Aspecto Verbal

Aspecto Verbal – O que é

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Em lingüística, o aspecto aspecto verbal é uma propriedade dos verbos e circunlóquios verbal, para indicar se a ação que expressam não foi concluída ou no instante indicado na referência de frase, ou seja, refere-se aos diferentes estágios de desenvolvimento da ação expresso pelo verbo.

É uma categoria ou função gramatical que ocorre dentro do predicado.

O predicado tem não só a ideia de certa ação ou de qualidade, mas também um modo de manifestação temporária deste, ou seja, aparência.

Embora ambos o tempo e a aparência referem-se à ordenação relativa de eventos, o tempo tem um carácter deíctico , enquanto o aspecto não.

Assim, o aspecto gramatical difere da tensa gramatical que conforme o tempo marca o momento em que algo acontece no momento atual (ou outro evento de referência), o aspecto especifica o tempo interno da ação ou o desenvolvimento ou alteração o mesmo que se destaca acima de todos os outros.

Na conjugação regular a “percentagem de conclusão” do evento se reflete, isto é, se você tem uma aparência perfeita ou aspecto perfectivo, apontando a ação acabado (ponto, finito, concluído) no momento em questão, como a aparência aspecto imperfeita ou imperfectivo, apontando uma ação inacabada (durative, em andamento) na hora externa em questão. A chamada conjugação perifrase ou outros circunlóquios expressa as nuances de aparência, menos importante do que estes.

O aspecto verbal pode ser:

Aspecto perfectivo que indica que a ação verbal é representada como terminou: Eu amei. . Eu terminei meus estudos ou aspecto imperfectivo indica que a ação é representada em um processo sem indicar se está sobre eu amo; Eu terminar meus estudos.

A aparência é expressa por meio de processos gramaticais, terminações verbais ou lexicais, paráfrases verbais: Estudei (perfectivo) ou eu tenho que estudar (imperfectivo).

Aspecto Verbal – Temporal

O aspecto verbal exprime a maneira como a ação ou o estado transmitido pelo verbo se apresentano seu desenvolvimento temporal.

Estudei a lição.
Tenho andado a estudar a lição.

Nestes exemplos, o mesmo verbo – estudar – apresenta aspectos completamente diferentes. Estudei apresenta-nos uma ação já completamente realizada. Tenho andado a estudar significa que a ação aindadura e se vai realizando ao longo do tempo.

Aspecto acabado e inacabado

Aspecto acabado (1):

Encontrei o Miguel.
Já não vou a tua casa.

Tanto o pretérito perfeito (encontrei) como o presente do indicativo na forma negativa + advérbio ( já não vou) exprimem uma ação que se dá como realizada.

Aspecto inacabado (1):

Tenho visto o Miguel.
No ano passado, ainda sabia o nome dessa rua.

Tanto o pretérito perfeito composto (tenho visto) como o pretérito imperfeito (sabia) acompanhadodo advérbio ainda, exprimem uma ação que, em determinado momento, é apresentada como não estando concluída.

(1) Aspecto acabado, perfectivo ou perfeito; aspecto inacabado, imperfectivo ou imperfeito.

Aspecto pontual e durativo

Aspecto pontual

Já cheguei.
A criança caiu.

O aspecto pontual refere ações cuja duração é a do momento, portanto curtas. A ação realiza-se num instante.

No aspecto pontual pode considerar-se ainda a subdivisão em vários valores, por exemplo:

Aspecto incoativo – Quando o verbo exprime a ideia de passagem de um estado a outro estado.Anoitecera.O teu irmão tornou-se impertinente.

Aspecto inceptivo – Quando a ação se apresenta no seu princípio:

Inicia-se agora o novo ano escolar.
O embaixador partiu para Londres.

Aspecto cessativo – Quando a ação se apresenta no seu final:

Elas deixaram de ver televisão.
Já não estou interessado em ir ao cinema.

Aspecto durativo

O artista pintava a casa.
A vizinha tem andado muito distraída.

O aspecto durativo descreve estados ou processos. O pretérito imperfeito pintava e o pretérito perfeito composto tem andado exprimem situações que não são (ou não foram) realizados num momento,mas sim se realizam (ou se realizaram) ao longo do tempo.

No aspecto durativo pode considerar-se ainda, por exemplo:

Aspecto iterativo Quando um determinado estado de coisas ocorre com uma certa regularidade:

A bola saltitou na minha frente.
Andas a chegar atrasado.

Aspecto frequentativo – Quando um determinado estado de coisas ocorre com frequência:

Vou muitas vezes ao cinema.
Ela come frequentemente.

O presente simples e alguns advérbios ou locuções adverbiais exprimem este aspecto.

Aspecto habitual – quando um determinado estado de coisas se apresenta como habitual, como costume:

Todos os serões, leio um capítulo do romance.
Era costume irmos à praia, ao domingo, em Agosto.

O presente do indicativo e construções verbais como costumar, ser costume, ser habitual, exprimem este aspecto.

Processos para exprimir o aspecto

Há várias maneiras de exprimir o aspecto:

Por meio de alguns tempos dos verbos: encontrei, tornou-se, pintava…

Por meio de formas perifrásticas: deixaram de, tem andado, andas a…

Por meio de sufixos e prefixos: anoitecer, embranquecer, saltitar…

Por meio de certas palavras ou expressões, nomeadamente os advérbios: já, já não, ainda, muitas vezes…

Por meio do significado existente no próprio verbo: cheguei, caiu, inicia-se, partiu…

ASPECTOS VERBAIS

Há um certo tempo, o estudo dos aspectos verbais deixou de ser obrigatório no Ensino Médio.

Realmente, o simples ato de decorar não teria sentido.

No entanto, o que percebemos é que muitas questões de interpretação dizem respeito ao aspecto de um verbo em determinado contexto.

De um modo geral, podem-se verificar três aspectos verbais.

São eles:

uma ação que se prolonga ( durativo );
um processo que se repete ( iterativo );
início de um processo e seu desenvolvimento.

É interessante que a simples observação dos sufixos que compõem os verbos já ajuda na identificação do aspecto o qual, por sua vez, revelará a intencionalidade do sujeito que praticou aquela ação.

Veja o quadro a seguir:

Sufixo Aspecto verbal Sentido Exemplos
-ear, -ejar Ação durativa (prolongada); o processo se repete (iterativo) Transformação, mudança de estado Cabecear, verdejar, gotejar
-entar Ação durativa Qualidade, modo de ser, mudança de estado (factitivo) Amamentar (ação que se prolonga), amolentar (tornar mole), ensangüentar
-ficar, -fazer Ação durativa Modo de ser, mudança de estado (factitivo) Liquidificar, liquefazer, mumificar, retificar
-icar, -iscar O processo se repete (iterativo) Diminutivo Bebericar, mordiscar, chuviscar, adocicar (tornar um tanto doce)
-ilhar, -inhar Iterativo Diminutivo Dedilhar, patinhar (na lama), (em)gatinhar
-itar Iterativo Diminutivo Saltitar, dormitar
-izar ação que se prolonga (durativa) Factitivo Alfabetizar, fertilizar, catequizar, computadorizar
-ecer, -escer Início de um processo e seu desenvolvimento Mudança de estado, transformação Amanhecer, rejuvenescer, florescer, enternecer, entardecer, ensandecer

Aspecto Verbal – Tempo presente e tempo futuro

Quando uma pessoa diz “Tomo banho todos os dias”, será que naquele exato momento ela está tomando banho? Não. O verbo está no presente, mas sua função é indicar um fato que se repete, um presente habitual.

Numa aula de história o professor fala: “Então, nesse dia, Napoleão invade …”

A forma verbal “invade”, que é presente, não indica que naquele momento Napoleão está invadindo algum lugar. Na frase, o tempo presente do verbo “invadir” faz remissão a um fato que ocorreu no passado e traz esse passado mais para perto.

Concluímos, então, que os tempos verbais têm outros valores além dos específicos.

Tomemos o futuro do presente como ele aparece nos “Dez mandamentos” bíblicos:

Amarás a Deus sobre todas as coisas
Não tomarás seu santo nome em vão
Guardarás os domingos e feriados
Honrarás pai e mãe
Não matarás
Não pecarás contra a castidade
Não furtarás ….

“Não furtarás”, ao pé da letra, significaria que é proibido furtar no futuro, apenas no futuro, o que abre a possibilidade de entender que o ato é perfeitamente aceitável no presente. Mas, na verdade, “não furtarás”, que é futuro, tem nesse caso o valor de imperativo e, como tal, indica que é proibido furtar em qualquer tempo.

Ao analisar um tempo verbal não se esqueça de considerar que ele pode indicar seu valor específico ou um valor paralelo (aspecto verbal), ou seja, um valor decorrente de seu uso no idioma.

ASPECTO VERBAL – UMA CATEGORIA REVELADORA NO ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA

Introdução

No discurso dos/as educadores/as, é comum ouvir que a produção escrita de um/a aluno/a é a melhor forma de verificar sua capacidade lingüística. Assim sendo, a princípio, os conteúdos e as tarefas escolares das aulas de Português deveriam ter como objetivo desenvolver a produção textual dos/as educandos/as. Curioso, no entanto, é observar como a escola imagina alcançar esse objetivo. Parte-se de palavras isoladas, estudam-se as formas e a estrutura da língua, acreditando-se na transferência automática por parte dos/as alunos/as daquilo que foi aprendido fora de uma situação de uso.

No caso específico do verbo, é prática tradicional apresentar seu conceito enquanto classe de palavra, para que os/as educandos/as o identifiquem em frases e textos. Em seguida, os/as aprendizes devem classificar essa palavra em relação à conjugação e à transitividade, exercitar a conjugação das formas regulares e, mais tarde, das irregulares e, por fim, realizar atividades em que as formas aprendidas devem ser empregadas de maneira adequada.

Nessa perspectiva, é natural que, na produção escrita dos/as alunos/as, os/as educadores/as cobrem exatamente aquilo que ensinaram: a adequada utilização morfológica e sintática das formas verbais. O que se espera é que as palavras sejam grafadas de acordo com as normas ortográficas, que estejam conjugadas de acordo com os quadros passados, que as correlações entre alguns tempos e modos especialmente problemáticos sejam respeitadas.

Essa prática tem se verificado na escola, nas aulas de Português, e dominado os livros didáticos, como constatou Silva (2001: 50) em uma amostragem que “reflete a predominância de um trabalho estruturalista e pouco funcional” (idem). Segundo a avaliação da autora, “isso representa a predominância dos conceitos gramaticais, em detrimento das informações fornecidas pela Lingüística” (ibidem). O resultado desse tipo de prática, todavia, não pode ser considerado satisfatório, uma vez que, ao avaliarem redações escolares, professores e professoras constatam o pouco domínio que os/as alunos/as mostram ter da linguagem escrita. Para aqueles que entendem a linguagem como uma atividade humana, a ineficiência das práticas tradicionais de ensino de língua materna é algo compreensível. Isso porque a língua não foi estudada no uso. Na visão funcionalista, o uso determina a forma e a ela se sobrepõe. Qualquer palavra só adquire significado se inserida em um contexto. A forma, por si só, tem pouco a dizer sobre como utilizar cada palavra ao se escrever um texto, ou seja, não revela a intenção que se tem, o público a que se dirige, a modalidade pretendida.

Ao se compreender a língua enquanto atividade social, inserida em um contexto específico e produzida a partir de intenções e expectativas de resposta, as palavras não podem ser estudadas de maneira abstrata. Cada forma pode adquirir significados diferentes, dependendo do uso que dela se faz. Por isso, características morfológicas e sintáticas são insuficientes para se desenvolver a capacidade lingüística do/a aluno/a. É necessário promover a reflexão sobre as características semânticas e pragmáticas de cada palavra em situações concretas de uso. Além disso, se buscarmos apoio também em Vygostky (1998), o desenvolvimento da língua enquanto atividade sociodiscursiva implica o desenvolvimento da autonomia da pessoa, identificável nas marcas de autoria que o/a usuário/a utiliza ao construir seu discurso. Um ensino essencialmente taxionômico, como o tradicional, jamais oportunizará esse desenvolvimento.

Também os Parâmetros Curriculares Nacionais sobre Língua Portuguesa, publicados em 1998, orientam os/as professores/as a trabalharem a língua materna a partir dessa visão:

O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento lingüístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem (PCNs Língua Portuguesa, 5ª a 8ª séries: 22).

Todas estas contribuições, no entanto, parecem não chegar às salas de aula. Neves (1990: 12-14) registra que as áreas do Programa de Língua Portuguesa mais trabalhadas são essencialmente as classes de palavras, a sintaxe e a morfologia; a semântica recebe espaço pequeno, enquanto a pragmática sequer é registrada.

Sabe-se que o guia da grande maioria dos programas para a disciplina é a Gramática Normativa; portanto, pode-se afirmar que os limites dos programas refletem os limites dessa gramática. Os motivos desta resistência são de muitas origens, e não se pretende fazer aqui um levantamento deles. Crê-se, todavia, na necessidade de empenhar tempo de pesquisa na busca de algumas soluções, com o objetivo de diminuir a distância entre os estudos lingüísticos e as práticas escolares. Assim, este trabalho pretende colaborar com a educação, de maneira mais específica com ensino de língua materna, ao mostrar de que maneira uma visão de linguagem baseada nos usos efetivos da língua pode favorecer a construção de uma proposta de prática de ensino da língua materna voltada para o desenvolvimento da competência comunicativa1 dos/as alunos/as.

A escolha do foco deste trabalho – o aspecto verbal – deve-se às observações feitas no decorrer do trabalho docente da pesquisadora e das colocações de Neves (2000: 23) de que todas as palavras da língua podem ser analisadas dentro da predicação, e de que sua base – o predicado – é constituída geralmente por um verbo. Acrescenta-se a isso o fato de essa categoria verbal exigir o domínio dos elementos extralingüísticos, tão desprezados nas práticas tradicionais de sala de aula a que nos referimos anteriormente. Como tentaremos mostrar neste trabalho, o aspecto verbal concretiza-se na língua portuguesa através da relação entre elementos de diferentes níveis de funcionamento da língua. Dessa forma, uma concepção de linguagem que se retém ao que é interno à linguagem jamais terá condições de descrever e explicar essa categoria verbal no Português. Também o ensino baseado nessa concepção não encontrará formas de oportunizar a aprendizagem do aspecto verbal, uma vez que não considera a interação e os elementos extralingüísticos componentes da atividade de linguagem.

1. Perspectiva teórica

Quando nos propomos a estudar o aspecto verbal em Português, enfrentamos imediatamente uma dificuldade: essa categoria verbal é desconhecida de muitos.

Professores e professoras, estudantes dos cursos de Letras e até acadêmicos/as de pós-graduação em Lingüística não raro jamais ouviram falar em aspecto verbal. De fato, o assunto não é abordado na maioria das obras que envolvem estudos lingüísticos e/ou gramaticais, o que Comrie (1981:1) ratifica, afirmando que o termo aspecto é “menos familiar para estudantes de Lingüística que outros termos de categorias verbais, tais como tempo e modo” (idem). Se isso é uma realidade no estudo das línguas em geral, para o Português pode-se dizer que pouco se sabe sobre o aspecto verbal e seu funcionamento em nossa língua. Os estudos ainda são insuficientes e constituem uma pequena amostra do que já se pesquisou sobre como essa categoria se concretiza na língua portuguesa. Na opinião de autores que mais recentemente se debruçaram sobre o enigma, alguns trabalhos estão repletos de confusões e enganos que em nada colaboram para a compreensão do assunto.

Aparentemente, essa confusão está fortemente ligada às concepções lingüísticas mais voltadas ao chamado ‘núcleo duro’ da Lingüística, isto é, às áreas mais tradicionalmente encontradas nas gramáticas e que estão diretamente relacionadas com o que é inerente, interno ao sistema: Fonética, Fonologia, Sintaxe, Morfologia e, de maneira menos rígida, Lexicologia e Semântica. O aspecto verbal não consegue ser abordado nestes estudos, porque não se manifesta unicamente através de marcas fonéticas, fonológicas, morfológicas ou sintáticas, tampouco se restringe à semântica dos verbos. Dessa forma, não encontra espaço para ser compreendido dentro dessas concepções. Em outras palavras, parecenos correto afirmar que, ao olhar apenas para dentro da língua, para o funcionamento das partes do sistema de maneira rígida, como elementos independentes, as escolhas que envolvem relações entre os elementos e principalmente os próprios elementos que se estabelecem na interação, no uso da língua, ficam de fora, o que implica excluir o aspecto verbal, justamente porque esta categoria se concretiza, na língua, através das relações entre elementos de diferentes níveis.

Assim é que o aspecto verbal não costuma ser abordado nas gramáticas tradicionais ou, conforme Azeredo (2000), deixa de ser mencionado, apesar de os gramáticos a ele se referirem. Também Travaglia (1985) destaca a pouca atenção que tem sido dada à categoria de aspecto no estudo do verbo em Português.

Segundo o autor, “evidência disto é o fato de nossas gramáticas tradicionais, com raras exceções, quase não tratarem desta categoria.” (Travaglia, 1985: 21). Isso se explica talvez pelo fato de a língua portuguesa não apresentar marcadores (morfológicos) do aspecto verbal e, por isso mesmo, ele ter sido deixado à margem nas pesquisas, já que grande parte dos estudos desenvolvidos no século XX mantiveram um forte compromisso com uma visão mais engessada de língua e linguagens em geral. Em comparação com outras línguas, a portuguesa não salienta a questão aspectual de maneira incisiva, utilizando, por exemplo, desinências específicas ou construções próprias para essa categoria do verbo.

1.1. O Funcionalismo

O Funcionalismo surgiu como escola lingüística em resposta ao estruturalismo, criticando os limites da visão de língua presa ao sistema, como uma estrutura suficiente em si. Os pensadores do Funcionalismo com que nos identificamos nessa pesquisa destacam, acima de tudo, o caráter social da linguagem, sendo esta concebida como uma ferramenta criada pelo e a serviço do ser humano em suas relações na sociedade. Dessa forma, qualquer linguagem desempenha, em primeiro lugar, uma função comunicativa à qual a forma se adapta. Aquilo que é interno, portanto, surge de atividades humanas que se localizam fora da estrutura lingüística e geram os diferentes usos.

Portanto, quando falamos que perceber o aspecto como uma categoria verbal significa compreendê-lo enquanto responsável por uma função específica na língua estudada, estamos resgatando os ensinamentos de lingüistas como Givón e Halliday.

Para entendermos o que significa enxergar a função que uma categoria tem dentro da língua, encontramos em Givón (1995) uma referência a Halliday (1973), que nos alerta para o fato de que considerar a função de um elemento lingüístico significa, em primeiro lugar, investigar seu uso:

[…] Uma pesquisa funcional para a linguagem significa, antes de tudo, investigar como a linguagem é usada: tentando achar quais são os propósitos para os quais ela é usada, e como estamos aptos a obter esses propósitos através do falar e do escutar, do ler e do escrever. Mas isso significa mais do que isso. Significa tentar explicar a natureza da linguagem em termos funcionais: observando se a própria linguagem é moldada no uso, e caso seja, de que maneira – como a forma da linguagem tem sido determinada pela função em que ela está inserida para servir […] (Halliday,1973, p. 7, apud Givón, 1995, p.2 – tradução livre).

O próprio Givón explica “…todas as pressões funcionais -adaptativas que formam a estrutura sincrônica – idealizada – da língua são usadas na performance atual.

É nela que a linguagem é adquirida, que a gramática emerge e muda” (Givón, 1995: 7 – tradução livre).

Na citação, Givón está esclarecendo uma premissa do Funcionalismo, à qual se juntam outras:

a linguagem é uma atividade sócio-cultural;
a estrutura cumpre uma função cognitiva ou comunicativa;
a estrutura é não-arbitrária, motivada, icônica;
mudança e variação estão sempre presentes;
o significado é dependente do contexto e não atômico (não casual e não mecânico);
categorias são menos-que-discretas (less-than-discrete);
a estrutura é flexível, não rígida;
a gramática é emergente;
as regras da gramática permitem algumas fugas (distorções).

Essas premissas, segundo o próprio autor, são válidas, mas seguidamente degeneradas, porque tratadas como leis fechadas. Ele lembra, no entanto, que elas são válidas até um certo ponto e em contextos bem definidos, já que qualquer sistema processual biológico é tipicamente interacional. Dessa forma, se o funcionalismo atribui um valor maior à função, sendo a forma dependente dela, também temos considerar que qualquer generalização fica submissa ao contexto, ou seja, ao uso. Assim é que, nas palavras do lingüista, “o surgimento e a subseqüente mudança nas estruturas gramaticais é sempre motivada funcionalmente” (Givón, 1995: 10). Ao contrário do que pode parecer, isso não significa rejeitar a estrutura formal. Afinal, se há uma ritualização e uma gramaticalização, então ocorre o surgimento de uma estrutura formal. A diferença da visão funcionalista em relação à estruturalista, no entanto, é perceber que essa estrutura tem uma motivação funcional, embora, muitas vezes, essa motivação se perca no próprio uso. Por isso, Givón chama a atenção para o necessário equilíbrio que deve haver entre o processamento automatizado (mais categorial) e o consciente (attended – mais contextual e flexível). Uma categoria pode apresentar uma certa regularidade de emprego que, no entanto, em um uso específico é quebrada. Givón defende que esse sistema complexo é dominado pelo/a falante da língua em questão através da ativação gramatical e semântico-lexical e pelo reconhecimento da palavra-forma. Um exemplo que ilustra bem essas asserções de Givón é a possibilidade de um nome próprio masculino – João – ser tranqüilamente substituído, em uma sentença qualquer, por um pronome pessoal – ele. Em um texto real, porém, essa substituição pode não ser possível, pelo simples fato de haver outros substantivos masculinos no texto, o que geraria ambigüidade. Ou seja, a substituição não se aplicaria a esse caso em especial, sob o risco de o texto não cumprir sua função comunicativa.

Compreende-se, então, que a língua não se restringe à forma, envolvendo, segundo Givón (1995), três domínios distintos:

semântica lexical (significado das palavras);
semântica frasal (informação proposicional);
pragmática discursiva (coerência transfrasal).

O autor salienta que essas três áreas se relacionam de forma a uma incluir a outra, o que gera uma dependência que vai da maior para a menor. É assim que, para compreender o sentido de um texto, sempre se inicia pela busca do contexto que o gerou. Nesse ponto, aproximamos as afirmações de Givón (1995) da visão de Halliday (1974) de que a linguagem é essencialmente um produto social, que surge da interação entre os seres humanos.

Ele defende: “A língua não se realiza em abstrato, mas se realiza como atividade dos homens em situações, como fatos lingüísticos manifestos em um determinado dialeto e registro” (Halliday, 1974: 113). Dentro dessa percepção é que Halliday destaca o caráter social que a língua tem, no sentido de demarcar a posição social de um indivíduo. Aqui, como se vê, a questão pragmática recebe atenção especial, uma vez que um uso pode perfeitamente cumprir sua função comunicativa, mas, ao mesmo tempo, salientar um ‘valor’ que o emprego recebe no grupo em que foi utilizado. O resultado é que o que foi compreendido pode ou não ser atendido, segundo critérios de prestígio social ligados ao uso específico de certas estruturas da língua.

O estudo do aspecto verbal, para nós, insere-se nos marcos do Funcionalismo, em primeiro lugar, porque acreditamos nesta visão de como a linguagem humana se realiza. De modo especial, porém, porque na língua portuguesa essa categoria não se restringe a nenhuma área específica, o que nos obriga a considerar vários elementos, tanto intra quanto extralingüísticos, para a compreendermos de fato. Essa realidade faz com que não se possa considerar a parte sem o todo, ou seja, não se possa estudar a categoria verbal de aspecto sem considerar o contexto de produção que gera o discurso em que ela se está inserida. Mesmo encontrando-se regularidades, o que deverá ser levado sempre em conta é o conjunto construído para atingir um determinado propósito comunicativo, no qual as formas estão a serviço do cumprimento de uma função que tem como objetivo final uma intenção comunicativa. Assim é que, dialeticamente, o aspecto verbal compõe uma relação de dependência própria da atividade humana da linguagem, sendo, ao mesmo tempo, independente de qualquer forma rígida ou previamente determinada.

1.2. Definindo aspecto verbal

Para melhor entendermos a categoria aqui estudada, convém defini-la com maior precisão. Essa tarefa, porém, não se constitui como algo fácil, uma vez que não identificamos consenso entre os autores que abordam de alguma forma o aspecto verbal. Assim, foi necessário buscar em diferentes trabalhos e estudos lingüísticos, tanto em língua portuguesa quanto em outras línguas, um aporte mínimo para compreender melhor o funcionamento dessa categoria verbal.

Quando dizemos que queremos entender de que maneira a categoria desempenha sua função na atividade que percebemos ser a linguagem, já estipulamos a que abordagens sobre o assunto recorremos: a autores e autoras que mantêm um compromisso com uma visão de linguagem como algo que ultrapassa o sistema, que considera, portanto, os elementos extralingüísticos na realização dessa atividade. Encontramos algum material em língua inglesa e poucos autores e autoras de língua portuguesa que abordaram as relações não-dêiticas de temporalidade que compõem o discurso.

Por uma questão de espaço, apresentaremos apenas as definições de dois autores que consideramos fundamentais: um que estudou a categoria na língua portuguesa e outro, na inglesa.

Para iniciarmos com um autor brasileiro, queremos apresentar a definição de Travaglia (1985) dessa categoria:

Aspecto é uma categoria verbal de TEMPO, não dêitica, através da qual se marca a duração da situação e/ou suas fases, sendo que estas podem ser consideradas sob diferentes pontos de vista, a saber: o do desenvolvimento, o do completamento e o da realização da situação (Travaglia, 1985: 53 – grifo e destaque do autor).

Como se vê, “o aspecto diz respeito ao tempo interno, de realização da situação” (Travaglia, 1991: 78) que, portanto, não se relaciona com um ponto de referência externo à situação, pelo contrário, implica a observação do desenvolvimento da situação em si, como uma atividade que dispensa um certo tempo para se realizar.

Nesse sentido, o aspecto se contrapõe a outra categoria verbal: o tempo.

Enquanto o tempo marca a realização de uma situação em relação a outras situações presentes no texto, sendo que essa relação se apóia em um tempo referencial, o aspecto determina a extensão interna da situação, sem nada dizer sobre sua realização em consideração ao ponto de referência temporal estabelecido no texto. Outra diferença que o aspecto apresenta, quando comparado com o tempo verbal, é que este vem marcado morfologicamente de maneira clara, através de desinências temporais específicas, enquanto aquele, como já se afirmou, não depende exclusivamente dessas marcas.

Comrie (1981), ao definir aspecto, o compara com o tempo, descrevendo este como uma categoria dêitica que se estabelece na relação com um ponto de referência. Destaca ainda que o momento de referência é chamado de tempo absoluto, em inglês, quando considerado, de maneira geral, o momento presente; quando a referência é um outro ponto, estabelecido no discurso, chama-se de tempo relativo.

Percebe-se nessa menção, a compreensão da existência de diferentes momentos que interferem na produção discursiva, como destacou Reichenbach (1947): o momento da produção, o momento do processo e o momento psicológico de referência (apud Bronckart, 1999: 276).

Já o aspecto é apresentado pelo autor, de maneira geral, da seguinte forma: “aspectos são diferentes maneiras de observar a constituição temporal interna de uma situação” (Comrie, 1981: 3). Acrescenta, buscando esclarecer essa diferença, que aspecto não é dissociado (unconnected) de tempo (time), ou seja, tanto a categoria de tempo (tense) quanto a de aspecto se relacionam com tempo (time), mas de maneiras muito diferentes.

Nas palavras do próprio autor:

[…] tempo (tense) é uma categoria dêitica, i.e., localiza as situações no tempo (time), comumente com referência ao momento presente, mas também com referência a outras situações. Aspecto não tem o papel de relacionar o tempo (time) da situação a um outro ponto temporal, mas, pelo contrário, com a constituição interna de uma situação; podemos colocar a diferença como estando entre ‘tempo interno da situação’ (aspecto) e ‘tempo externo da situação’ (tempo) (Comrie, 1981: 5 – tradução livre).

Conclui-se, portanto, que o aspecto mantém uma estreita relação com o tempo verbal. Além de ambos serem categorias do verbo, relacionam-se com a temporalidade.

No entanto, é necessário destacar a diferença no tipo de relação que cada uma estabelece: enquanto o tempo verbal se apóia em um ponto de referência estabelecido no discurso e, a partir dele, localiza a situação em uma linha de tempo, marcando anterioridade, simultaneidade ou posterioridade em relação ao momento tido como referencial, o aspecto apresenta uma noção de temporalidade interna ao próprio evento, que determina o desdobramento da situação, independentemente de sua localização na linha de tempo, dentro do espaço temporal do discurso. O que fica claro é o caráter não dêitico da categoria verbal de aspecto em oposição à característica dêitica do tempo. Ainda é importante salientar que, conforme destacado pelos/as autores/as estudados/as, o aspecto verbal não apresenta uma forma única de concretização, manifestandose de modos diversos nas diferentes línguas e, especialmente, combinando uma série de elementos na sua realização. O tempo verbal, ao contrário, é geralmente marcado por desinências específicas, apresentando, portanto, formas mais fixas.

1.3. O Aspecto como categoria textual-discursiva

Completando o que se disse anteriormente, convém lembrar que, a respeito das características aspectuais, por mais que possam ser esquematizadas e alguns empregos típicos determinados, apenas a ocorrência das formas em atividades reais de uso da língua pode nos fornecer informações confiáveis sobre a noção aspectual pretendida em cada caso. Travaglia (1991) estabeleceu uma relação entre algumas tipologias textuais e o uso das categorias verbais, entre elas o aspecto, baseando-se em um levantamento feito a partir de textos tirados de diferentes meios de circulação. Nesse levantamento é possível observar a incidência de cada noção aspectual nos diferentes tipos de texto através de uma tabela. Nela, vemos que o aspecto indeterminado está bastante presente nas dissertações e descrições, e que o pontual é freqüente nas narrações presentes, por exemplo.

Outro autor importante nessa discussão é Bronckart (1999), que, assim como Travaglia (1991), aponta o aspecto verbal como um dos elementos responsáveis pela coesão verbal, ou seja, como um mecanismo de textualização.

Ao destacar as controvérsias suscitadas no estudo do aspecto verbal, justamente por ser uma categoria complexa e multiforme, o autor afirma:

[…] o conjunto dos constituintes do sintagma verbal podem marcar […] uma ou várias propriedades internas do processo (sua duração, sua freqüência, seu grau de realização, etc). É essa expressão de uma propriedade interna ou não relacional do processo, expressa pelos constituintes do sintagma verbal, que é chamada de aspecto ou aspectualidade (Bronckart, 1999: 278 – grifos do autor).

Travaglia (1991), apresentando uma abordagem mais funcionalista, analisou de que maneira a categoria verbal de aspecto colabora na coesão textual, sendo, portanto, essencial para que o discurso atinja seu objetivo comunicativo. O autor concluiu que o aspecto verbal atua de maneira decisiva no estabelecimento da continuidade, na relevância, na definição de primeiro e segundo planos, na distinção de trechos de progressão dos de elaboração de um ponto e, inclusive, na concordância no nível frasal.

Essas colocações mostram claramente o que se pretende dizer ao defender que a aspectualidade é um fator de contextualização, que exige, portanto, noções semânticas e pragmáticas. No entanto, isso não significa afirmar que seja impossível identificar os elementos que alteram o aspecto verbal em nossa língua.

Dentre eles podemos destacar (Oliveira, 2003:133):

natureza semântica dos predicados;
afixos que contêm também informação temporal;
construções com auxiliares e semi -auxiliares (tem lido, começou a ler, está lendo);
certos adverbiais e a natureza sintático-semântica dos sintagmas nominais.

Dessa maneira, é possível definir algumas regularidades e tendências, que apontarão os determinação das noções aspectuais e que a relação entre eles colocará em evidência qual dos elementos em questão deverá sobrepor-se em cada caso, ou até que nuance original um determinado emprego pode passar a ter. Essa percepção reforça a capacidade do/a falante nativo/a de refletir sobre as escolhas que estão à disposição em sua língua e de criar situações em que melhor conseguirá expressar aquilo que pretende. Em outras palavras, a capacidade de perceber as noções aspectuais com precisão está intimamente ligada ao desenvolvimento da competência comunicativa do/a falante.

Não convém aqui expormos a relação de noções aspectuais encontradas, mas cabe ressaltar que há consenso entre os/as autores/as que pesquisaram essa categoria verbal sobre a saliência da dicotomia imperfectivo/perfectivo. Enquanto o aspecto perfectivo desempenha um papel na construção do texto/discurso – o de fazer a narrativa progredir -, o imperfectivo tem função diversa – fica responsável pela figuração, pelo plano de fundo, pelo cenário que dará suporte à narração. Essas funções bem delimitadas foram discutidas por vários/as autores/as que abordaram a questão. De fato, o levantamento das ocorrências de cada noção em textos narrativos ratifica a tese de Hopper (1979) de que as formas imperfectivas compõem o plano de fundo (background) e as perfectivas, o primeiro plano (foreground), mas também demonstra que não se pode estabelecer empregos fixos e noções fechadas.

Ao fazermos um levantamento das noções já descobertas, no entanto, encontramos diferenças que exigiriam um estudo maior, válido se o objetivo fosse estabelecer como essa categoria verbal se realiza no português, apresentando uma proposta de classificação para as noções encontradas em nossa língua, como fez Travaglia (1985), por exemplo. Mas não é isso que se pretende aqui. Nossa intenção é destacar que o aspecto verbal exerce uma função na construção textual/discursiva, o que acreditamos ter ficado claro, para, a partir desse fato, fundamentarmos nossa proposta de aplicação pedagógica. Como já destacamos e explicaremos mais adiante, a proposta que construímos envolve uma aplicação que almeja mostrar as implicações de uma concepção de linguagem no ensino de língua materna. Assim, buscamos oportunizar a reflexão dos/as eduncandos/as sobre essa categoria tradicionalmente esquecida em sala de aula; não havendo, portanto, qualquer preocupação com classificações.

Dessa maneira, acreditamos suficiente considerar que as noções que destacam a perspectiva interna de uma situação, chamando a atenção para a realização do fato em si, se ligam ao imperfectivo – é o caso do habitual, do durativo, do iterativo, na maioria das vezes, do progressivo, do atélico; enquanto que aquelas noções que destacam a ausência dessa perspectiva – como o pontual, o télico, o acabado, o concluído – estão mais ligadas ao perfectivo. Essas relações, todavia, não são diretas, podendo ocorrer entrecruzamentos entre noções aparentemente contraditórias.

2. A construção de uma proposta de aplicação

Dois fortes motivos nos fizeram crer na validade de estruturar a pesquisa a partir dessa categoria verbal: de um lado, o fato de os/as alunos/as mostrarem, em suas composições, bastante dificuldade no seu domínio; de outro, por ser o aspecto verbal uma categoria tão complexa e, por isso mesmo, tão evitada nas abordagens tradicionais da gramática e de sala de aula.

Com o foco lingüístico da pesquisa estabelecido, tratamos de definir a coleta de dados. Utilizamos para isso o primeiro encontro no início do ano letivo de 2004 com turmas do 2º ano do Ensino Médio. A escola na qual esses grupos, compostos, em sua maioria, por adolescentes, estudam é estadual e localiza-se em um bairro popular de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre. A escola é a segunda maior da cidade e sua comunidade é, do ponto de vista sócio-econômico, bastante mista. Nas turmas do Ensino Médio diurno, os/as estudantes que permaneceram na escola e nesse turno, no geral, são aqueles que se destacaram no Ensino Fundamental e apresentam um bom suporte familiar para prosseguirem os estudos. Já as turmas do noturno são compostas por alunos/as que trabalham durante o dia.

Apesar disso, nesse ano, as duas turmas do noturno com que trabalhamos não apresentaram muitas diferenças relacionadas à idade ou à classe social entre os/as estudantes: ambas eram compostas basicamente por adolescentes vindos/as de famílias de trabalhadores/as, e moravam nas redondezas. Também boa parte dos/as alunos/as, tanto do diurno quanto do noturno, já freqüentavam essa escola há mais tempo.

Para verificar as dificuldades que os/as estudantes apresentavam em relação ao uso das formas verbais, priorizamos a produção de um texto escrito da ordem do narrar, pois avaliamos que eles se prestam para denunciar as dificuldades do/a produtor/a em relação ao aspecto verbal. Baseamos-nos nos levantamentos de Travaglia (1991) que mostram que textos narrativos apresentam alto índice de presença de aspectos como o perfectivo, o imperfectivo, o durativo, o pontual, o cursivo.

A ordem da tarefa foi assim passada: “Relatar uma experiência significativa em relação à aprendizagem de Língua Portuguesa, mostrando se ela marcou positiva ou negativamente”.

O trecho abaixo ilustra as dificuldades apresentadas pelas turmas:

(1) Estavamos debatendo um assunto e a professora fez uma pergunta ninguém respondia a pergunta nenhuma, e quando alguém respondia sempre achavam um motivo para rir. Levantei, o meu braço e respondi o que eu achava todos riram muito, minha professora falava que naquela sala era bom de dar aula, pois todo mundo era o sabe tudo ninguém fazia pergunta então não precisava explicar muito.

O fragmento apresenta vários problemas; a forma verbal destacada, porém, localiza um desses problemas no aspecto verbal. Uma forma imperfectiva foi utilizada no lugar de uma perfectiva, que seria adequada à situação narrada, já que a “fala” da professora se deu em um momento específico e já concluído no passado. A forma destacada deveria ser substituída por falou.

Após a coleta dos dados e a constatação de que realmente havia problemas no uso das formas verbais para expressar as noções aspectuais de maneira adequada, construímos uma proposta de aplicação baseada na concepção de linguagem aqui defendida. Nela o ensino só pode ser entendido como um processo em que a língua não é uma forma a ser aprendida e respeitada enquanto abstração, mas um elemento ativo, vivo, capaz de transformações sociais. Assim sendo, qualquer prática que vise a desenvolver nos alunos a linguagem deve partir e ter como objetivo a língua enquanto atividade concreta. Sua produção deve ser considerada pragmaticamente, em todos os seus aspectos contextuais.

Isso nos leva a duas questões, levantadas por Neves (2000a), que devem ser consideradas para que se consiga produzir sentido ao utilizar a língua:

1. a compreensão daquilo que no funcionalismo […] se chama “modelo de interação verbal”, ou seja, o esquema efetivo e pleno da interação no evento da fala;
2. a compreensão do jogo entre as determinações do sistema e as possibilidades de escolha dentro desse evento […] (Neves, 2000a: 53).

Nesse sentido, ou seja, levando-se em conta tanto a interação em si quanto as escolhas que a língua permite, Pereira (2000) procura mostrar que é necessário promover a reflexão sobre a língua, sem negar a importância de se aprender como ela deve ser usada, ou seja, devem existir, nas aulas de Português, momentos distintos: da ordem da ação – momentos em que se pratica a língua – e da ordem da reflexão – momentos em que se estuda a língua. Os dois momentos se fazem necessários, porque, ao contrário daquilo que alguns/mas professores/as imaginam, conhecer uma metalinguagem não equivale automaticamente a adquirir uma competência processual. Na obra, Pereira fala de malabarismos conceituais realizados por professores/as ao usarem os textos apenas como pretexto para um ensino bastante normativo e centrado nos aspectos micro-estruturais. Outra questão levantada é a crença de que a motivação por si só pode garantir o sucesso da produção textual dos alunos. Embora muitas pesquisas já tenham apontado a possibilidade de se confirmar essa hipótese – da eficiência da motivação -, Pereira acredita que não se pode reduzir o trabalho a isso. Muitas tentativas de se promover uma situação real de produção, como as correspondências interturmas e os jornais -murais, mostraram que, embora possa haver um estímu lo em relação à escrita, este não é suficiente para garantir o desenvolvimento da competência comunicativa. Além disso, o/a aluno/a sabe que, em última instância, o texto é produzido para a escola. Já se estabeleceu até a existência do gênero escolar (Schneuwly, 2002). Nesse sentido, como não é possível criar de maneira virtual um espaço real, a autora crê na transparência, i. e., deve-se aproveitar essa consciência que os/as alunos/as têm de que o texto escolar serve para se aprender a escrever e sistematizar esse ensino. Isso é essencial para que o/a aluno/a “compreenda o sentido e atribua sempre significação à tarefa que executa” (Pereira, 2000: 311).

Travaglia (2003), seguindo a mesma linha, defende que o ensino deva ser plural, no sentido de envolver atividades que promovam tanto o uso da língua, quanto a reflexão sobre ela, o desenvolvimento cognitivo que ela propicia e, por fim, o domínio dos padrões de prestígio social da língua. O autor acredita que se deva assumir a postura de que gramática é tudo que afeta a produção de sentidos por meio de textos da língua. Assim, a dicotomia tão presente no ensino texto x gramática perde o sentido. Entender que a gramática é usada para se construir bons textos e não para ser estudada enquanto objeto independente é o primeiro passo para que se efetuem mudanças na educação escolar. O passo seguinte é oferecer um estudo gramatical do texto, o que é muito diferente de usar o texto como pretexto para se estudar algum conteúdo programático que envolve a gramática tradic ional. A produção e a compreensão de texto serão, assim, desenvolvidas ao mesmo tempo que a gramática. Esse ensino preparará o/a aluno/a para a vida e para a conquista de uma melhor qualidade de vida e o resultado será um/a usuário/a competente da língua, que não só recebe as formas da sociedade e da cultura, como também a elas dá forma.

Além disso, ao buscarmos uma aprendizagem que favoreça o desenvolvimento da autonomia, acreditamos que a educação lingüística desempenhe um papel fundamental para alcançar esse objetivo, pois os/as alunos/as, uma vez senhores/as dos saberes da língua, tornam-se capazes de produzir seus próprios textos e de fazer escolhas conscientes, deixando de apenas reproduzir modelos que outras pessoas – que ocupam instâncias de poder – apresentam como ideais. Essa compreensão vai ao encontro do conceito dialógico da linguagem de Bakhtin (1981), em que os interlocutores têm uma postura ativa em relação ao que recebem e produzem. Ora, ser ativo significa necessariamente colocar-se como autor dos enunciados realizados.

Outra questão a se considerar é a existência de uma distância entre os saberes de referência e os saberes a serem ensinados, i.e., aquilo que se sabe/conhece sobre o conteúdo a ser trabalhado com os/as alunos/as não será transposto ipsis litteris em sala de aula, já que não é objetivo da Educação Básica formar especialistas. Essa distância constitui a base do conceito de transposição didática, conceito que, segundo Garcia-Debanc (1998), foi inventado pelo sociólogo Michel Verret. É necessário, portanto, em primeiro lugar, transformar o objeto de estudo em objeto de ensino. Esse processo é conhecido como transposição didática ou como práticas de referência.

Também Schneuwly e Dolz (2004) defendem a transformação do objeto de estudo em objeto de ensino. Para eles, as transposições didáticas devem ser planejadas em forma de seqüências didáticas, que eles definem como “conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero oral ou escrito” (Schneuwly e Dolz, 2004: 97). Segundo os autores, essas seqüências apresentam um número limitado e preciso de objetivos e são organizadas a partir de um projeto de apropriação de dimensões constitutivas do objeto de ensino. Apesar de o conceito estar direcionado para o trabalho com gêneros, acreditamos que as seqüências didáticas podem e devem ser aplicadas também no ensino da gramática. Até mesmo porque esses autores, que defendem uma linha totalmente voltada à produção discursiva, em que o objetivo primeiro da língua materna é ensinar gêneros, afirmam que “é essencial reservar tempo para o ensino específico de gramática, no qual o objeto principal das tarefas de observação e de manipulação é o funcionamento da língua” (Schneuwly e Dolz, 2004: 116). Essa afirmação reforça nossa convicção de que o trabalho com textos, voltado somente para a compreensão e a interpretação de seu conteúdo, ou unicamente para um dos planos que compõem o texto – o macro-estrutural, por exemplo – sem o estudo de elementos lingüísticos é insuficiente para uma aprendizagem de língua materna. É necessário reservar espaço em sala de aula para a reflexão sobre o uso das categorias lingüísticas e a análise de sua função e de seu funcionamento, através de atividades específicas.

Do funcionamento da linguagem fazem parte, portanto, a atividade de linguagem como um todo, o conjunto, mas também o papel de cada elemento inserido nesse todo, de forma que voltamos ao que já foi dito e repetido: é necessário, sim, trabalhar a gramática nas aulas de Português.

Dessa feita, considerando todas as contribuições acima destacadas de estudos voltados para o ensino de língua materna, chegamos a um denominador comum, que pode ser expresso em premissas seguidas na construção da proposta:

1) a língua deve ser sempre trabalhada a partir de situações concretas de uso, que nortearão a seqüência didática a ser desenvolvida;

2) esta deve ter como objetivo contribuir com os/as alunos/as na resolução de suas dificuldades;

3) para que os/as estudantes se apropriem de fato dos objetos de ensino, transformando-os mais uma vez – agora em saberes aprendidos – , faz-se necessário promover a reflexão sobre o funcionamento da língua e de seus elementos (situados em textos e discursos);

4) somente a produção textual dos/as aprendizes poderá indicar até que ponto eles/as realmente aprenderam. Seguindo essas premissas, acreditamos que o ensino de língua materna terá mais possibilidades de alcançar os objetivos expressos nos PCNs (1998), tanto em relação à aprendizagem da língua portuguesa, quanto em relação à consolidação de uma educação que promova a autonomia. Foi assim que, observando essas orientações e acreditando nelas, construímos uma proposta de aplicação para testarmos tanto sua aplicabilidade quanto os resultados advindos de uma prática baseada nessas premissas. Em outras palavras, considerando as reflexões acima expressas, que envolvem tanto a concepção de linguagem quanto a visão sobre o objetivo do ensino da língua materna, tivemos a pretensão de repensar a prática de ensino, buscando a coerência entre proposta e prática, ao construirmos seqüência didática para o trabalho com o aspecto verbal.

A seqüência didática partiu de textos tirados de jornal (uma crônica, uma propaganda e um conto – todos relacionados ao tema “livro”). A partir deles, foram elaboradas questões que exigiam a reflexão dos/as alunos/as a respeito do sentido das formas verbais em cada texto. As noções aspectuais eram destacadas a partir de perguntas específicas que solicitavam dos/as estudantes a explicitação do sentido percebido no uso de cada forma, e também de questões que promoviam mudanças nas formas que implicavam alteração do sentido ou da intenção comunicativa do/a autor/a, fato que o/a aluno/a igualmente deveria perceber e explicar. Após o estudo de cada texto e das formas verbais neles empregadas, os/as aprendizes produziam uma redação. O resultado, após 20h/a, foi redações em que as formas verbais que expressam noções aspectuais foram utilizadas de maneira consciente, demonstrando a apropriação do saber ensinado.

Os textos a seguir ilustram o resultado do trabalho em relação ao domínio, por parte dos/as alunos/as, das formas adequadas para expressar as noções aspectuais pretendidas. O primeiro texto – exemplo (2) – é uma crônica. Sua autora utilizou o presente do indicativo para expressar a duração das situações presentes no texto e seu caráter atemporal, em que as situações recebem um valor de norma, lei, e permanecem sendo válidas por tempo indeterminado.

(2) A importância da leitura em nossa vida

A leitura é um instrumento básico da educação e um dos hábitos mais importantes na vida cotidiana.

Através da leitura, podemos viajar, conhecer lugares incríveis, conhecer novos personagens e mexer com a nossa imaginação.

Leitura nos desenvolve um vocabulário amplo e útil, é maravilhoso ler, tentar descobrir os significados exatos, adquirir novos conceitos e avaliar a idéia do escritor.

Os livros nos proporcionam conhecimentos que nos ajudam de diversos modos.

Para quem lê com facilidade e rapidez, o mundo dos livros oferece horas intermináveis de prazer e entretenimento variado.

Os livros são uma fonte de inspiração e prazer; por isso, devemos cultivar esse hábito que quebra a rotina e nos enche de sabedoria.

O segundo texto – exemplo (3) – também apresenta as formas verbais empregadas de maneira adequada. Trata-se de um conto, que envolve, portanto, um enredo, o que exigiu do aluno a alternância entre formas perfectivas e imperfectivas.

(3) Revolta Literária

Um dia cheguei em casa cansado, por causa do colégio. Tomei um banho e fui dormir. Então tive um sonho muito estranho, onde os livros haviam criado vida, ficado rebeldes e se tornado guerrilheiros.

Eles queriam mais atenção por parte das pessoas, pois elas estavam só olhando televisão.

E eles eram bons guerrilheiros, tinham metralhadoras, e eram bem revoltados, no estilo Rambo. Fizeram muitas pessoas reféns, elas eram obrigadas a lê-los.

Quando me acordei, pensei melhor, e não queria que aquilo acontecesse na minha vida. E, então, comecei a ler um deles. Essa experiência nos mostra que a mudança que acreditamos ser necessária no ensino de língua materna não passa simplesmente pela aplicação de novos métodos de ensino ou de projetos que motivam os/as alunos/as, mas, sim, pela concepção de linguagem que sustenta o ensino em nossas escolas. A compreensão do funcionamento da língua e do conjunto de elementos que envolvem a atividade de linguagem alteram as práticas escolares e possibilitam a construção de propostas com maiores chances de alcançar os objetivos do ensino de língua materna. Andrea Tatiana Diesel

Fonte: cprcalat.educa.aragon.es/es.wikipedia.org/pt.scribd.com/celsul.org.br

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