade nas drip paintings de Jackson Pollock (1912-1956). Pollock buscou incessantemente libertar-ser dos procedimentos tradicionais pictóricos, abrindo mão até mesmo do pincel, instrumento mediador entre o pensamento do artista e sua materialização na tela.

Além de introduzir outros materiais em sua pintura, tais como vidro e areia – com o que conferia uma espécie de consistência corpórea ao que era estritamente liquefeito – Pollock incluía também em seus experimentos a especulação artística do próprio suporte tela.

O posicionamento original vertical, relativo a uma experiência de frontalidade, óptica, foi transgredido pela reversão horizontal da tela, sobre a qual o corpo se reposiciona. Pollock passa a atuar sem restrições à articulação do sistema braço-pincel-tela; por meio do deslocamento do corpo inteiro, ele passa a se relacionar com a pintura por diversos ângulos, implodindo os limites do próprio quadro.

Sob esse aspecto, a nova dimensão da ação corporal dessas obras – os chamados drippings – significou nos idos de 1950 a recuperação dos vínculos entre arte e vida, com novas bases, não mais fundados em princípios sociais utópicos, mas afirmando a impregnação da arte pela vida em sentido mais amplo (até mesmo existencial). Quem nos dá indícios para uma análise do caráter ambiental dos trabalhos de Pollock é seu contemporâneo – mas pertencendo a uma geração mais jovem, Allan Kaprow.

O contato com o artigo “The Legacy of Pollock” enriqueceu a presente pesquisa sobre o que poderia ser uma atuação ambiental na pintura. Kaprow interpretou a morte de Pollock simbolicamente como prenúncio de uma crise da arte moderna e um sintoma de declínio da situação inerte e repetitiva em que se encontrava a pintura norte-americana de meados dos anos de 1950.

Ao mesmo tempo, ela mostrou-se capaz de fundar uma condição da própria arte moderna: a libertação da pintura em direção ao mundo do espectador.

Ao exaltar as “conquistas” do artista, Kaprow declara que na liberdade conquistada pelas ações corporais das drip paintings residiriam as razões de sua própria crise. As inovações do artista – o ato de pintar, o novo espaço, a marca pessoal que constrói sua própria forma e significado, o entrelaçamento infinito, a escala grandiosa, os novos materiais – havia se tornado clichês das escolas de arte.

Kaprow, atribui a radicalidade deste ao fato de a pintura realizar-se mediante uma performance do artista e de que liberta a pintura para além dos seus limites, em direção ao mundo real.

Ao estender a tela no chão, Pollock se viu totalmente imerso na obra: o gotejamento de tinta a partir dos quatro “lados” da tela, aplicada numa espécie de abordagem automática aparente, esclarece que não somente já não carrega a manufatura tradicional da pintura, mas se aproxima do ritual ele mesmo, pelo uso mais livre da tinta como um de seus instrumentos, sem mediações restritivas ao contato do pincel.

É nesse sentido que o surrealismo atraíra Pollock, não como uma referência de estilos artísticos, mas como uma atitude que optou por procedimentos emocionais e imaginativos mais livres em detrimento de uma operação racional e construtiva. A “dança” dos drippings e qualquer outra ação corporal entravam no trabalho conferindo um valor quase absoluto ao gesto do artista.

Tanto a posição do artista – imerso em sua própria obra, não mais necessariamente mediado por uma relação de frontalidade com a tela – como a posição do observador – para o qual a tela já não se mostrava mais como um ponto de referência – foram deslocadas, convocando-se a uma experiência estética amplificada pela consciência de uma existência temporal da obra ao vivenciá-la.

A escolha de Pollock por grandes telas serviu a muitos propósitos, o mais importante deles para a nossa discussão é que suas pinturas de escala mural romperam com a pintura como meio e tornaram-se ambientes. Diante de uma pintura, nossa dimensão como espectador em relação à dimensão daquela influencia profundamente em como nos dispomos a suspender a consciência de nossa existência temporal enquanto a vivenciamos. (…) Eu acredito que a pintura como um todo chega até nós (somos participantes ao invés de observadores), em direção ao espaço da sala.

Em se fazendo a pintura no plano horizontal do chão, a obra já não apresentava mais lado direito ou esquerdo, embaixo ou em cima; o espectador poderia vê-la de todos os pontos de vista, destruindo, segundo Kaprow, o princípio de forma. “Não adentramos a pintura de Pollock de nenhuma posição (ou muitas posições).

De nenhum lugar e em qualquer lugar (…). Essa descoberta conduziu à consideração de que sua arte dá a impressão de prolongar-se ao infinito”. Os quatro lados da tela representariam a recusa em aceitar a artificialidade de um “fim”; ponto no qual terminaria o mundo do artista e começaria o mundo real, do observador-participante.

O que temos, então, é arte que tende a perder-se para além dos seus limites, tende a preencher nosso mundo ela mesma; arte que intencionalmente olha, cujo ímpeto parece romper completa e profundamente com as tradições dos pintores desde pelo menos os gregos.

Paralelamente, as análises sobre as contribuições da action painting para a arte contemporânea aferidas por Leo Steinberg reviram a posição greenberguiana que via na pintura moderna a crítica ao ilusionismo dos grandes mestres. Em “Other Criteria”, ensaio publicado originalmente na revista Artforum em 1972, o autor relativiza a perspectiva do criticism sobre os trabalhos ambientais de Pollock, sublinhando outras dimensões da arte moderna, como a qualidade objetiva e impessoal da arte abstrata contemporânea, sua simplicidade, potência e escala.

As drip paintings expandiram a superfície de trabalho do plano pictórico à grande escala de ambiente. Sob os pontos de vista do mercado, do trabalho e da dimensão da ação, Steinberg reinterpreta a postura autocrítica da pintura dos anos de 1950: os modernistas teriam evidenciado a planaridade da pintura antes mesmo de perceber o que elas continham. Para ele, o ideal crítico greenberguiano – impassível à intenção expressiva do artista e impermeável a sua cultura – teria abortado a autoconsciência formal da pintura moderna, intimamente ligada a sua história.

Em meio à produção norte-americana do período, Steinberg vai buscar na série Flags de Jasper Johns (1930-) os indícios da pintura que colocaram em cheque tal evidência, ao negá-la como um fim em si mesma. A escolha das bandeiras por Johns relegou o problema da manutenção da planaridade ao “tema” da pintura.

Isto é, ao incorporarem entidades planas, reconhecíveis no conjunto da iconografia norte-americana, foram capazes de promover uma “sensação” de planaridade.

Outro dado importante na produção norte-americana recente é a novidade quanto à figura do “espectador”: sua convocação passa a vincular-se ao dado de autoconsciência dos trabalhos.

As chamadas flatbed paintings de Robert Rauschenberg (1925-) conteriam a dimensão da experiência, do artista e do espectador. O plano vertical da pintura, condição essencial do plano (intrínseca à ação de ver), é transformado num plano horizontal, cuja angulação promoveria uma confrontação imaginária, de ambos, artista e espectador.

“A angulação face à figura humana é a pré-condição da transformação do conteúdo.” A pintura, viu-se, assim, desafiada a romper com o que restara de “representacional” e “ilusório”.

Tais operações poderiam ser entendidas no contexto da mudança radical da temática da arte: da natureza para a cultura.

É nesse momento, ainda, que se verifica a instauração da idéia de experiência fenomenológica na arte, aproximando-a aos dados contingenciais da vida. Essas questões serão tratadas a seguir na produção da pop art, minimal art, arte povera, neoconcretos, entre outras tantas manifestações artísticas na passagem dos anos de 1950 ao de 1960.

Os anos de 1960: Da noção moderna de escultura aos trabalhos de escala ambiental

As mudanças no campo da pintura também reverberaram na tradição escultórica: a radicalidade das ações corporais de Pollock demonstraram conter dimensões espaciais inerentes ao processo criativo, precipitando uma obra feita pelo corpo e para o corpo. Os deslocamentos da action painting promoveram não só um novo envolvimento corporal do artista; simultaneamente, criaram uma nova escala da experiência para o observador.

E esses, por sua vez, foram consumados ao cabo da produção que imediatamente lhe adveio, com a inversão promovida pelas flatbed paintings rauschenberguianas. O tema da fusão da arte no mundo da vida tinha se mostrado novamente caro à produção artística a partir da década de 1950, que passa a colocar em cheque os desdobramentos dos “ideais” modernistas do início do século XX.

A crise do processo de modernização e o enrijecimento da autonomia da arte pela positividade e racionalização no período do entre-guerras colaborou para irromper a forma em direção a um campo ampliado – o que consideramos uma segunda grande ruptura. Os artistas se viram desencantados com a promessa moderna ao final da Segunda Guerra e buscaram estabelecer outras perspectivas de atuação, geralmente à margem do sistema, com a preocupação de arejar a atividade artística, ressignificar o discurso e evitar a tendência à reificação do objeto artístico.

As imbricações entre a pintura e a escultura facilitaram o esgarçamento das categorias e ampliaram o campo da linguagem exclusivamente escultórica na direção das manifestações ambientais. A novidade dessas manifestações compreendeu outras formas de atuação artística, desde as chamadas instalações, passando pelos site specific works e pelos ambientes, até os suportes inusitados do corpo e dos meios imateriais (principalmente, o vídeo).

Passadas algumas décadas da onda vanguardista, boa parte da produção “engajada” estará preocupada com sua dimensão crítica e inclusiva. Houve um grande enfrentamento da arte com as novas condições políticas, sociais e culturais que se estabeleciam.

Dentre as direções tomadas na transição dos anos de 1950 e 1960, destacamos duas sobre as quais a pesquisa se deteve. Por um lado, diversas proposições emergiam como resposta às determinações do mercado, colocando-se criticamente em relação ao estatuto do objeto artístico e à lógica da sociedade de massa; por outro, a adesão a experiências à margem do sistema era crescente, e estas cada vez mais efêmeras e frequentemente endereçadas a espaços abertos da cidade.

Ambas diziam respeito a uma postura crítica frente aos processos vorazes de institucionalização do objeto e à potência comunicativa da arte. É nesse sentido que apontam para uma dissolução da prática artística no espaço da vida cotidiana, valorizando sua qualidade transitiva.

A partir desse desdobramento “pós-utopia” e “pós-idealismos”, boa parte dos artistas tomaram como centro de suas preocupações a questão da participação; sendo que, dentre esses, um grupo significativo se viu engajado na pesquisa sobre a ampliação das dimensões da experiência na arte.

Considerando-se que a idéia de participação já havia sido sinalizada no início do século passado, numa dimensão mais utópica, agora, ela é tomada como dado intersubjetivo e inerente à realização dos trabalhos, na estrutura da própria obra. Paralelamente, a linguagem escultórica ampliava mais e mais seus limites e impregnava o meio artístico de sua qualidade espacial, direta ou indiretamente vinculada ao ambiente no qual se instaura.

Exemplos dessas manifestações se dão no desenvolvimento da produção norte-americana da minimal e da pop art; nas tendências desconstrutivas do Neodada e do Nouveau Realisme; na materialidade informe da Povera; no aparecimento de figuras experimentais na Europa, como as de Joseph Beuys (1921-1986), grupo Fluxus e Daniel Buren (1938-); nas proposições neoconcretas no Brasil, entre tantas outras.

Sob tais aspectos, o presente itinerário segue no exame das heranças do legado moderno a partir das transformações ocorridas na virada do pós-guerra e busca entender como os paradigmas artísticos até então vigentes foram questionados. Cabe aqui reconsiderar algumas observações relativas à modernidade do início do século XX.

Se, num primeiro momento, a escultura moderna suprimiu o pedestal com a intenção de questionar os valores clássicos de representação calcados no naturalismo, atualizando seus vínculos com os novos valores da vida cotidiana burguesa (como vimos com Rodin), foi no seu desenvolvimento entre os anos de 1930 e 1940 que os desdobramentos modernos reforçaram uma tendência autoreferente. Os sinais dessa tendência escultórica autoreferente já havia sido apontada por Krauss quanto ao insucesso do projeto original de “Porta do Inferno”, relativo a suas designações simbólicas e/ou representacionais.

Relembrando as observações feitas anteriormente sobre a obra, apesar de Rodin concebê-la para figurar num local particular, historicamente ela acabou sendo deslocada a um contexto museológico.

Desconectada de sua implantação original, Krauss verifica aí um tipo operação que denuncia a “condição negativa” do espaço dessa escultura: em outras palavras, a escultura moderna passava a produzir o monumento não mais em sua circunscrição histórica (espacial e temporal), mas como abstração, ao funcionar independentemente, na absoluta ausência do lugar.

A referência a Rodin aqui serve como ponto germinal para entendermos como e porquê a chamada “independência” conquistada pela modernidade em relação às categoriais legitimadas pela academia foi frequentemente tomada como razão primordial de sua existência cada vez mais autoreferencial.

Sob tal perspectiva, a escultura passava a afirmar-se exclusivamente por meio de sua materialidade, autonomamente em relação à história. Assim sendo, seriam suprimidas suas dimensões espacial e temporal, respectivamente. Krauss defende que a conquista de uma espacialidade autônoma esgota-se nos idos de 1950. É nesse momento que a “condição negativa de monumento” da escultura moderna se exauriu, já que não era mais possível nomear tais experiências como esculturas, e sim, apenas como pura negatividade.

Escultura Moderna
Robert Morris
Untitled (L-beams), 1965.
3 peças de madeira compensada pintada,
175 x 175 x 60 cm. (cada).
Instalação na Green Gallery, Nova York.

A escultura modernista aparecia como um tipo de buraco negro no espaço da consciência, cujo conteúdo positivo era algo difícil de se definir, localizável apenas por sua negatividade (…) algo que está na frente de um edifício, mas não é edifício; algo que está na paisagem, mas não é paisagem. Os trabalhos de Robert Morris (1931-) são o grande exemplo dessas novas manifestações vindas de uma herança escultural que se enunciavam como “presenças negativas”.

Eles se mostravam como “não-paisagens” e “não-arquiteturas”. As “inteirezas quasi-arquiteturais” (como nomeava Krauss) apresentadas na Green Gallery, em 1964, traduziam o sentido do que “o que está na sala, mas não é propriamente a sala”. As peças tridimensionais de madeira dispunham-se em condições variadas de apoio, explorando suas possibilidades de conformação com o entorno (horizontal, vertical, longitudinal e transversalmente).

Em estrita relação com as proporções da sala, ora se mostram como elementos constitutivos desta (sem chegar a imitá-la), ora como corpos “anatomicamente” acomodados aos cantos, paredes e pés-direitos (corporeidade que opunha-se à neutralidade da sala).

A exposição do artista na mesma galeria no ano seguinte sublinha ainda mais essa possibilidade de variação. Ao trabalhar com uma única forma em “L” disposta no espaço sob diferentes perspectivas, Morris congela uma das variantes, “formato” (cujo conhecimento é dado a priori), para dar voz à variante “disposição” (das peças), acessada fundamentalmente pelo corpo em relação ao espaço.

A relativização espacial do módulo “L” é experimentada pelo corpo no tempo ao percorrer a obra. Segundo o artista, a obra deveria se apresentar como uma Gestalt, uma forma autônoma, específica, imediatamente perceptíve.

Sem hierarquia uma sobre as outras, as peças idênticas se aproximam do observador por sua proporção humanizada (medindo 1,75 m. de cada lado) e essa experiência modificaria a própria existência do corpo-dimensão em relação ao espaço.

Ao contrário do que a crítica mais formalista entendia por repetição formal e asséptica, Morris defendia que “a simplicidade da forma não se traduz[ia] em necessariamente por uma igual simplicidade na experiência. (…) As formas unitárias não reduzem[iam] as relações. Elas os ordenam[avam].” Ainda segundo Morris, “o objeto propriamente dito não se tornou menos importante. Apenas, ele não é suficiente por si só.”

É por esse motivo, de uma intersubjetividade intrínseca, que a experiência da obra se fazia necessariamente no tempo. No mesmo ano de 1965, a proposição da série Mirrored Boxes (caixas de madeira em forma de cubos, forradas de vidro) fora da galeria, em espaço aberto, confundiu a percepção do observador ao misturá-los à grama e às árvores do entorno.

Para Krauss, a obra só se distinguia de fato por sua existência diametralmente oposta à da natureza. Mais uma vez, o artista colocava em dúvida a existência autônoma da arte, em relação ao objeto e ao contexto. O que havia de “dessubstancialização” nas peças polidas de Brancusi (tratadas anteriormente) aparece aqui como pura exterioridade, não só refletindo o entorno, mas borrando visualmente os limites entre obra e entorno.

Ambos os casos se aproximam da realização dúctil do objeto industrial e já não há mais partes compositivas e/ou decomponíveis (passíveis de serem analisadas). Porém, a escolha de Morris pela forma reduzida do cubo indica um descompromisso com a natureza estética da figuração e da matéria; a qualidade orgânica centrava-se exclusivamente na existência em relação, nas variações perceptivas dos módulos pelo corpo.

O campo ampliado da escultura ao qual a autora se refere seria, então, resultado da problematização do conjunto das oposições não-paisagem e não-arquitetura – que são estendidas também nos pares construído e não-construído, cultural e natural. Entre elas a categoria modernista “escultura” estaria suspensa, bem como, os limites entre esses diversos lugares.

Escultura Moderna
Robert Morris
Sem título (Mirrored Cubes), 1965.
4 peças de madeira forradas com placa
espelhada, 61 x 61 x 61 cm. (cada).

Para a crítica, é sob esse entremeio que uma nova produção escultórica parece erguer-se. Na mesma esteira minimalista, tal como o uso de uma Gestalt (de formas típicas e unitárias) por Morris servia para se evitar a divisibilidade do trabalho, os “objetos específicos” nomeados por Donald Judd afirmavam-se por sua tridimensionalidade com existência específica, real e atual, diametralmente opostos ao espaço da representação, ilusionista.

O uso de uma materialidade industrial, impessoal, reforça a ausência de uma valoração do trabalho pelo traço do artista. Ao contrário, este aparece como um propositor de situações e relações, nas quais o grande protagonista (diferentemente, por exemplo, de Pollock) passa a ser o sistema obra-observador-contexto.

Opondo-se diametralmente à escultura que, como a maioria das pinturas, é “feita parte por parte, por adição, composta” e na qual elementos específicos se separam do todo, e estabelecem relações no interior do trabalho, os objetos específicos minimalistas operam sem partes, e por isso mesmo, sem hierarquia. Além da aparência industrial bem acabada, a ocorrência de formas simples (onde o cubo é a mais freqüente) e de uma disposição seqüencial de peças idênticas no espaço reforçam a apreensão de “uma coisa depois da outra”.

À essa apreensão o historiador Michael Fried remeteria o interesse da minimal art em uma totalidade perceptiva. Aqui, as controvérsias sobre tal produção se acirraram, principalmente com o debate travado entre Fried e Judd sobre os “objetos específicos”. Em 1967, no ensaio “Art and Objecthood”, Fried atribui à “novidade” minimalista uma literalidade e uma existência teatral, problemáticas para o contexto da arte.

O aspecto literal da minimal art significava, para o autor, uma “objetidade” [objecthood] que garantia a identidade desse algo que não era nem pintura nem escultura.

Entretanto, no argumento de Fried, a adoção literalista da “objetidade” – opostamente ao pleito minimalista da valorização contextual do trabalho (pelo objeto) – correspondeu ao pretexto para um novo gênero de teatro: “a sensibilidade literalista é teatral porque, antes de tudo, é relativa às circunstâncias atuais nas quais o espectador depara-se com o trabalho literalista.” O autor critica esse ideal de presença dos minimalistas (que para estes é o dado da intersubjetividade) e pensa o trabalho de arte na dimensão da cultura.

A lógica argumentativa de Fried teve ressonância em outras interpretações provindas da crítica especializada. É comum encontrarmos posturas deliberadamente contra à novidade da minimal art, tida como autoritária e conservadora, forçosamente teatral. Outras interpretações a tomam como uma exaltação do “idealismo modernista”.

Para Georges Didi-Huberman, a estabilidade temporal do cubo nas obras de Judd e Tony Smith (1912-1981) significou uma idealidade geométrica que rejeitava todo e qualquer expressionismo estético para vir-a-ser quase corpos, o que o autor chamou de um antropomorfismo em obra.

Aos olhos do crítico, o argumento da especificidade de Judd corresponde à definição de sua posição contra o ilusionismo pictórico; e a literalidade do espaço minimal (como objeto tridimensional, produtor de sua própria espacialidade, real), contra o iconografismo da escultura tradicional.

O itinerário busca reverter o ponto de vista calcado na apreensão formal do objeto minimalista e trata de sublinhar sua importância histórica como uma das experiências artísticas que questionou os limites da linguagem escultórica e apontou para sua amplificação.

O positivismo atribuído aos minimalistas é contemporizado pela relevância com que a percepção é posta nos trabalhos (como visto nos “objetos específicos” de Judd e nas formas unitárias de Morris). Embora a experiência surpreendente do minimalismo seja difícil de ser recapturada, sua provocação persistiria em termos conceituais.

Os artistas da minimal teriam colaborado para a culminação do esgotamento do espaço transcendental, do que ainda havia resgato dele na arte moderna. Não à toa, críticos tais como Foster e Krauss, respectivamente, viam naqueles o início de uma crítica pós-modernista de suas condições institucionais e discursivas e a expressão de “um ataque à própria possibilidade de significação da arte”

A tendência a ações ambientais cada vez mais articuladas numa ação temporalizada, endereçada ao seu acontecimento espaço-temporal, somou-se a um desejo cada vez mais presente da efetivação da arte numa matriz pública.

Na reversão crítica da minimal, o ensaio “The Crux of Minimalism” de Foster reinterpreta as vertentes críticas que negaram tal produção ao julgarem-na inexpressiva (no momento de seu aparecimento) e traça uma genealogia (a partir de 1960) onde sublinha os envolvimentos dialéticos desta com o modernismo tardio e as neovanguardas artísticas. Aos olhos de Foster, o minimalismo significou a construção de uma mudança de paradigma na direção das práticas pós-modernistas que continuam a ser elaboradas hoje.

A ausência do lugar como site-specificity, típica das esculturas abstratas, foi refutada pelos trabalhos, bem como qualquer resíduo antropomórfico representacional, típico da linguagem escultórica clássica. Esses, agora, reposicionam-se em relação aos objetos e são redefinidos em termos de lugar. Essa operação também transformaria a relação entre objeto de arte e observador.

O público já não contempla a superfície mapeando-lhes as qualidades intrínsecas; agora ele é conduzido a explorar outros pontos de vista de uma intervenção em particular num dado local. Para o autor, o minimalismo tenta superar o dualismo sujeito-objeto na experiência fenomenológica, à medida que atribui complexidade ao que se tomaria como uma pureza da concepção ao reconhecer o fato contingente da percepção – do corpo em um dado espaço e tempo particulares.

O minimalismo não só rejeitou a base antropomórfica da maioria da escultura tradicional (ainda residual na gestualidade da pintura expressionista abstrata), como também recusou o domínio da ausência do lugar da maioria da escultura abstrata. Em resumo, com o minimalismo a escultura não está mais isolada, sobre um pedestal ou como arte pura, mas é reposicionada dentre objetos e redefinida em termos de sua localização.

Nessa transformação, recusado o espaço seguro e soberano, o observador é remetido ao aqui e agora; e ao invés de examinar a superfície de um trabalho para um mapeamento topográfico das propriedades do seu meio, ele ou ela é levado a explorar as conseqüências perceptivas de uma intervenção em particular num dado lugar. Isso é a reorientação fundamental inaugurada pelo minimalismo.

A partir daí, a arte reivindicaria uma dimensão da ação, incorporando a participação do observador na sua própria lógica interna. Paralelamente, tal incorporação tomava outras feições, tanto nas expressões de caráter mais sensorial, como a Arte Povera, como na materialização de uma crítica institucional, à exemplo dos trabalhos de Daniel Buren.

“Arte vem de um tipo de condição experimental na qual o indivíduo experimenta a partir de sua vivência.” A frase do músico John Cage citada por Germano Celant dá o tom do grupo de artistas reunidos pelo crítico em 1969 no livro Art Povera: Conceptual, Actual, Impossible Art?. A publicação, mais do que documentar uma seleção de trabalhos, tinha como propósito reunir diferentes artistas cujo ponto nodal era a preocupação com um tipo de experiência vital por meio da arte.

No entendimento de Celant, arte, vida e política poveri não são aparência nem teoria, não se perdem em suas definições. Ao invés de terem como objetivo a representação da vida, querem apenas vivê-la – sentir, saber, viver o que é real.Hostil ao controle cultural, artístico e intelectual, o artista povero abondonara o ponto de vista sobre o artista que o tomava como “antena do mundo”, e redescobrira seu interesse em si próprio, ao atuar arriscadamente em um espaço incerto.

Celant acabou rejeitando os trabalhos da minimal e da pop art tidas como “moralistas”, criadoras de uma dimensão ilusionista da vida e da realidade. Em relação a estas, argumentava que tais correntes se fundamentavam numa interpretação da realidade, e não em uma intervenção; e, por isso mesmo, seriam movimentos reativos, e não propositivos.

Para ele, a arte deveria não apenas criticar as imagens populares e ópticas que colaboram para sua conscientização, como também, e mais importante, deveria libertar a circulação de energia vital, natural, do mundo das coisas (tomado pela vitalidade do cotidiano).

A crítica povera já não acredita mais em mercadorias culturais e, sim, apenas na sua própria experiência. Celant referia-se ainda a uma dimensão antropológica de um trabalho autêntico e não alienado, onde o homem está identificado com a natureza . Esses artistas colocavam-se com total disponibilidade para o mundo, sem restrições.

Ainda sobre os enfrentamentos da arte em relação ao mercado e a sua institucionalização, o legado da Arte Conceitual, desenvolvida em meados da década de 1960, também teve grande influência para os desdobramentos contemporâneos.

A exposição pioneira “0 objetos, 0 pintores, 0 esculturas”, organizada por Seth Siegelaub em Nova York, no ano de 1969, foi uma das grandes mostras que desafiaram a usual política das exposições acadêmicas (de “pendurar quadros nas paredes”), num contexto repleto de exposições ambientais provocativas, até então inimagináveis.

Para Gregory Battcock, um dos organizadores dos escritos sobre o conceitualismo, o clima que favoreceu novos critérios surgiu com a consciência de que, se uma arte quer manter sua vitalidade, deve comprometer-se continuamente com o terreno dos valores culturais.

A transformação destes, que em outros tempos foi tema próprio da arte, veio decidida “pelas pressões políticas, militares, econômicas, tecnológicas, educativas e publicitárias.” Aos olhos de Kaprow, toda boa arte está ligada a processos de desenvolvimento cultural mais amplos, e tais formas de arte são, a princípio, determinadas por esses valores culturais.

Deduzimos daí que ambas, arte e cultura, são inseparáveis: a mesma qualidade de certa arte, especialmente dentro da estrutura da arte conceitual, vem subjugada por sua efetividade no momento de modificar nossos valores culturais.

Kaprow conclui que, ao final, uma boa arte conceitual é aquela na qual realmente se rompe algum molde estético estabelecido ou alguma regra cultural.

Vimos até aqui que a partir de 1960 as novas manifestações artísticas irão reivindicar um espaço alargado para o campo da arte, ao explorar a percepção do trabalho de arte por meio de suas implicações cognitivas, dos diferentes pontos de vista do objeto em relação ao sujeito que percebe e ao contexto em que se apresenta; bem como irão se debater com os enfrentamentos do mercado, e de outros processos de institucionalização da arte, ao atuar crítica e mais decisivamente no mundo da cultura.

A partir daqui, o itinerário elegeu como foco para o estudo das manifestações ambientais as novas dimensões do trabalho de arte contemporâneo, pressupostas na poética do site specificity norte-americano e nas experiências inaugurais do Neoconcretismo brasileiro.

As manifestações ambientais

Apesar de os minimalistas, tal como Morris, refutarem qualquer aspecto relacional nos trabalhos ao eliminar todo tipo de detalhe ou operação compositiva por partes, não deixaremos de observar que a experiência inerente à obra faz com que a efetivação do discurso artístico se dê no âmbito da relação (obra-observadorcontexto). É nesse paradoxo minimalista que residiria, então, sua potência.

Os exemplos pelos quais passamos até aqui ilustraram a emancipação da obra como forma-objeto relacional e como ação-objeto temporal (quanto à implosão da frontalidade e sua evidência corpórea) e contribuem, assim, para o entendimento dos impasses do paradigma moderno, ao longo do século XX, com o qual dialogaram e perante o qual se contrapuseram.

A demanda por uma experiência relacional da arte teve repercussão mundial na década de 1960. Podemos identifica-la tanto nas ações experimentais em espaço abertos, em meio à cidade, tal como se vê nas intervenções urbanas de artistas como Richard Serra; em proposições críticas abordando a nova dinâmica instaurada no território urbano, a exemplo do que veremos em alguns trabalhos de José Resende, no itinerário #2; como também nas manifestações ambientais de Hélio Oiticica (em parte, abordadas no itinerário #3).

A dissolução da matriz modernista da escultura pelas produções do minimalismo, da arte povera e dos neoconcretos (para citar apenas alguns movimentos discutidos na dissertação) ilustra a transformação da escultura moderna na direção das manifestações ambientais, tais como as instalações, os ambientes, os site specific works e os não-objetos.

Em sua maioria, pleiteavam intervir mais diretamente no espaço, muitas vezes surgindo em meio ao contexto urbano aberto e suas brechas espaciais, para o que solicitavam um observador participativo. Eis o foco dos próximos itinerários.

próximos itinerários. É a partir dos anos de 1960 que o defrontamento dos artistas aparece de modo mais contundente em relação ao “colapso dos gêneros” e à exigência de se projetar mais decisivamente no espaço, por meio da exploração de suas dimensões físicas e temporais, bem como em termos de uma abordagem crítica, institucional, cultural e social.

A escultura, tomada aqui próxima à poética do site specificity, passou a se realizar não mais como ato de agregar um objeto a um espaço, mas como uma forma de se constituir um lugar. São trabalhos que se projetam para além das noções auto-suficientes de forma e volume, da tradição de esculpir e moldar. Na mesma época, algo muito próximo também ocorria na esfera da arquitetura, dentre aqueles que pensavam a atividade nos termos de uma ação projetual e perceptiva sobre a cidade, dentre eles Aldo Rossi, David Lynch e Gordon Cullen.

Rossi considera que o novo fenômeno das grandes cidades substituiu a idéia de espaço moderno pela noção de “locus”, o que significa dizer que a dinâmica pós-industrial não mais viabiliza um pensamento calcado na prática projetual abstrata – tal como vimos nos primórdios do século XX com a ideologia moderna corbusiana. A partir de 1960, a abordagem possível deveria compreender esse novo espaço como lugar, algo real, concreto e específico.

A nova condução da arte traduzia-se num tipo de destruição progressiva da forma-objeto.

No Brasil, ela foi expressa principalmente pela originalidade do movimento neoconcreto: a crítica à idéia de objeto foi inicialmente conceituada na “Teoria do não-objeto” de Ferreira Gullar, atento às novidades trazidas por Lygia Clark; e, daí pra frente, seu estilhaçamento seguiu na tendência à projeção do trabalho à uma escala ambiental.

Escultura Moderna
Lygia Clark
Bicho (Máquina), 1962.
Metal dourado, 55 x 65 cm.
Col. Adolpho Leirner, SP.

Desde os anos de 1950, dentro do circuito cultural artístico, São Paulo anunciava a recuperação de uma instância integradora, de origem moderna, cujo braço estrutural foi estimulado pelo espírito cosmopolita paulistano em meio à projeção industrial da cidade e à modernização dos seus equipamentos.

As bienais de arte tinham uma presença ostensiva da vertente concreta, e sua evidência foi expressa no 1º Prêmio de Escultura da mostra inaugural de 1951 (Unidade Tripartida, de Max Bill). A vertente concreta paulista ocupava-se na direção a uma concatenação das linguagens, de onde saíram ricas pesquisas visuais sobre a percepção, e que deu origem, entre outras coisas, à novidade da produção gráfica do período.

As presenças singulares de Waldemar Cordeiro, espécie de mentor do grupo Ruptura (que teve sua primeira exposição em 1952, reunindo os trabalhos dos “futuros” concretos), dos experimentos cinéticos de Abraham Palatinik, com luz e cor, dos volumes dinâmicos de Mary Vieira e das fotoformas de Geraldo de Barros são exemplos de como a arte aspirava cada vez mais a um diálogo com outras esferas do conhecimento, e da vida.

Mesmo que seu caráter experimental se restringisse ao âmbito da pesquisa visual – em tom programático, o Concretismo colaborou para que a arte se contaminasse, produtivamente, detonando um processo de experimentalismo ainda mais radical na década seguinte. A década de 1950, apesar dos esforços culturais, produziu um vetor de modernização conjugado à internacionalização da produção ainda insuficiente para enraizar-se e transformar o que era espírito disperso em impregnação generalizada na vida social.

Segundo Salzstein, a objetividade produtivista do grupo concreto foi reelaborada na produção subseqüente pela atuação neoconcreta com base existencial, por meio de uma mútua impregnação entre sujeito e mundo. Apesar de identificada uma tendência geral à objetividade, a autora considera que no primeiro momento, paulista, esta foi conduzida por um acento crítico; já num segundo momento, carioca, a bandeira levantada foi a da feição criadora.

De fato, as bases construtivas tinham inspirado a produção que desde então reivindicara uma atuação mais próxima do sujeito. Porém, o Neoconcretismo mostrava-se mais livre e isento de mediações lingüísticas prédeterminadas, com total disposição, criadora, para atuar numa cultura em processo de formação.

Mesmo dentro do grupo neoconcreto, Ronaldo Brito sinaliza algumas dissonâncias positivas, as quais divide em duas amplas vertentes que orientam um discurso em torno da reposição “humanista”: aquela que aparece “tomando a forma de uma sensibilização do trabalho de arte”, ao tentar revitalizar as propostas construtivas até então vigentes, mantendo sua especificidade e fornecendo uma informação qualitativa à produção industrial (Willys de Castro, Franz Weissmann, Hércules Barsotti, Aluísio Carvão e Amílcar de Castro); e aquela que ansiava romper com os postulados construtivos (Oiticica, Clark, Lygia Pape), sobretudo ao operar “uma dramatização do trabalho, uma atuação no sentido de transformar suas funções, sua razão de ser, e que colocava em xeque o estatuto da arte vigente.”

“O neoconcretismo surge da necessidade de alguns artistas de remobilizar as linguagens geométricas no sentido de um envolvimento mais efetivo e ‘completo’ com o sujeito”, o que também implicou aqui no empenho em transformar o observador em participante, para o que deveriam romper com as categorias tradicionais das belas-artes.”

Escultura Moderna
Hélio Oiticica
Núcleo 6, 1960 – 63.
10 painéis pintados dispostos pendurados ao teto, aprox. 183 x 228,5 x 198cm.
Col. Projeto Helio Oiticica, RJ.

Aos olhos do crítico, a arte neoconcreta como movimento cultural “permanecia necessariamente no terreno especulativo, no terreno da arte enquanto prática experimental autônoma”, à margem do circuito consolidado.

Essa marginalidade foi tratada por Brito como lateralidade neoconcreta, cuja especificidade possibilitou criticar o próprio estatuto social da arte. “O neoconcretismo (…) tinha uma dinâmica de laboratório, e isso só era possível pela ausência de confronto com um mercado”. Ao lado disso, os novos propositores neoconcretos compreendiam sua atividade cultural num terreno alargado, deslocado de qualquer instrumentalização, envolvendo as interrelações do homem com o seu ambiente.

Durante a época de seu envolvimento com o grupo neoconcreto, Gullar escreveu o “Manifesto Neoconcreto” (datado de 1959), pelo qual valoriza a experiência direta da percepção sobre a obra. O autor propunha uma releitura de toda a arte construtiva, dando prevalência à intuição criadora sobre o objetivismo científico da arte concreta.

Diz ele: “não concebemos a obra de arte nem como ‘máquinas’ nem como ‘objetos’, mas como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica” (no que parece “antecipar” o paradoxo minimalista entre literal/relacional, objeto tautológico/experiência fenomenológica).

Um dos grandes motores do pensamento de Gullar residia na novidade sensorial de Lygia Clark. Desde sua exposição em São Paulo, de 1958, onde expunha suas telas de 1956, o crítico inquietava-se com as extrapolações no campo da pintura produzidas pela artista ao anular os seus limites objetuais do quadro (ao incluir na composição a própria moldura, como vemos em “Ovo”, de 1953).

A “experiência radical” de Clark tinha deslocado os interesses da pintura enquanto espaço de representação simbólica para torná-la ela mesma objeto da pintura.

Não é à toa que sua “Teoria do não-objeto”150, de 1960, inspirou-se num encontro na casa da artista, onde toma contato com uma construção tridimensional feita com placas de madeira pintadas que se superpunham como lenha numa fogueira, a qual denomina “não-objeto”.

Para o autor, a idéia do “não-objeto” não se esgota nas referências de uso, não se refere a nenhum objeto real, mas apenas se apresenta, funda em si mesmo sua significação. Na percepção figura/fundo, este já não é o de um espaço metafórico, mas do espaço real; o espectador é solicitado a usá-lo, à contemplá-lo na ação e no tempo.

É nesse processo de desintegração do objeto artístico que os trabalhos de Hélio Oiticica passam a conquistar uma dimensão ambiental, capazes de impregnar-se do mundo em estreito diálogo com o observador-participante, o qual os acionaria numa experiência ambiental.

Em suas análises sobre o parangolé, o artista formulou a chave do que seria uma arte ambiental, “eternamente móvel, transformável, que se estrutura pelo ato do espectador e o estático, que é também transformável a seu modo, dependendo do ambiente em que esteja participando como estrutura”. Por extensão, o próprio conceito tradicional de exposição muda, “de nada significa mais ‘expor’ tais peças (…), mas sim a criação de espaços estruturados, livres ao mesmo tempo à participação e invenção criativa do espectador” .

No livro Aspiro ao grande labirinto, Oiticica defende a chamada “escala ambiental” pela afirmação da arte, a partir dos modernos, no domínio da “duração” e, conseqüentemente, pela mudança na posição do artista expressa no espaço e no tempo. Na arte não-representativa, o tempo seria o principal fator.

Nas palavras de Oiticica “o artista temporaliza esse espaço [da obra de arte] nele mesmo e o resultado será espaço-temporal”. Desde sua produção inicial, durante a fase neoconcreta, a pintura deveria sair para o espaço e se completar não mais em superfície, mas na sua “integridade profunda”. Lado a lado com as novas possibilidades para a pintura, o artista propunha uma inversão do trabalho ambiental na direção da arquitetura.

Podemos nos reportar aqui ao início da década de 1960, período em que desenvolve as séries dos Núcleos e dos Penetráveis, séries que pressupunham e envolviam a figura do espectador. “Quero que a estrutura arquitetônica recrie e incorpore o espaço real num espaço virtual, estético, e num tempo, que é também estético.

Seria a tentativa de dar ao espaço real um tempo, uma vivência estética.” De par com a produção brasileira da década, o trabalho pretende seguir a análise da crítica norteamericana Miwon Know sobre a genealogia da poética do site specificity, pela qual aborda as implicações e as diversas ramificações em que desembocaram essas atuações nas últimas três décadas e, em especial, na produção dos Estados Unidos.

Suas análises também foram cotejadas às considerações de James Meyer e Douglas Crimp, bem como aos escritos de Richard Serra e José Resende sobre suas próprias produções como artistas (como veremos no itinerário #2).

Na história do termo, Kwon identifica uma primeira ocorrência do site specific work com o advento do minimalismo, dita “fenomenológica”, intimamente ligada às contingências físicas do local da obra; uma segunda, “institucional/social”, entre os anos de 1960 e 1970, com o acirramento da crítica institucional pelos artistas, período em que o lugar para o qual as obras são designadas se amplifica para além de suas qualidades físicas e espaciais, no contexto da cultura; e uma terceira, “discursiva”, a partir do final dos anos de 1980, momento em que a crítica ao confinamento cultural das instituições é alargada para a esfera mais ampla da cultura.

Na primeira ocorrência, fenomenológica, quando desponta a produção minimalista, o espaço ideal e não-contaminado dos modernismos é deslocado – seja pela materialidade da paisagem, seja pela impureza e ordinariedade do espaço do cotidiano. O espaço da arte deixava de se apresentar como tábula-rasa da história, algo transportável, auto-referencial, e se afirma como lugar real, como atualidade.

Escultura Moderna
Daniel Buren
Photos-Souvenirs: Within and Beyond the Frame, 1973.
Work in situ, John Weber Gallery, Nova York.

Por outro lado, a dimensão real da minimal apegava-se exclusivamente, segundo Kwon, às leis da física, a partir de noções como gravidade, “presença” e fixidez.

O “objeto” era singular e multiplamente experimentado no aqui e agora através da presença corporal de cada sujeito. Tal experiência fundava-se na reestruturação do sujeito na medida em que a crítica ao modelo cartesiano instaurou uma nova dimensão da experiência, fenomenológica, caracterizada por uma resistência às pressões institucionais e mercadológicas do universo artístico.

A segunda ocorrência, denominada “institucional/social” se funda nas várias formas de crítica institucional a partir do final da década de 1960. A land/earth art, process art, installation art, conceptual art, performance/body art e outras tantas formas desse tipo de abordagem crítica e conceitual desenvolveram modelos de site specificity que desafiaram, aos olhos de Kown, a “inocência” do espaço e a participação presunçosa do ponto de vista universal ao aderir a um modelo fenomenológico.

O lugar foi tomado para além dos seus atributos físicos e espaciais, num contexto cultural definido pelas instituições de arte. Em seu desdobramento conceitual, o conteúdo crítico manifestava-se na oposição à convenção normativa da arquitetura imaculada dos espaços expositivos (galeria/museu) como função ideológica e como dissociação entre o espaço da arte e o espaço da alteridade.

Trabalhos como “Within and Beyound the Frame” de Daniel Buren são exemplos desse novo posicionamento crítico perante às instituições de arte, ao estender o trabalho para além dos limites da galeria, sob o olhar do transeunte, num contexto ampliado.

A terceira ocorrência, “discursiva”, veio a se formar no final dos anos de 1980, numa atuação crítica ao confinamento cultural da arte promovido pelas instituições. Os trabalhos buscaram um engajamento pela crítica da cultura; os lugares apresentavam-se como situações culturalmente específicas que produziam expectativas e narrativas particulares relativas à arte e à história da arte.

A partir de então, os processos de desestetização e de desmaterialização da própria obra se explicam pela preocupação em se integrar a arte mais diretamente com o domínio do social. Para Kwon, o crescente engajamento com a cultura favoreceu lugares públicos externos em relação à tradição de confinamento da arte, física e intelectual, própria do modernismo.

Aos olhos da crítica, atualmente, o que distingue a produção de arte advinda da poética de site specificity em comparação às primeiras ocorrências é o esgarçamento no modo como a arte se relaciona com a realidade do local e com as condições sociais do quadro institucional.

Em sua interpretação, esse lugar não é definido como precondição e, sim, produzido como “conteúdo” pelo trabalho e depois verificado por suas convergências com uma formação discursiva existente. A declaração de Richard Serra tomada do ponto de vista da poética do site specificity, pela qual nega a possibilidade de deslocamento da obra “Tilted Arc” implantada na Federal Plaza em Nova York (cujas análises veremos mais a frente), sinalizou uma crise apontada por tal especificidade, expressa em seu caráter intransferível, e até certo ponto autoritário, relativo à versão que priorizaria uma inseparabilidade física entre o trabalho e o seu lugar de instalação.

James Meyer diferenciou esse modelo de práticas recentes orientadas pelo lugar em termos de um “lugar funcional”: [O lugar funcional] é um processo, uma operação ocorrendo entre lugares, um mapeamento de filiações institucionais e discursivas e dos corpos que se movem entre eles (o artista sobretudo).

É um lugar informacional, um lócus de sobreposições de textos, documentações em fotografias e vídeo, lugares e coisas físicas… é uma coisa temporária; um movimento; uma cadeia de significados através de um foco específico. Mais do que espacialmente, o lugar passa a ser estruturado (inter)textualmente.

Essa transformação do lugar, segundo Kwon, abre mão da sintaxe de mapa, de caráter simultâneo e sincrônico, e passa a atuar sob forma de um itinerário, numa seqüência fragmentada de eventos e ações através do espaço, “uma narrativa nômade cujo caminho é articulado pela passagem do artista.

Ao mesmo tempo “textualiza espaços e espacializa discursos”. O esgarçamento da noção de especificidade, pela autora, não indicou uma reversão para a autonomia modernista da ausência do lugar; ele passou a ser fruto das novas pressões sobre as práticas engendradas por imperativos estéticos e por determinações históricas externas.

Desde o final dos anos de 1980, Kwon detecta que o número de trabalhos “circulantes” (nômades) que operam na chave da poética do site specific work tem aumentado. A amplitude dessa mobilização do artista redefiniria o status mercadológico da obra de arte, a natureza da autoria artística e a relação arte-lugar.

Essas colocações abrem caminho à análise sobre a nova figura do artista (próximo ao etnógrafo de Foster) e da arte posta na cidade (emancipadas), idéias que serão desenvolvidas nos próximos itinerários, através da leitura de algumas obras de Resende e Oiticica. Os próximos intinerários pretendem, examinar algumas manifestações em escala urbana e como o fenômeno do “embelezamento das cidades”, típico da década de 1980, esteve imbricado num processo de crise dos paradigmas modernos na arte, na arquitetura e no urbanismo.

Escultura Moderna
José Resende
Sem título, 1994.
Peça efêmera com blocos de granito e guindastes.
Arte cidade: a cidade e suas janelas, Antigo Matadouro Municipal, São Paulo.

Os desafios do trabalho de arte contemporâneo ao reivindicar uma inserção na cidade: José Resende e Richard Serra.

Em entrevista concedida no início do ano à presente pesquisa, o artista José Resende nos conta que o trabalho desenvolvido durante a primeira mostra do Arte Cidade , em 1994, relacionava-se diretamente à imagem do tempo da construção no meio da cidade, dos aparatos construtivos de grande escala, algo da ordem do espetáculo da metrópole, “um monte de gente fica vendo o bate-estaca, vê se pega o dedo de alguém… essa coisa meio perversa”.

Tratava-se de uma instalação efêmera com blocos de granito e guindaste. Os elementos constitutivos da instalação foram identificados no próprio terreno oferecido pela organização do evento. Sob a orientação do artista, o mecanismo de içar era acionado e passava a mover os blocos empilhados, como se reorganizasse a construção infinitamente.

A orquestração dos módulos construtivos marcava um procedimento engenhoso do artista ao lidar com a instabilidade da matéria urbana chegando mesmo a lembrar a imagem de um castelo de cartas. Os pontos de apoio entre os módulos mostravam-se precários; as pedras eram irregulares, mas resistiam ao conjunto numa certa conformação pela inércia proporcional ao grande peso.

É como se a construção nunca chegasse a uma existência estável por completo. E sua incompletude, por conseguinte, construía, assim, uma imagem-metáfora do que apreendemos como idéia de “cidade” nas últimas décadas.

Sob o caráter instável da obra, Resende esclarece que “o trabalho não tem uma configuração que lhe seja o certo. Há sempre uma ação, e essa ação está impressa no sentido do trabalho; está ali, presente.”

O gesto, que junta uma coisa à outra, que equilibra uma peça sobre a outra, é pressuposta na forma. As ações são partes constitutivas da obra e, neste caso, são necessariamente evidenciadas na instalação, carregam uma memória daquele esforço que generosamente se mostra à compreensão de como aquilo é feito, como se estabiliza.

Ao vivenciar a obra, o observador refaria essa ação pelos indícios do trabalho do artista. As reatualizações duraram cerca de dez dias, a configuração era refeita a cada momento. O artista relata que “cada vez que tinha que se equilibrar, aquilo era um pouco diferente. A idéia do guindaste é muito essa coisa mesmo, do canteiro de obra onde você é meio hipnotizado por aquelas máquinas, aquelas coisas”.

As proposições de Resende desde o início da produção, em meados dos anos de 1960, utilizam-se da materialidade urbana como temática para o trabalho. Se considerarmos que o percurso traçado pelo artista até então no universo da arte ergue-se num substrato construtivo – influenciado pela formação acadêmica em Arquitetura – e que a operação artística deste aproxima-se de algumas preocupações originais do pensamento escultórico – quanto à sua sensibilização em relação ao peso e à matéria – a construção e desconstrução do empilhamento segue na influência de ambos os campos.

Seus interesses pela matéria continuam em evidência, tanto quanto suas inquietações sobre a não fixidez do trabalho de arte numa perspectiva contemporânea de cidade.

As incertezas da matéria e a força gravitacional transfiguradas em comportamentos instáveis também foi assunto caro para o norte-americano Richard Serra. Na série dos props, o artista parte da feição eminentemente desequilibrada entre corpos distintos, feitos de chumbo e geralmente agrupados aos pares, para investigar a capacidade de dois pesos equilibrarem-se através do esforço de compressão concentrado entre as peças e entre essas e as paredes nas quais o conjunto se apóia.

Cada peça coloca um problema gravitacional diferente. É o resultado do contato entre essas situações gravitacionais (e as qualidades físicas dos materiais) que confere a expressão do trabalho. No caso de Serra, as construções instáveis também seguiu na cisão instaurada pela noção ampliada de escultura com o caráter narrativo e compositivo tradicional, que de certo modo vinha sendo preconizada desde as vanguardas.

A forma aberta passa a ser determinada em função da massa, gravidade, peso e volume; a escultura aproveita-se do potencial físico do material e da forma para controlar o espaço e estabelecer uma situação inusitada para o comportamento daquele. Ativa, a obra procura surpreender a experiência perceptiva do espectador para além de uma visibilidade puramente óptica.

Essas novas situações espaciais do trabalho de Serra vêm muito das preocupações com o peso, um dos valores eleitos mais importantes na concepção do trabalho, desde o filme “Mão agarrando chumbo”, de 1969.

“O modo de equilibrar peso, adicionar e subtrair peso, concentrar peso, dispor peso, apoiar peso, localizar peso, trancar peso; os efeitos psicológicos do peso, a desorientação do peso, o desequilíbrio do peso, a rotação do peso, o movimento do peso, a direcionalidade do peso, a forma do peso” são verbos gravitacionais dos quais Serra se apropria e indicam a existência intrínseca do corpo em relação, seja esta com outro corpo, com o entorno espacial ou com o observador.

Tal como Serra parte das estruturas gravitacionais e da existência relacional dos corpos, muito do que Resende propôs até hoje tem origem nesse vocabulário escultórico. Por outro lado, sua prática diz respeito à um contexto indefinido e frágil – pouco afirmativo em relação ao mundo pragmático norte-americano, cuja dinâmica irregular do “por fazer-se” (cultural, social e urnanisticamente), reflete uma disposição para uma maior maleabilidade no trato com a matéria e com o trabalho de arte posto na cidade.

Segundo relata Resende, a ação do guindaste no Arte Cidade vem fundamentalmente da referência visual do artigo publicado na Malasartes, em 1971. Nele, Resende documenta um percurso por São Paulo em imagens preto e branco; o ensaio, que também integra fotos de Miguel Rio Branco, contem recortes temporais e espaciais de situações urbanas em que os materiais apresentam-se em mobilidade, mesmo aqueles que perderam sua função com o uso.

Logo na primeira página, os indícios de um “estado de construção eterno” aparecem na fotografia de uma grande avenida (supostamente de tráfego intenso) com a imagem de um guindaste em ação ao fundo.

Resende alerta para o espetáculo urbano: como concorrer com essas estruturas na paisagem da cidade? “A monumentalidade de certos equipamentos garante à sua presença uma interferência significativa na paisagem e o inusitado do seu desenho, ao nível da arte, é às vezes mais instigador”.

Quais seriam os monumentos da cidade contemporânea?, a mesma pergunta parece ter sido feita por Smithson no seu passeio pelos subúrbios de Nova Jersey, em “Monumentos de Passaic” (trabalho anteriormente citado), no qual documenta o percurso numa seqüência de imagens, como se fossem anotações de um antropólogo descritas no caderno de campo.

A maneira como as fotos foram diagramadas nas páginas da Malasartes compôs uma espécie de caleidoscópio urbano das circulações diárias.

Conta Resende: “a gente fotografou várias coisas, o recorte da fotografia de certas intervenções, que um cano de bueiro cria no meio de um negócio; ou num caminhão, onde você vê cargas sendo transportadas como essas turbinas.

Tem coisas absolutamente fantásticas em escala”. A reorganização dos elementos encontrados em circulação parece ter sido orientada não por um sistema classificatório pura e simplesmente, mas como uma construção catalográfica, onde a nova espacialização (condição) dos materiais em desuso, desprezados e jogados nos “espaços urbanos de sobra” repunha tal materialidade para o meio.

A reflexão trazida pelo artigo de Resende vem sob duas vias que se auto-alimentam; ambos os discursos, visual e discursivo, elaboram juntos uma nova prática artística que se aproxima da radicalidade do gesto de Pollock, do experimentalismo das ações de Kaprow, de uma estratégia inteligente e comprometida com a realidade em Graham, todos diálogos propostos no próprio artigo ao publicar trabalhos referentes a estes artistas.

O olhar arejado sobre o fazer artístico e a reflexão sobre as referências urbanas e vivenciais nas grandes cidades estava na ordem do dia e foi um dos motores da sua prática artística a partir de 1970.

A história das ocorrências artísticas endereçadas a um acontecimento estético no espaço e no tempo da cidade deve ser entendida dentro dos processos de alargamento do campo de atuação da arte, ora vinculados a uma crítica ao próprio sistema da arte (que origina-se num processo de crítica do objeto e procura criar novos modos de atuação do artista), ora como ações experimentais que buscavam atualizar as transformações socioculturais dos grandes centros urbanos e deixar impregnar-se por elas.

A partir da década de 1960, em meio ao esgotamento da noção moderna de cidade, num contexto pósindustrial, o meio cultural viu surgir cada vez mais proposições e ações de artistas fora dos espaços até então institucionalizados.

O fenômeno artístico urbano foi rapidamente categorizado como “arte pública” por sua realização em espaços urbanos externos, distinguindo-os daqueles trabalhos que circulavam nos espaços internos legitimados pelos museus e pelo mercado. Desde o final dos anos de 1960, esta perspectiva de cidade vem abdicando de seus ideais urbanísticos modernos, abstratos e totalizantes, que procuravam garantir à vida urbana condições estáveis para o desempenho das funções citadinas, para deixar se regular pelas contingências de uma sociedade instável num corpo disperso, fragmentado.

Segundo Otília Arantes, “a cidade passa a ser vista como uma rede de relações diacrônicas e sincrônicas, como lugar: corte estrutural de espaço e tempo, condensação simultânea de vários tempos e valores históricos”.

Nesse sentido, cabe nos perguntar como as atuações em escala urbana se modificaram ao longo das últimas décadas, a partir da premissa moderna da imersão da arte na vida e dos processo de “modernização” das cidades, e quais são os desafios impostos pela nova dinâmica metropolitana à produção atual.

Que valores distintos – se é que existem – teria um trabalho de arte ao se “impregnar” de cidade, lado a lado com as perturbações do fluxo da vida cotidiana?

Quais seriam as estratégias contemporâneas capazes de produzir uma distinção na temporalidade e no espaço fragmentados da metrópole? Quais são as possibilidades de atuações efetivamente “públicas” e em que níveis elas se dão: por sua acessibilidade espacial, social, ideológica, cultural, política?

Muitas são as indagações. O desafio aqui é tentar buscar um fio condutor que auxilie na aproximação do que poderíamos entender pelo denominação “arte pública”, a começar pelos possíveis usos e significados desta.

O artista Daniel Buren em texto publicado em 1998 – e reeditado em português em 2001 – abre caminho para a investigação do uso do termo: por quê qualificar uma arte como “pública” apenas por sua aparição em espaço urbano, frequentemente externo, de livre acesso na cidade? Que mecanismos garantem que o encontro com um trabalho de arte o torne efetivamente público? Por quê uma obra pertencente ao acervo de um museu público – ou sustentado com recursos públicos – não haveria de levar o mesmo adjetivo qualificador? Buren chega até mesmo a duvidar do caráter indubitavelmente público da rua, na qual uma obra é necessariamente designada como tal.

As inquietações do artista francês sinalizam para um segundo extrato de questionamentos relativo à interdependência de campos que tradicionalmente são entendidos como opostos: o público e o privado.

Debruçar-se sobre essa antiga dialética exige um esforço muito mais amplo do que o mapeamento das especificidades nas fronteiras entre indivíduo e comunidade; envolve, também, imprecisões da chamada esfera pública em diversos níveis, políticos, sociais e físicos – estes tomados no âmbito do urbano e arquitetônico.

Aspectos do poder público, da privatização e do mercado, termos como espaço público e espaço semi-público, conceitos como domesticidade e publicidade problematizam os níveis de sociabilidade na metrópole e implicam em “capacidades” contemporâneas possíveis de apropriação e pertencimento.

Grande parte dessa produção artística se engendra nas variações da matriz urbana e da esfera pública e acaba repondo o problema detonador de volta à esfera da vida. Para a crítica Kwon, a expansão de engajamento da arte com a cultura favoreceu lugares públicos externos em relação à tradição de confinamento, física e intelectual, própria do modernismo.

Na tentativa de compreender o fenômeno moderno norte-americano de caráter “público”, Kwon tratou de esboçar alguns paradigmas freqüentes impressos ao longo de quase quarenta anos desse tipo de inserção artística, a qual era comumente engessada numa única categoria.

Uma primeira ocorrência, denominada arteem- lugares-públicos, refere-se às esculturas modernas autônomas que independeriam do lugar onde se instauram, podendo aparecer tanto na rua como em um acervo museológico. Já a produção designada por arte-como-espaçopúblico envolve trabalhos encomendados que funcionam como mobiliário urbano, construções arquitetônicas ou ambientes paisagísticos.

Uma terceira ocorrência, a arte-em-interesse-público refere-se àqueles trabalhos atrelados em primeiro plano a questões sociais, ativismo político e/ou colaborações de “comunidade”.

Essas passagens de uma ocorrência à outra e a concatenação das mesmas na história estão intimamente ligadas ao processo de comodificação da cultura e das cidades, estas pressionadas seja pelas instituições culturais regidas pelo mercado, pelo poder público e sua dinâmica administrativa marketeira, ou pelas próprias pressões sociais das comunidades e das novas sistemáticas do território urbano.

No contexto norte-americano analisado por Kwon, o que vulgarmente se denominou por esta forma de arte está vinculado a um sistema de encomenda pública que corresponde a uma vontade política de ordenação dos espaços comuns da cidade e suas configurações em termos simbólicos, memoriais e publicitários.

Tal fenômeno teve início na década de 1970 e se desenvolveu com grande fervor nas políticas de embelezamento das cidades ao longo dos anos de 1980, freqüentemente através de projetos colaborativos entre artistas, arquitetos, urbanistas, paisagistas e designers.

Em contrapartida ao fenômeno norte-americano, nos domínios das manifestações artísticas endereçadas à cidade no Brasil – mais especificamente, em metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro – é difícil identificar uma cultura de incentivo governamental e/ou de interesse empresarial endereçada a um programa aberto à resignificação do espaço coletivo da cidade, a não ser pela experiência passada de encomendas públicas de monumentos.

Contrárias a estes são as iniciativas individuais e efêmeras que têm buscado atuar na cidade (e a partir da vivência nela) como provocadoras de situações e ambiências capazes de modificar mesmo que temporariamente a dinâmica urbana cotidiana, espacial e temporalmente, seja em termos de resignificação da paisagem seja por meio de novos percursos nos seus trajetos diários (como vimos em Smithson, Oiticica e, agora, em Resende).

De certa forma, podemos explicar o surgimento do frame “arte pública” nos desdobramentos da história da arte pela construção de certas ações pós-1960 em concatenação com o esgotamento da utopia moderna, com os processos de comodificação da cultura e com as novas demandas de reaproximação da arte à esfera da vida.

Tais aspectos implicaram uma atuação cada vez maior na cidade como crítica aos processos de institucionalização e de “mercadização” do objeto artístico, projetando-se mais decisivamente no espaço. Ao campo ampliado da “escultura” (e por extensão, da própria arte) – quer como site specificity, instalação, performance ou manifestação ambiental, dentre outros – devemos atentar para os processos sofridos pela arte quando da crítica sobre o confinamento do objeto aos espaços institucionalizados e de suas circunscrições dentro do universo de valoração como mercadoria, como produto comercializado e apreciado enquanto tal.

Iniciada a década de 1960, os trabalhos passam a se reconhecer num mundo da cultura que se vê impregnado pela produção em massa, pela televisão, pela propaganda, pelo alto consumo de mercadorias e bens de serviços culturais. Ao mesmo tempo em que esse sistema torna a posição e o significado da arte possíveis, ele tende incessantemente a cooptá-la (tal como vemos nos programas de “embelezamento” das cidades via implantação de formas de arte enquadradas na chave de uma categoria “arte pública”).

As experiências norte-americanas da minimal e do site specificity, a partir da década de 1960, fundavamse na estruturação do sujeito, na medida em que a crítica ao modelo cartesiano instaurou uma nova dimensão da experiência, fenomenológica, caracterizada por uma resistência ao sistema de arte vigente.

Contrárias à lógica mercadológica do confinamento dos museus e galerias, muitas dessas experiências se instauraram na matriz urbana dos espaços abertos da cidade. Em termos brasileiros, a possibilidade de instauração da arte na cidade parece configurar-se mais em termos culturais do que efetivamente espaciais, dado o dinamismo diário e a instabilidade vivida em território urbano.

Em plena década de 1970, Resende é exemplo mais uma vez das preocupações dos produtores de arte com o meio. No mesmo artigo citado anteriormente, publicado na Malasartes, ele analisa o fato da ausência da escultura na cidade como fruto de um processo de veiculação da arte alheio às regras do mercado.

A inviabilidade dessa presença, diz o artista, é um dos problemas fundamentais para o artista daquele período, sobretudo quanto à indagação dos espaços possíveis para a produção e atuação da arte.

Escultura Moderna
Rubens Gerchman
Lindonéia, a Gioconda do Subúrbio, 1966.
Serigrafia com colagem, vidro e metal s/ madeira pintada, 60 x 60 cm.
Col. Gilberto Chateaubriand, RJ.

Como diria o historiador Argan, a arte sempre foi fruto de uma consciência da civilização que constrói a cidade; e como tal, ela lembra ao homem que o mundo é a Natureza e a cidade, uma construção humana. O final dos anos de 1960 viu a cidade ser abarcada como entidade real, tangível, produto de relações culturais, abandonando sua formulação projetiva.

As configurações urbanas foram cada vez mais sendo transformadas em operações de linguagem; para além de objeto, o signo. Os principais núcleos urbanos viram alastrarem-se manifestações culturais impregnadas pela ordem industrial, do consumo e da massificação, todas elas produzidas em meio ao novo sistema cultural, caso exemplar da Pop Art, pela qual a arte assume a posição de fenômeno comunicativo urbano.

Os movimentos contraculturais emergiram nesse momento divisor de águas e levaram como uma de suas principais preocupações a necessidade de destruir o objeto (o fetiche do objeto) para retornar aos experimentalismos de vanguarda. No Brasil não faltam exemplos para ilustrar o momento histórico transformador.

Em meados da década, um novo espírito aglutinava a produção artística pela Nova Figuração. O termo – batizado pelo crítico francês Michel Ragon ao identificar uma retomada da figuração na arte – refere-se àquela produção, cuja figura aparecia no contexto tipicamente urbano, que tomou conta do circuito brasileiro após a decadência do abstracionalismo geométrico e lírico.

Esses artistas, segundo Zanini, expressavam a nova condição social de consumo, apropriando-se de linguagens dos meios de comunicação de massa, trabalhando com iconografia imediatamente reconhecível, variando entre um campo crítico e uma neutralidade ideológica aparente.

Dentre eles estavam: Nelson Leirner, Rubens Gerchman, Wesley Duke Lee, Carlos Vergara, Antonio Henrique Amaral, Waldemar Cordeiro, Glauco Rodrigues, Antônio Dias, Hélio Oiticica, João Câmara e Siron Franco.

É dessa época a famosa figura suburbana construída por Gerchman, “Lindonéia: a gioconda do subúrbio” , exposta na mostra realizada no MAM-RJ, Nova Objetividade Brasileira, em 1967.

O marco desse grupo veio dois anos antes, com a exposição histórica Opinião no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, idealizada por Jean Boghini e Ceres Franco. A coletiva de vinte e nove artistas atuantes no Brasil (como Dias, Vergara e Oiticica) e na França queria confrontar as duas produções, reforçando a idéia de atualidade da produção brasileira. Foi nessa exposição que Oiticica mostrou pela primeira vez seus Parangolés.

Escultura Moderna
José Resende
Bibelô: secção da montanha, 1967.
Acrílico, terra e fórmica preta sobre madeira,
100 x 30 x 100 cm.
Col. MAC/USP.

Em São Paulo, no ano seguinte, o circuito cultural viu brotar um núcleo de artistas experimentais com grande viés crítico em torno da Rex Gallery & Sons. A galeria foi fundada pelos próprios artistas, Duke Lee, Leirner, Geraldo de Barros, Resende e Carlos Fajardo, e funcionava como uma cooperativa.

De tendência experimental, nas palavras do grupo, a galeria acolheu cinco exposições ao longo dos dois anos de existência. O grupo propunha entre outras coisas, a superação dos sistemas viciados de seleção para os salões de arte, desafiar os valores da arte instituídos no campo da produção e da crítica.

Contavam ainda com uma publicação em formato de boletim, o Rex Time, no intuito de divulgar suas idéias, “instruindo e divertindo o público leitor”. Resende nos conta que nesse período o convívio com Duke Lee foi fundamental para o acesso à informação que circulava no mundo por meio de revistas como Artforum e Art International. (segundo o artista, haviam duas únicas assinaturas, uma da FAU-USP e outra de Duke Lee).

“Essa revistas eram o início, eram o nosso gibi de informação. Foi o momento em que a informação passou a ser levada em consideração, pois não eram as caretas revistas francesas de arte – estas, um meio de referências quase que de decoração para os grandes mestres.

A produção daquele momento passava a ser conhecida e veiculada por instrumentos mais modernos”, englobando, como sabemos, a questão norte-americana. A “experiência rex” pós-1964 coincidiu com o período em que o artista ainda estava na faculdade.

Explica Resende: “a Rex Gallery surge em solidariedade a um protesto contra a exposição Proposta 65, na FAAP, que censurou um trabalho do Décio Bar, retirado da mostra.

Geraldo, Leirner, Wesley (sendo este o cabeça do protesto) também retiraram seus trabalhos”. A união desses artistas era fruto do descontentamento do circuito da arte. Suas proposições mostravam um forte conteúdo lúdico, de jogo irônico de palavras, próximo a estratégias duchampianas (pelo uso banal dos objetos).

Além disso, elas possuíam um forte vínculo com a realidade urbana, e geralmente filiavam-se a um vocabulário pop. Zanini lembra que o caráter lúdico dominante nas ações e nos acontecimentos artísticos do grupo aparecia principalmente na maneira de agir diretamente na vida por meio de uma ação imediata mais ou menos improvisada – tal como no baile espontaneamente ocorrido durante a inauguração da galeria, e que incentivou a participação do público.

O próprio nome do boletim apropria-se de palavras da língua inglesa e ironiza o imperialismo cultural dos Estados Unidos na época.

De par com isso, Zanini também identifica uma certa aproximação dos paulistas com as experiências do Fluxus. De modo análogo, os “rex” desenvolveram uma estratégia contra o imperialismo cultural do meio artístico (porém sem a forte orientação política daquele), reagindo aos sistemas institucionalizados ao longo da década de 1950 (bienais, MAM, galerias). A crítica de arte dominante nos jornais também era outro alvo do grupo. O primeiro objetivo era constituir um lugar livre de censuras onde pudessem expor.

A analogia entre os grupos não restringe-se apenas a um conteúdo lúdico e irônico. O quinto número do Rex Time faz um elogio ao happening, enumerando os primórdios dessa poética no país, citando entre outras ações as de Flávio de Carvalho, “Clarabóia da cozinha da Leiteira Campo Bello” e “Travessia do Viaduto do Chá”, e a de Duke Lee no João Sebastião Bar, em 1964, considerado o 1º happening no Brasil.

O distanciamento “pop” acrescido do dado humorístico que a situação paulistana de província agregava à celebração da cultura de massa remonta o ambiente em que Resende dá início aos primeiros trabalhos, atento às transformações na paisagem urbana e na recente ocupação da cidade inspirado pela idéia de “suburbia”.

“Bibelô: a seção da montanha”, de 1967, premiado na mostra inaugural da JAC no MAC-USP, possui um conteúdo operacional lúdico herdeiro das experimentações junto ao Grupo Rex.

A ironia sobre uma certa nostalgia de natureza a se preservar se fazia desde o título. A peça era uma seção de montanha com terra, cuja contensão era feita por um aparato de acrílico e madeira forrada de fórmica preta. A “paisagem-objeto” concebida como bibelô discutia, nas palavras do próprio artista “o que seria natural e o que seria o pensamento, tratado como kitsch.

Reduzida no tamanho, a coisa ganharia o caráter de um bibelô.” Resende concebeu três versões de bibelô, todas de 1967 e expostas na JAC. Um segundo bibelô compunha-se de uma mesa de madeira (bastante minimal no sentido literal de uma mesa) com uma travessa sobre a qual tinha-se uma caixa de acrílico.

Resende recorda que na apreensão da peça, dependendo da posição do observador, tinha-se quatro qualidades de branco devido à refração do acrílico.

Mais um diálogo estabelecia-se entre as produções; segundo ele, a própria transparência denunciava uma operação minimal. “Glub Glub: jardim de Jane Mansfield”, mostrava suas afinidades com o realismo fantástico do mestre Duke Lee e com o legado dada e surrealista.

Acrescido ao dado irônico, a análise sobre a obra premiada na JAC que consta no catálogo do museu nos fornece um ponto de vista lingüístico sobre a peça: o texto diz que todas as qualidades, atributos, predicados da montanha se resumiam ao “L” transparente que carrega a terra, ao que inpterpreta como “redenção eidética” da montanha.

A contensão (tanto quanto aqueles que aparecem nos trabalhos já citados, do Artecidade e dos props, bem como a eminência do corte expressam na obra a transição entre tempo e espaço. A matéria, tal como ocorre posteriormente na produção de Resende, funciona em relação à situação de confronto posta a partir das diferentes qualidades (naturais/ industriais, duráveis/perecíveis), próxima ao universo povero, cujo diálogo Resende não exita em citar.

No ano seguinte, em 1968, Resende integra a exposição do grupo que futuramente se reunirá em torno da Escola Brasil, realizada na Petite Galerie, no Rio de Janeiro. As obras reunidas ali eram, em sua maioria, remanescentes dessas referências de subúrbio.

Além dos trabalhos de Resende de títulos sugestivos – “Jardim Claro-Escuro”, “Espaço Atlântico”, “Paisagem Cubista”, “Horizonte A” e “Horizonte B” – o trabalho de Luís Paulo Baravelli indicava esse sabor urbano em transformação tanto quanto as fotografias de Fajardo.

Entre 1970 e 1974 funcionou a Escola Brasil. Encabeçada por Resende, Fajardo, Nassar e Baravelli, a escola aparecia para firmar uma posição de independência da lógica de mercado, que se expandia. É nesse período que os mecanismos do circuito artístico vigente são amplamente questionados pelos seus produtores, acrescido de uma reflexão sobre os espaços de vivência da arte que atentava às possibilidades de sua integração na coletividade.

1975, o chamado “ano experimental”, era repleto de iniciativas inovadoras, como a atuação crítica das publicações especializadas, Malasartes, Corpo Estranho e A Parte do Fogo. Os grupos independentes se alastravam pelo país; no sul, o Nervo Ótico; no nordeste, o Núcleo de Arte Contemporânea; no sudeste, a Sala Experimental do MAM-RJ e o INAP/Funarte, além da já citada Escola Brasil.

Para Glória Ferreira, com a potencialização de uma inteligência crítica, o período produziu uma espécie de deslocamento estrutural determinante para o que lhe adveio. Iniciativas como a da Malasartes procuravam dar um nível público à manifestação, isto é, uma maneira mais atuante como estratégia e forma de intervenção naquele momento.

A revista surge no bojo de várias imprensas alternativas, como foi primeiramente o Pasquim, o Opinião e a Nave Louca. Nos conta Resende (que integrava o corpo dos editores) que as “coisas que eram produzidas artesanalmente, era uma vontade de intervenção, de fixação de uma série de ações que já tinha ocorrido, como as atuações do Barrio e do Cildo, essas inserções produziam um novo historicismo através da publicação”.

Escrito a quatro mãos, por Resende e Brito, o texto “Mamãe Belas-artes” pregava a derrocada do sistema belas-artes e a criação de outros meios de circulação das obras. Seguindo a mesma esteira, o artigo “Pequena notícia meteorológica”, de G. Vaz enfatiza o embate entre produção e circuito da arte ao tratar dos novos espaços.

Além disso, alerta para a referência contemporânea da materialidade urbana em trabalhos, como os de Fajardo, Zílio e Resende, ao partirem de códigos mais explícitos e elementos da condição ordinária do dia-adia da cidade (como ripas e tijolos), abrindo-se a uma relação mais direta com a realidade.

Outra característica do meio artístico nesses anos de experimentação é o uso freqüente de matéria perecível; sua opção, em parte, explica-se pela postura resistente à constituição da obra como objeto de valor mercadológico. Em 1970, Frederico Morais organizava o evento Do corpo à Terra, no Parque Municipal de Belo Horizonte.

Durante três dias, o curador reuniu happenings, rituais e performances de diversos artistas, dentre os quais destacaram as figuras de Artur Barrio, ao trabalhar com papel higiênico, e Lygia Pape, que mostrava pela primeira vez a proposição de “Rodas dos prazeres”.

Segundo o próprio Resende, a partir de 1970, os trabalhos ganham uma característica que vai ser desmembrada na produção posterior.

A articulação de coisas que foram utilizadas nos trabalhos passam a ter como repertório elementos ligados à construção: cubos, chapas, pedras, pranchas de granitos, lâminas de vidros, cabo de aço e tubo de aço inox pintado, entre outros. Em geral, todos os ingredientes são manufaturados pela construção civil e carregam a memória desse agenciamento industrial.

Em 1974, a exposição do MASP apresentava as novas qualidade da matéria a serem exploradas.

Ao mesmo tempo, o catálogo da mostra chamava atenção para o fato dos trabalhos serem sempre documentados num entorno circunscrito por jardins, o que aparece como uma espécie de “situação de integração pela diferença”: de um lado, os materiais urbanos (ferro, vergalhão, pedra, aço etc.) que desenham linearmente o espaço; de outro, sua existência natural, numa paisagem idilicamente verde.

Essa fase é tomada pela experimentação com o desenho e produz uma série de esculturas lineares. O desenho sempre foi instrumento de compreensão da estrutura e da construção, cuja intenção era a de mobilizar a escultura espacialmente. Para o artista, “o processo de criação é um pensamento que vem das relações em que as coisas são construídas, uma coisa se agrega à outra.

Estas, em vez de serem transformadas por uma idéia tradicional do escultor – de uma pedra que é transforma em uma forma ao abstrair-se o seu caráter de pedra – surgem como construções que pressupõem o projeto como um processo de pensar. O desenho organiza o raciocínio em termos gráficos.

O caminho de Resende sempre esteve vinculado ao pensamento pelo projeto e pelo desenho, influências da formação inicial de arquiteto, bem como dos ensinamentos com Duke Lee – que tinha o desenho como instrumento de exercitação do olho. Alguns anos depois da série suburbia, “Jardim de Jacques Tatit” dá continuidade às inquietações do artista relativas ao surgimento dos subúrbios, as quais tiveram ampla ressonância no meio cultural artístico, seja pela Tropicália, de Oiticica – e de sua atividade junto à favela, como também de uma informação que vinha via pop art norte-americana.

O paradoxo da cidade-paisagem configurou-se na obra em três camadas de pedra e terra sobrepostas escalonadamente (lembrando a contensão da natureza dos terraços orientais), contidas em cintas metálicas. A imagem desses cercamentos força os vínculos entre natureza e construção, e nos remonta novamente à suburbia, cujo significado original em latim é “cercanias da cidade”.

O título da obra alude ao repertório francês de Jacques Tatit no filme “Mon Uncle”, cujo protagonista Monsieur Houlot, aos olhos de Ferreira, personifica a inadequação do sujeito poético e sensível às novas formas de atuação social estabelecidas pela estética urbana funcionalista entre os anos de 1940 e 1950.

A crítica ao urbanismo funcionalista parte da referência cultural francesa de jardins arquitetonicamente planejados – dos jardins domésticos que incorporam dentro do quintal, segundo o artista, “um mini-racionalismo em pílulas dos parques”. No filme, os jardins geometricamente alinhados forçam caminhos “absurdos” para o desenvolver da ação social.

A introdução de uma natureza completamente mimetizada, e assim domesticada, contrapõe-se aos jardins suburbanos da metrópole paulistana de meado de 1970. A experiência do artista condensada na obra reforça a relação paradoxal entre a utopia implícita no projeto construtivo da arte e a realidade urbana da periferia paulistana.

Escultura Moderna
José Resende
O Passante, 1996.
Largo da Carioca, Rio de Janeiro. Aço corten, 1200 x 90 x 400 cm.

Arte na cidade

Os interesses pelos novos vínculos entre a prática artística e as experiências cotidianas remetem ao processo histórico de alargamento de seus limites objetuais e de sua natureza lingüística. Uma das direções tomadas com o esfacelamento das linguagens modernas na esfera da arte a partir de 1960 apontou para o surgimento de manifestações que pleiteavam lidar com aspectos da cidade – no e sobre seus lugares – e que passam a solicitar um observador mais atento e atuante, cuja manifestação se dá na experiência espaço-temporal.

Na trajetória de Resende, a discussão sobre os lugares da arte na cidade acontecem hora sob formalizações temporárias, como vimos no trabalho do ArteCidade 1 (1994), hora como adições permanentes em meio ao vai-e-vem da cidade, em espaços abertos postos ao rés do chão, impregnando-se dos acontecimentos cotidianos, à exemplo da obra “Sem título”, instalada na Praça da Sé, em São Paulo, em 1979 e de “Passante”, implantada em 1996 no Largo da Carioca, no Rio de Janeiro.

Diz o artista que as chances de intervenção em escala maior, metropolitana, não são alternativas que apareçam por vontade própria. Desde os anos da Escola Brasil, havia um namoro com uma escala de cidade, mas ela se dava ainda com elementos economicamente viáveis para você manipular, portanto se processando em tamanhos mais domésticos.

Resende recorda de um projeto junto com Baravelli para um acontecimento na estrada, uma outra associação com Boi para um edifício, “enfim, havia um desejo de juntar esforços para ver se saia algo numa escala mais dessa ordem”.

Foi apenas em 1978 que Resende viu sua primeira oportunidade em atuar de modo incisivo na cidade: o projeto de reforma da Praça da Sé, mobilizado pela instalação da linha de metrô, possibilitou a encomenda da peça para o local.

Atualmente, a situação do local onde fora implantada a obra desprivilegia qualquer ponto de vista para uma apreensão do trabalho, quer para o pedestre quer para quem passa dentro de veículos automotores. Diferentemente da situação paulistana, as condições em que se encontra a obra “Passante” se mostram mais favoráveis a uma pactuação do público com o trabalho. Neste caso, a longa peça de aço corten cria uma dissonância no calçadão do largo cuja paisagem horizontal é produzida pelo vetor da massa humana que ali passa diariamente.

Seja abertamente na cidade ou em recinto museológico, Resende ressalta que “somente o convívio, um processo lento de relação, poderá criar, para as esculturas, esta condição de bem público”. É como se a obra aderisse por diferença à situação do homem comum, do pedestre trabalhador que freqüenta aquele lugar e se identifica com a imagem do “passante’.

É fato que as proposições e operações artísticas que atuam dentro do cotidiano da cidade acabam por submeter-se novamente à mobilidade permeável da cidade contemporânea que coloca desafios à própria resistência da arte naquele contexto, transformando novamente o objeto. Um dos exemplos desses grandes desafios na arte localiza-se no caso histórico da obra de Serra, “Tilted Arc”, encomendada para a Federal Plaza de Nova York, em 1981.

A trajetória do norte-americano nos conta que seu trabalho sempre parte do pressuposto de um lugar, galeria ou espaço público aberto, onde se dá a intervenção. A topografia do sítio, seja ela urbana ou uma paisagem, determina como o artista pensa sobre o que vai construir, contexto no qual se estabelece uma nova situação espacial perceptiva.

A radicalidade de suas intervenções esculturais na cidade advém da sua disposição para enfrentar a complexa instabilidade do espaço social da vida. A ação crítica de Serra em relação à idéia de espaço a priori culminou na polêmica produzida por “Tilted Arc”.

A obra foi destruída em 1989, à pedido da prefeitura, pelas reclamações de transeuntes incomodados com a obstrução de seu percurso.

A impossibilidade de deslocamento da obra concebida como site specific work foi devidamente argumentada pelo artista durante sua palestra realizada no Rio de Janeiro, em 1997: “uma nova orientação de comportamento e de percepção em relação ao lugar exige um novo ajuste crítico à vivência da pessoa em um determinado local”.

Neste ajuste crítico, como desencantamento com as regras de ordenação do espaço urbano que dominam as chamadas cidades “pósmodernas” e como resistência aos processos de cooptação ideológica dentro do contexto das instituições de arte, reside a potência dos trabalhos.

Nas palavras do artista, “não há lugar neutro, todo contexto tem sua estrutura e suas implicações ideológicas. É necessário trabalhar em oposição às limitações do contexto”.

implicações ideológicas. É necessário trabalhar em oposição às limitações do contexto”. Esses trabalhos afirmam-se no espaço, propondo um questionamento de onde se encontram, num processo de crescente investigação e entendimento espacial sobre o recinto e, em última instância, sobre o mundo.

“Como você se movimenta no espaço? Como tornar físico o espaço? Como você faz do espaço a substância? Como transforma o espaço em objeto, assim como a parede é um objeto?”, indaga Serra. Essas proposições revelam a origem do pensamento de Serra na configuração de um entendimento do que é escultura; para ele, não se pode pensar escultura desvinculada do espaço público projetivo.

Toda obra de Serra para um dado lugar tem um enfoque crítico sobre o seu conteúdo e o seu contexto, desafiando a fisionomia e a formalidade dominantes na paisagem. Segundo Miwon, a declaração de Serra sinalizou uma crise apontada pela especificidade do lugar, expressa em seu caráter intransferível e até certo ponto autoritário, relativo à versão que priorizaria uma inseparabilidade física entre o trabalho e o seu lugar de instalação.

As experiências sobre a cidade no âmbito das ações endereçadas ao espaço urbano aberto revelam que a partir da década 1980 a arte se mostrou mais permeável à dinâmica da cidade contemporânea, deixando-se mobilizar pelas circunstâncias instáveis do cotidiano.

Provocados por uma certa instabilidade urbana vimos aparecer com freqüência trabalhos que operam não mais como existências permanentes no tecido social urbano, mas como provocações temporárias dentro do circuito.

Escultura Moderna
José Resende
Sem título, 2002.
Obra efêmera com vagões de trem e cabo de aço, implantada no Pátio do Pari, São Paulo.

Tal é o caso de Resende, novamente, ao conceber o trabalho para o evento do ArteCidade em 2001. O contexto agora é a zona leste de São Paulo, especificamente, o Pátio do Pari. O pátio foi inaugurado pela São Paulo Railway em 1891, e servia como estacionamento de vagões, depósito de mercadorias e ponto de carga e descarga.

A obra foi executada em terreno lindeiro à av. Radial Leste, que se desenvolve linearmente do pátio em direção à zona leste. A situação coloca, sobretudo, o problema da reutilização dos terrenos lindeiros à ferrovia e o seu potencial para investimentos intensivos, no contexto de uma nova reestruturação da cidade. Resende lida com essa situação de decadência e abandono da região por meio de uma construção irônica a partir do jogo inusitado de vagões em posições não-funcionais.

Os vagões nunca aparecem sozinhos, auto-portantes; eles participam de um sistema estrutural de mútua dependência que nos remete novamente à idéia de jogo.

A instalação seqüencial dos elementos essencialmente urbanos promove uma nova existência aos equipamentos abandonados da cidade, se colocam livres, com total disponibilidade para negociar outras funções “desinteressadas” no cotidiano da cidade, funções estas que aludem a um jogo coreografado, um passo de dança musicalizado, um acidente estrutural que lembra o encadeamento de peças de dominó ou cartas de baralho.

O encadeamento dos vagões não é nem uma afirmação da verticalidade própria da linguagem escultórica, nem referente à força horizontal típica da paisagem de várzea, exemplar aqui no caso da antiga região alagadiça da Várzea do Carmo.

Sua obliqüidade brinca com a própria idéia de escultura e arquitetura; um vetor que a princípio não se sustenta pelas leis gravitacionais; para tanto faz-se necessário sistemas de contrapeso estruturados por cabos de aço que possibilitam suspender a matéria, desenhando o movimento no ar.

Esse efeito provisório promovido pelo trabalho de Resende conduz a uma reflexão sobre a história da cidade e suas camadas encobertas pelos processo especulativos imobiliários que abandonaram determinados locais em detrimento de outros.

A arte de manipular “lugares comuns” e tornar os acontecimentos “habitáveis” é exaustivamente analisada por de Certeau no livro As práticas do cotidiano. Ao tratar da experiência contemporânea de cidade, o autor elege a invenção de memória como estratégia pela qual o espectador lê a paisagem reportando-se à sua experiência acumulada.

É como se tivéssemos que remover uma fina película para deixar ver-se por entre as camadas históricas da cidade, num jogo de espaços. A experiência de macrometrópole de países em desenvolvimento implica uma familiarização com o contexto/localidades pela ativação da memória. A aceleração das transformações urbanas promovidas na capital paulistana conduziram ao sucateamento da estrutura ferroviária, apresentando uma situação inerte e residual no Pátio do Pari.

Resende se apropria de tal situação e produz um monumento por ironia ao denunciar a estagnação do transporte ferroviário, fazendo dos vagões peças de um quebra-cabeça agigantado.

O último trabalho em grande escala de Resende segue na orientação de suas preocupações com o uso dos equipamentos urbanos, agora na cidade de Porto alegre onde foi realizada a 5ª Bienal do Mercosul, em 2005. “

A idéia proposta foi que existisse não uma instalação de um trabalho na cidade, como algo que fosse implantado lá, mas um acontecimento no uso, como se fosse um equipamento urbano de uso na cidade”. Segundo o artista, “Porto Alegre, dada às bienais todas, é coalhada de esculturas, e que ficam ali de uma maneira absolutamente tradicional.

Não tem ligação com nada e acabam sendo roubadas ou deterioradas.” A peça surgiu de uma relação da dimensão de uma viga de aço de 1 metro de alma e a possibilidade de um menor apoio possível (de dois metros) em relação ao balanço que ela pudesse suportar. Resultado de um cálculo de engenharia, pelo qual a peça poderia ter 28 metros de balanço, estendendo-se à paisagem do rio Guaíba, o trabalho acabou incorporando a solução de duas vigas idênticas que se amarravam uma à outra. É dessa solução que surge a configuração final do trabalho em uma espécie de passarela. A viga foi transformada em equipamento-mirante para que os habitantes da cidade pudessem contemplar a paisagem.

A reivindicação da escala ambiental no Brasil: a singularidade de Hélio Oiticica.

De volta ao Rio de Janeiro no final da década de 1970, Oiticica promove algumas manifestações sob o título de “Delirium Ambulatório” pelas quais se coloca em total disponibilidade aos imprevistos do perambular pelas ruas e morros cariocas. Essas experiências improvisadas de caminhar na cidade são tomadas pelo artista como “acontecimentos poético-urbanos”, uma espécie de Parangolé coletivo, em que ele se desloca numa condição livre e pela qual o acontecimento estético se põe à mercê do outro e da cidade.

O delírio ambulatório é um delírio concreto. Quando eu ando ou proponho que as pessoas andem dentro de um Penetrável com areia e pedrinhas, estou sintetizando a minha experiência da descoberta da rua através do andar, do espaço urbano através do detalhe do andar, do detalhe síntese do andar.

O ato da perambulação, no entendimento do artista, é pura disponibilidade criadora – ao mesmo tempo que é livre, não tem nenhuma pretensão e nem promete nada. Segundo Favaretto, tais manifestações de rua sintetizam uma reafirmação da experiência inicial do morro da década de 1970; porém, agora, ela se coloca como autocrítica, por meio de uma atividade “desmitificada”, isenta de qualquer utopia. Algo como uma resposta ambiental à perda da escala humana na cidade contemporânea.

A experiência de caminhar pela cidade – e, paralelamente, a proposição de uma experiência que convoque um observador-participante em termos ambientais – pode ser transportada para o universo imagético fornecido pelas análises de Michel de Certeau sobre as práticas sociais cotidianas. Segundo este, uma alusão a tais práticas poderia ser construída no universo da palavra.

Enquanto a “língua” é um sistema – o que corresponderia aos códigos da arte – a palavra seria a ação que colocaria os códigos em “ato” – ou seja, a comunicação, que para Oiticica, se daria pela duração na obra, onde espaço, tempo e participação se conjugam. Isto é, a língua só se torna real no ato de falar; tal como a arte ambiental só se completaria na experiência espaço-temporal.

De Certeau compreende o uso da língua como prática cotidiana, pela qual “os ‘conteúdos de uso’, colocando o ato na sua relação com as circunstâncias, remetem aos traços que especificam o ato de falar (ou prática da língua) e são efeitos deles”. A efetuação do sistema lingüístico se daria, então, por uma apropriação da língua pelo locutor por meio do estabelecimento de um contrato relacional com o interlocutor numa rede de lugares e de relações. Instaura-se um presente relativo a um lugar, no qual se daria um jogo de reconhecimento de códigos entre as partes.

O ato de falar seria, então, indissociável do presente (pelo ato do “eu” que fala), que pressupõe circunstancias particulares: o sistema, assim, organiza uma temporalidade (antes e depois) e um “agora” (presença no mundo). No caso de Oiticica, o presente também é relativo ao lugar que, por conseguinte, é a sua especificidade (vivência).

A importância do tempo nas suas práticas, segundo Favaretto, reside na idéia de que tal dimensão espacializa o lugar e, nesse sentido, implica uma mútua dependência entre espaço-tempo, por meio da qual dar-se-ia a experiência da alteridade, da existência da obra em relação – o sistema proposição-participação.

Esses ações, realizar, apropriar-se, inserir-se numa rede relacional, situar-se no tempo, fazem da obra algo circunstancial, inseparável do contexto do qual se distingue abstratamente. E é nesses termos que, para de Certeau, “o enfoque da cultura começa quando o homem ordinário se torna narrador, quando define o lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento”. A idéia do historiador corresponderia, assim, ao que Oiticica estava buscando com o Programa Ambiental ao adentrar os anos de 1960.

Como vimos nos itinerários anteriores, é a partir da década de 1960, sob a perspectiva de uma nova situação urbana e no espírito da contra-cultura, que a produção artística (aquela que deriva da tradição escultórica moderna, tanto da herança construtiva como da vertente mais negativa, promulgada pela anti-arte dada) vai reivindicar a restauração dos vínculos entre arte e vida.

Já em meados dos anos de 1950, impulsionada pelo desenvolvimento industrial do país e pela ideologia modernizante simbolizada pela nova capital, Brasília, o meio artístico brasileiro se deparava com ideais de integração entre as linguagens que, aos olhos do crítico Favaretto, produziu o esfacelamento dos projetos modernos.

A produção experimental da pintura com preocupações iniciais centradas numa pesquisa visual perceptiva antecipou em parte as novas considerações sobre a experiência da arte em termos de recepção, de espaço e de tempo.

Segundo o ponto de vista neoconcreto de Gullar, a produção paulista ainda era calcada na valorização de um racionalismo de formas estritamente óticas, próxima aos ensinamentos do construtivismo de Lisstzky na Alemanha. Como um dos signatários do Manifesto Neoconcreto de 1959, “que definia uma tomada de posição frente à arte abstrato-geométrica”, Gullar relata que o grupo carioca reaproxima-se naquele momento da renovação construtiva das linguagens e da aproximação entre arte e sociedade promovidas pelas vanguardas.

Segundo ele, o movimento neoconcreto dialogava especialmente com a pura sensibilidade da pintura de Malevitch, cujo caminho havia sido interrompido pelo stalinismo. Nos pintores neoconcretos, livres do problema da representação, não se encontra mais a contradição figura-fundo, como nas pinturas suprematistas do russo.

“A característica principal dessa inter-relação da pintura com outras artes é a destruição do espaço representativo e a sua não-objetivação conseqüente”. Essa contradição se transfere da “tela como área” para a “tela como objeto”, tendo agora o mundo como fundo. “É como se o espaço da tela não preexistisse à obra”.

Exemplos da novidade neoconcreta eram sinalizados nos trabalhos de Lygia Clark (“Superfícies Moduladas”) e de Oiticica (“Invenções”) por superarem a estrutura-quadro. As formas-cor se espacializam pela primeira vez; são experiências elaboradas que se concretizam diretamente no espaço.

Nas palavras de Oiticica: A quebra do retângulo do quadro (…) é a vontade de dar uma dimensão ilimitada à obra. (…) é uma transformação estrutural; a obra passa a se fazer no espaço, mantendo a coerência interna de seus elementos, organímicos em sua relação, sinais de si.

O espaço já existe latente e a obra nasce temporalmente. A síntese é espaço-temporal. Segundo o artista, a pintura deveria sair para o espaço em busca de sua completude, não em superfície, em aparência, mas na sua integridade profunda, como um desdobramento natural do fim da figura e do quadro, proposto pelos construtivos Malevitch, Tatlin, Kandinsky e Mondrian. “Na arte não-representativa, não-objetiva, é o tempo o principal fator”.

Não só a pintura suprematista era referência para esses artistas, as inovações do neoplasticismo foram fundamentais para as experiências ambientais, principalmente elaboradas por Oiticica. Mondrian é, por excelência, o grande defensor da integração das artes e como tal promoveu a assimilação ambiental do quadro pela sua nova concepção de espaço.

Para o carioca, ele conduziu a idéia moderna de arte em direção ao seu fim: (…) em direção ao fim da arte como uma coisa separada do ambiente que nos circunda, o qual é a própria realidade plástica presente. Mas esse fim é ao mesmo tempo um novo começo. A arte não apenas continuará, mas realizar-se-a mais e mais.

Pela unificação da arquitetura, escultura e pintura, uma nova realidade plástica será criada. A pintura e a escultura não se manifestarão como objetos separados (…), mas, sendo puramente construtivas, ajudarão na criação de ambiente não meramente utilitário ou racional, mas também puro e completo em sua beleza.

As heranças construtivas neoconcretas se davam pela disposição criadora de uma cultura em processo de formação. Salzstein explica que tal disponibilidade equivaleria à “possibilidade de repensar a questão da forma num horizonte estético alargado, isento de peso da tradição e das mediações lingüísticas a que esta determinaria”.

Sendo que a expressão da condição de possibilidade do novo localizava-se na linhagem construtiva da modernidade. A resgate da figura exemplar de Mondrian indicava a aspiração a “uma experiência estética revolucionária, capaz de fundir-se sem sobras numa forma social”.

O universo escultórico, como vimos no itinerário #1, também sofreu grandes transformações que reverberaram em outras linguagens e promoveram a integração das mesmas. As novas técnicas elaboradas pelas vanguardas, tais como a collage e a assemblage, libertaram os escultores e os permitiram recorrer a novos temas – não naturalistas, impulsionando um pensamento da escultura como objetos construídos, e não apenas modelados.

A escultura construtivista de Pevsner e Gabo eram anunciadas por estes em tom de manifesto como uma existência tanto espacial como temporal. A lógica espacial construtiva dos contra-relevos de Tatlin certamente foi apreciada por Oiticica ao conceber tanto os Bilaterais como os Relevos espaciais produzidos entre 1959 e 1960.

A impregnação construtiva da primeira fase neoconcreta. Na experimentação com as linguagens, esses “objetos” situam-se numa zona intermediária entre a pintura e a escultura. Os contra-relevos escapavam à estabilidade do pedestal e do plano único da parede, por suspender-se por fios no encontro de duas paredes. Além disso, a condição espacial das estruturas de Tatlin feitas com materiais industriais (ferro, vidro, madeira, gesso) incorpora o espaço “real” tridimensional enquanto material escultórico.

De modo análogo, os as construções espaciais de cor de Oiticica se mostram mais efetivas como continuidade entre os planos e cuja existência não é mais plana nem tridimensional, é espacial e temporal. Segundo nos mostra Favaretto, mesmo que o observador não toque na obra, seu corpo já é ativo, participante. A obra aqui pode não modificar o próprio objeto; porém ela modifica o sujeito pela experiência no tempo, na duração na obra. “A obra é duração ela mesma”

Anti-arte ambiental

Aos olhos do crítico Mario Pedrosa, a década de 1960 equivale a um novo ciclo que se abria nas artes, não mais puramente artístico, mas cultural, inaugurado com a pop art. “A esse novo ciclo de vocação antiarte, chamaria de pós-moderno”. O período viveu a guinada das preocupações com os valores plásticos para os valores vivenciais (situacionais) e perceptivos.

Como observou Favaretto sobre a produção de Oiticica, a experiência de liberdade realizava-se por uma arte fenomenológica, cultural, e não apenas artística.

A idéia de participação já havia sido sinalizada desde princípios do século XX, numa dimensão mais utópica. Agora, ela é tomada como dado intersubjetivo e inerente à realização dos trabalhos, na estrutura da própria obra. No Brasil, a demanda por uma escala ambiental se deu a partir das experiências do Neoconcretismo.

A década de 1960 viu surgir uma cultura impregnada dos códigos da recepção promulgados pela nova sociedade de consumo. Os neoconcretos tiveram de enfrentar a nova realidade cultural, do fetiche do mercado, que acabava por agenciar o trabalho de arte modificando as estruturas internas da própria.

O novo público agora se vê convocado a modificar o próprio objeto cultural consumido: sua ação como espectador participante. Nos primeiros anos da década, proposições como as de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape descortinaram a superação do quadro pela renovação das linguagens, sua re-integração na esfera da vida ao explorarem a dimensão libertária da desestetização da arte, cuja experiência artística foi ampliada para a dimensão fenomenológica e cultural.

As novas proposições artísticas trataram de alargar o campo da percepção do objeto artístico em termos de recepção, se colocando frente a frente no embate cultural com a nova sociedade: o espectador deveria deslocar-se da sua condição habitual, passiva, e projetar-se no trabalho como participante e ativador da qualidade estética deste, fazendo da obra uma vivência.

O grupo carioca vai reivindicar uma experiência estética fundada sobre um tempo-duração, o que Favaretto chamou de “tempo neoconcreto”: a novidade desses trabalhos residia num espaço ativo, cuja estrutura era virtualmente modificada pela participação; a experiência se dava de modo orgânico, corporal e significativa.

Por conseguinte, a percepção se fazia no corpo, temporalmente. Para Oiticica, a própria pintura de Pollock já se realizava virtualmente no espaço como “campo de ação”; o deslocamento da posição do artista, atuando nos quatro cantos da tela, horizontal e fenomenologicamente, só era possível por meio de uma expressão que se realizasse no espaço e no tempo.

É nesse contexto que se engendra a produção que inaugurou as novas ordens de manifestação plástica de Hélio Oiticica, Núcleos, Bólides, Penetráveis, Capas, Estandartes e Parangolés, todas dirigidas à criação de um mundo ambiental.

Para Oiticica, a partir daqui, nada existira isoladamente.

Pedrosa explica: “ não há obra a ser apreciada em si mesma”, toda obra contem um conjunto perceptivo sensorial dominante. Para o crítico, é a partir da vivência no morro da Mangueira que a experiência visual passou a “experiência do tato, do movimento, da fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro (…) entra como fonte total da sensorialidade”.

Esses trabalhos significaram a conquista uma dimensão ambiental capaz de impregnar-se do mundo em estreito diálogo com o espectador. Em suas análises sobre o Parangolé, Oiticica formulou a chave do que seria uma arte ambiental;

Eternamente móvel, transformável, que se estrutura pelo ato do espectador e o estático, que é também transformável a seu modo, dependendo do ambiente em que esteja participando como estrutura” e, por extensão, o próprio conceito tradicional de exposição muda, “de nada significa mais ‘expor’ tais peças (…), mas sim a criação de espaços estruturados, livres ao mesmo tempo à participação e invenção criativa do espectador.

Ainda numa fase “visual”, considerada por Favaretto, os Núcleos eram construções espacializadas de cor, nas quais placas geralmente pintadas nos tons de amarelo eram penduradas num suporte treliçado quadrado de madeira, afixado horizontalmente ao teto do recinto. A cor não se mostra fechada num espaço conformado por paredes, como nos Penetráveis, mas realiza-se no espaço circundante. Como diz Pedrosa, “são cores-substâncias que se desgarram e tomam o ambiente”, contagiando os outros objetos.

Estruturalmente, os núcleos são arquiteturas espacializadas, espécie de ‘protocasas’, cujo ‘sentido íntimo’ é o de ‘recriar o espaço exterior criando-o na verdade pela primeira vez, esteticamente’.

Seu objetivo é ‘organizar o espaço de maneira abstrata’: organiza-lo ortogonalmente, de modo a dirigir ‘a visão e o sentido orgânico’ de quem penetra nos vãos abertos entre as placas.

O espaço resultante desenhava algo como um labirinto, pelo qual o público é convocado a se deslocar e explorar as múltiplas direções e reverberações da cor e dos espaços entre (cheios e vazios formados pelas placas).

O que Favaretto definiu como “a busca da estrutura-cor no espaço e no tempo”. Enunciava-se, assim, o desejo de expansão numa vivência espaço-temporal, onde a diluição estrutural da cor promovida pela organicidade compositiva entre os elementos construídos e a circulação, prenunciava o salto para o espaço e para a participação. Uma participação ainda visual, mas já associada ao dado perceptivo. A série intitulada Penetráveis inclui os trabalhos da “fase sensorial”, onde as relações plásticas são transformadas em vivências.

Trata-se de ambientes construídos por modulações cromáticas, criando uma espécie de espacialidade plástica que pressupõe o percurso do espectador no tempo (temporalidade real). Fazem parte as cabines, labirintos, abrigos e ninhos de lazer. Para alguns autores, essas novas ordens ambientais representaram a conquista da horizontalidade para a pintura, momento em que o dado pictórico vai para o espaço.

Concebidos inicialmente por maquetes, essas ordens eram projetos para uma construção em madeira em forma de labirinto com estruturas verticais deslizantes pelas quais o observador-participante adentra o espaço cromático (empurrando ou fazendo girar paredes, subindo escadas ou contornando placas e painéis) e segue caminhando nesse ambiente labiríntico, deparando-se com as gradações de cor, matéria, texturas, calores e tantos outros dados sensoriais incorporados ao espaço.

Geralmente os penetráveis se constituem de recintos individuais móveis que são envolvidos por um espaço maior, o qual pode vir a abrigar uma experiência coletiva. “O espaço torna-se literalmente arquitetônico, dispondo-se à virtual inclusão do ‘tempo orgânico’ das vivências”.

Como distingue Pedrosa, aqui “o espectador deixa de ser um contemplador passivo e é compelido à ação”. Nessa nova situação, fora do seu cotidiano convencional, ele participa numa comunicação mais direta, equivalente à dimensão vivencial dos Bichos de Lygia Clark, e, porque não, aos happenings de grupos como o Fluxus.

O próprio artista reitera: “transformar o que há de imediato na vivencia cotidiana em não-imediato”.

O primeiro projeto para um penetrável data de 1961 e foi exposto no MAM-RJ. A maquete do “Projeto Cães de caça” continha a idéia de tempo vivenciado, sob a forma de participação no que Pedrosa entendeu como “experiência do criador”.

A obra era um labirinto, formado por cinco Penetráveis, e foi montada no quintal da casa do artista antes de sua maquete ter sido exposta no museu. Além dos cinco penetráveis, o projeto compreende o “Poema enterrado” de Ferreira Gullar (1930) e o “Teatro integral” de Reynaldo Jardim (1926).

No labirinto, existe uma forte alusão à natureza, pela qual a transição entre os espaços é estruturada, as passagem são suavizadas pelo uso de diferentes materiais.

A alvenaria corresponderia ao universo elaborado, industrial (e remeteria a uma construção literal; a transição seria feita pelo mármore branco (matéria orgânica natural processada), idealizado para a calçada na entrada; e finalmente a área com areia, que resumiria o universo estritamente natural.

Não podemos deixar de observar aqui a importância do uso da linguagem da maquete como instrumento de experimentação para o alcance de uma dimensão espaco-temporal onde o corpo (por meio da escala humana) se encontra imerso no sistema de estrutura-cor. A referência às maquetes arquiteturais de Malevitch também se faz presente nesses trabalhos.

Em 1923, suas arquiteturas suprematistas indicavam desde lá uma disposição para a pintura desenvolver-se espacialmente. Para Gullar, as formas geométricas em lugar da representação dos objetos seriam quase que arquétipos do mundo natural, elementos restantes de uma redução radical de sua aparência.

Segundo ideais suprematistas, essas maquetes correspondem a signos intuitivos livres de qualquer alusão à natureza, que formam uma nova estrutura simbólica da realidade.

De par com isso, a arte ambiental de Oiticica carrega muito da referência anti-arte dada. Ao analisar as novas ordens ambientais, Favaretto identifica nelas uma proximidade à idéia de desestetização vinculada à tradição duchampiana.

A anti-arte de Duchamp opera com os objetos e materiais recolhidos do cotidiano e estes interessam por sua memória social. Diferentemente deste, o essencial em Oiticica é a impregnação de mundo que tais objetos transportam, já processados no comércio das trocas sociais. O que Salzstein traduz como “uma mais-valia do processo cultural”.

O artifício do labirinto nos remete a um jogo espacial imprevisível e enquanto tal identifica-se com a herança duchampiana de uma operação artística a partir da lógica imprevisível do xadrez. A imagem de jogo pressupõe vários caminhos pelos quais o observador-participante caminha e redescobre-se espacial e temporalmente na obra.

Se por um lado, os projetos subseqüentes, da série Penetráveis, seguem na descoberta libertária do desenvolvimento nuclear da cor, por outro, deslocam esta do espaço tradicional de atuação da arte em direção à conquista espaço-temporal dos domínios da própria obra, instaurada num campo alargado de atuação: Oiticica concebeu tais Penetráveis para os espaços abertos da cidade, praças, jardins, parques, playgrounds.

A estrutura labiríntica é um convite a perder-se na cidade, a romper com a ordem cotidiana das coisas. A segunda fase dos penetráveis compõe-se por proposições espaciais endereçadas ao espaço urbano da cidade, num confronto à rotina do pedestre. O artista buscava transformar o imediato do cotidiano em nãoimediato. Esses trabalhos colaboraram não só para o esgarçamento das fronteiras entre as linguagens, mas como também, e principalmente, incluíram a cooperação do ambiente na transformação do espaço do cotidiano, o qual é eternamente modificado pela relação obra-sujeito pressuposta nas manifestações ambientais.

A preocupação fundamental que preside os projetos é a de incorporar e reunir o espaço real num espaço virtual, estético, e num tempo que também é estético. “Seria a tentativa de dar ao espaço real um tempo, uma vivência estética”. A legitimidade da relação entre obra e lugar foi tratada por Roberto Pontual como condição necessária à realização da experiência proposta.

Que sentido teria atirar um ‘penetrável’ num lugar qualquer, mesmo numa praça pública, sem procurar qualquer espécie de integração e preparação para contrapor ao seu sentido unitário? Essa necessidade é profunda e importante, não só pela origem da própria idéia como para evitar que a mesma se perca em gratuidade de colocação, local etc.

Que adiantaria possuir a obra ‘unidade’ se esta unidade fosse largada à mercê de um local onde não só coubesse como idéia, assim como não houvesse a possibilidade de sua plena vivência e compreensão. A idéia de experiência coletiva em Oiticica se dá pela atividade estética no tempo e no espaço da cidade dirigida à mudança de comportamento em termos individuais e também coletivos.

A temporalidade estética reivindicada pelo artista na dimensão social do espaço-tempo do cotidiano se aproxima de uma idéia de abrigo, como se fosse uma tentativa de restaurar um espaço da domesticidade, delineado, da localidade, pelo qual a aproximação da arte seria possível (num estado de familiaridade).

Os magic squares

Entre 1977 e 1980, período em que reside em Nova York, Oiticica idealizou um conjunto de maquetes para serem feitas em grandes espaços, públicos, interessado na dimensão coletiva da obra. As maquetes para os penetráveis da série Magic Squares são aqui exemplos para continuar no debate sobre as possibilidades de realização do trabalho de arte nas grandes cidades contemporâneas.

“São maquetes para serem feitas em grandes espaços, que eu quero fazer em grande escala, para as pessoas entrarem, em espaços públicos”.

Nesse período, Oiticica reata com o antigo sonho de “Cães de Caça” de montar grandes espaços labirínticos em áreas livres e aproxima-se à realidade brasileira: Minhas pesquisas estão mais ligadas ao Brasil, porque são trabalhos que tendem ao coletivo, mais que ao individual.

A função de minhas maquetes, anteriormente, era a de uma participação coletiva planejada. Hoje, elas nascem como se fossem uma obra pública. Isso tem mais a ver com a realidade brasileira, do que com a própria arquitetura.

O primeiro da série foi concebido para a cidade de Nova York em 1977 e integrou os projetos batizados por Oiticica como “invenção da cor”. “Magic Square # 1” tratava-se de um penetrável com placas móveis correndo em trilhos e por suspensão, sendo que três rodam 1/4 de círculo. Cada placa teria 5 x 5 m.; a área total é de 15 x 15 m.

A posição das placas variava conforme a manipulação dos participantes, mudando também o percurso ambiental. No ano seguinte, ainda em Nova York, Oiticica idealiza o terceiro projeto da série. Magic Square # 3 foi inspirado na música, principalmente no rock e concebido para ser construído ao ar livre.

A associação da música à cor é sua orientação: “A invenção da cor é rock (…) assim como o que faço é música”. De acordo com a maquete, o penetrável seria composto de cubos desdobrados em placas de 5 x 5 x 5 m. de cores primárias e branco. O chão seria coberto com areia branca de modo a refletir a cor das paredes.

Outro exemplo das proposições de Oiticica que se endereçavam ao espaço urbano encontra-se atualmente nos espaços do Museu do Açude, instituição federal sediada na cidade do Rio de Janeiro. Seu deslocamento revela a complexa inserção da arte na cidade nas ultimas décadas, bem como as relações estabelecidas entre esferas pública e privada.

Desde 1999, o museu abriga uma coleção de arte contemporânea no entorno da sede, em meio à Floresta da Tijuca, intitulada Espaço de Instalações Permanentes, “cujo perfil acompanha uma tendência internacional de transformar grandes espaços públicos em museus a céu aberto”. Da coleção fazem parte atualmente seis trabalhos de artistas brasileiros, a maioria desenvolvidos para aquele lugar.

Escultura Moderna
Hélio Oitica
Magic Square nº 5 – De Luxe, 1979-99.
Penetrável composto de 9 placas verticais, dispostas como “paredes” (cegas e vazadas, com diferentes
materiais), e 1 placa horizontal translúcida, de acrílico azul, que configura uma “entrada”.

A realização póstuma do penetrável “Magic Square nº 5 – De Luxe” , pertencente ao acervo do museu, materializa certa impossibilidade de sobrevivência do trabalho às impregnações da cidade contemporânea, expressando a instabilidade da dinâmica social urbana e mesmo do território.

A obra concebida em 1979 para prefigurar em meio ao tecido urbano, imersa na temporalidade do cotidiano, foi deslocada do papel – em planta e maquete – para se instalar em domínio territorial alheio à cidade.

Ela mesma, enquanto projeto para um penetrável, engendrava contradições da sociabilidade urbana e, assim, lidava com os limites entre público e privado. O projeto compunha nove módulos de paredes, cada qual pintado de uma cor primária (vermelho, azul e amarelo) e/ou branco. Os módulos também variavam em paredes “cegas”, vazadas e/ou teladas.

O desenho da nova espacialidade configurava uma “micro-ambiência” pela decisão em se apoiar o único plano modular horizontal sobre dois módulos, gerando algo semelhante a um pórtico, indicando uma “entrada”. A diferenciação desse plano em relação ao demais também era marcada pela escolha de materiais; este era o único plano translúcido, feito com acrílico em tom azul crepuscular.

O penetrável se configuraria, assim, numa espécie de intervalo espaço-temporal na cartografia urbana – quer nos seus percursos quer na paisagem da cidade. A obra torna-se instrumento capaz de detonar uma experiência surpreendente, na qual o transeunte se transforma em ator dessa nova espacialidade, posição equivalente ao que os situacionistas chamaram de “vivenciador”, pela lógica da criação de uma “ambiência”.

Esse índice de intimidade, que possibilita criar uma situação individualizada dentro de qualquer que seja a macro-escala do espaço que o contenha, formula uma espacialidade da ordem do doméstico, da intimidade.

Por mais vazado e expandido que seja o penetrável em suas laterais, ao chegar à clareira onde a obra está instalada, o pórtico nos remete a entrada de um abrigo, no qual o visitante curioso percorreria um trajeto não sinalizado, espontâneo, impelido ora pela orientação da luz incidente no ambiente ora pela atração e repulsão provocada pelas cores impressas nas paredes e suas diferentes texturas promovidas pela diferenciação dos materiais ali empregados.

Em termos ambientais, tanto os Núcleos como os projetos em maquetes dos Magic Squares remetem ao que Oiticica propunha como inversão da arquitetura: “quero que a estrutura arquitetônica recrie e incorpore o espaço real num espaço virtual, estético, e num tempo, que é também estético.

Seria a tentativa de dar ao espaço real um tempo, uma vivência estética”. Para ele, “nas grandes pinturas e maquetes a relação arquitetônica mostra-se predominante e evidente, pelo fato de entrar aqui a escala humana”.

A confrontação da dimensão estética da obra na temporalidade do cotidiano, pressuposta pelos projetos ambientais do artista, é conduzida a um apaziguamento do trabalho de arte. Sua determinação como experiência coletiva, pública, torna-se possível como experiência individual, local, restrita às circunscrições do espaço institucional do museu. Resta saber se essa é realmente a única possibilidade contemporânea para dar vida aos desígnios amplificadores da obra de Oiticica e, por extensão, da arte.

A tentativa de recuperação dos itinerários e o desenho de um mapa final

A determinação dos trajetos históricos e conceituais delineados pelos itinerários e percorridos ao longo desta dissertação tentou analisar de que modo podemos compreender os processos de ruptura de linguagem – no caso, a escultura tratada com especial interesse – a partir de algumas inquietações que aparecem como atuais, mas que, como vimos, são fruto dos desdobramentos históricos impulsionados principalmente pelo caráter vanguardista e experimental – de experiências de deslocamento – do artista do século XX.

As transformações analisadas ao longo do primeiro itinerário colocam-se como recuperação de uma memória histórica e processual que pretendeu rever os desdobramentos da tradição moderna, revelando dentro dela sua própria crise. A crise da forma e, em especial, a crise da representação materializou-se tanto nos domínios da linguagem escultórica, por meio da perda funcional do lugar, em detrimento de uma certa autonomia operativa, como pelos discursos da abstração na pintura.

Seguiu-se na conquista por novas escalas, do objeto, do sujeito, liquidando de modo decisivo com as fronteiras entre as linguagens, em direção ao campo ampliado de Krauss. A arte viu-se, então, liberta em sua pura evidência, e como tal não deixou de afirmar-se por suas características intrínsecas vinculadas a uma especificidade que assegurava seu lastro social integrador.

Tanto a poética norte-americana do site specificity como as manifestações ambientais de impregnação neoconcreta passam a dispor o trabalho de arte como resultado de estratégias de atuação relacionais que pressupõe a recuperação de um sujeito em meio ao contexto urbano dos anos de 1960 e 1970, lidando com novas noções de espaço, tempo, participação e escala..

É nesse sentido que as inquietações que orientaram a pesquisa insistiram em tratar de práticas artísticas surgidas no universo das cidades pós-industriais que direta ou indiretamente buscaram enfrentar o meio cultural, física cultural e socialmente, impulsionadas pelas lida mais direta com o entorno e com seu interlocutor.

Tais experiências inauguram um novo espírito para a arte, como proposições que se dispuseram a atuar para além dos domínios circunscritos do circuito legitimado.

Crescem os interesses por práticas que buscam (re)aproximações – relações mais próximas e efetivas – entre o universo da arte e o mundo socialmente produzido. A pesquisa debruçou-se, assim, sobre um fenômeno contemporâneo no qual os artistas estão cada vez mais atentos às impregnações da cidade como elemento detonador de suas proposições.

As experiências de cidade operadas pelo trabalho de arte mostraram-se sob diversas formalizações, e derrubaram as teses mais categóricas de que toda arte que impõe-se entre um espaço e outro urbano, necessariamente torna-se pública, ou ainda de que operações sobre a cidade ocorrem necessariamente nesta.

Tais são os casos dos trabalhos de Resende, como vimos com o ensaio fotográfico publicado na Malasartes, tanto quanto suas provocações construtivas em exposições temporárias. Tal liberdade (ou se quisermos, alargamento de “categorias” como arte publica e site specificity) mobilizou boa parte dos artistas dessa geração pos-1960 para adentrarem num campo mais experimental, dos fenômenos, das vivencias e das circunstancias, em oposição às certezas do modernismo.

O caráter experimental desses trabalhos deu o cheque-mate na existência puramete objetual da arte, estabelecendo novos contornos, não apenas em termos formais, mas como de inserção no mundo e de como se coloca em relação ao outro, agora espectador-participante. Nada mais experimental e libertário do que caminhar pela cidade e se deixar se colocar numa situação imprevisível, plena de surpresas que detonariam um novo modo de se ver e de ver o próprio meio (social).

A figura do “perambulador” equivale à postura de um desejo de total disponibilidade – integradora como queria Oiticica – para com o outro e para com a cidade. A diversidade de proposições a partir de tais experiências não cansam de desdobrar-se, seja em relatos de passagem, em ensaios fotográficos, em projetos ambientais, em materiais áudio-visuais.

Os suportes não determinam as proposições artísticas como linguagem, mas auxiliam sua concreção, mesmo que sob a formalização de projeto, maquetes. Nesse sentido, o que poderia ser tratado puramente como projeto, uma representação em nível abstrato nos Magic Squares de Oiticica se mostrou poderoso por detonar um universo imaginário de percursos, estímulos e sensações imersivas e surpreendentes a cada mudança de escala.

São dispositivos ambientais que proporcionam experiências de deslocamento nas relações objeto-sujeito e objetolugar decorrentes das novas condições projetivas espaciais e temporais em que devolvem o passante na cidade.

A atitude reflexiva acerca dos lugares da arte atenta às qualidades de experiência geradas por novas estratégias de ação na cidade aparece mais uma vez no artigo de Resende. O artista constrói visual e iconograficamente um discurso crítico sobre os possíveis lugares para a atuação da arte e a importância da circulação desta como parte constitutiva do processo.

O problema estaria não mais na produção, mas no seu como – que envolveria o processo de distribuição e fruição.

Para tornar-se pública, Resende explica: “somente o convívio, um processo lento de relação [com a obra], poderá criar esta condição de bem público”.

A crise da idéia de cidade, tal como nos mostrou Arantes, estabelece um novo solo de condições dispares e conflitantes, elementos provocadores de novas experiências vivenciais: dispersão, no lugar de integração; diversidade, ao invés de alteridade; novidade, como distorção do novo; e valorização instantânea do passado.

A partir daí, os artistas passam a trabalhar em situações tópicas, não mais atrelados ao conteúdo utópico dos anos de 1960. A existência da arte e sua operação comunicativa passa a ser uma ação temporalizada e fragmentada. “Para a arte ser pública, é preciso que culturalmente também assim ela se efetive”, completa o artista.

Fonte: www.boundless.com/www.macvirtual.usp.br

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