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Claro, estas questões precisam ser recolocadas, até mesmo porque o ‘antigo Israel’, algo que parecíamos conhecer muito bem, é hoje uma incógnita, como denunciou o estudioso britânico Philip R. Davies. Ele concluiu, em seu estudo de 1992, que o ‘antigo Israel’ é um construto erudito, resultante da tomada de uma construção literária, a narrativa bíblica, tornada objeto de investigação histórica. E, como demonstram os estudos sobre o Pentateuco, o Israel bíblico é para nós um problema, não um dado sobre o qual se apoiar sem mais.
Este construto erudito, além de suscitar muitos outros problemas, é contraditório, pois a maioria dos estudiosos, “embora sabendo que a estória de Israel do Gênesis a Juízes não deve ser tratada como história, prossegue, não obstante, com o resto da estória bíblica, de Saul ou Davi em diante, na pressuposição de que, a partir deste ponto, o obviamente literário tornou-se o obviamente histórico”, diz Philip R. Davies na p. 26. E pergunta: “Pode alguém realmente deixar de lado a primeira parte da história literária de Israel, reter a segunda parte e ainda tratá-la como uma entidade histórica?” Para ele uma história de Israel que começa neste ponto deveria ser uma entidade bem diferente do Israel literário, que pressupõe a família patriarcal, a escravidão no Egito, a conquista da terra que lhe é dada por Deus e assim por diante.
Para Philip R. Davies, não podemos identificar automaticamente a população da Palestina na Idade do Ferro (a partir de 1200 a.C.), e de certo modo também a do período persa, com o ‘Israel’ bíblico. “Nós não podemos transferir automaticamente nenhuma das características do ‘Israel’ bíblico para as páginas da história da Palestina (…) Nós temos que extrair nossa definição do povo da Palestina de suas próprias relíquias. Isto significa excluir a literatura bíblica” [sublinhado meu], conclui Philip R. Davies na p. 51.
Para o autor, a literatura bíblica foi composta a partir da época persa, sugerindo Philip R. Davies, mais para o final do livro, que o Estado Asmoneu (ou Macabeu) é que viabilizou, de fato, a transformação do Israel literário em um Israel histórico, por ser este o momento em que os reis-sacerdotes levaram o país o mais próximo possível do ideal presente nas leis bíblicas. A Bíblia, garante o autor na p. 154, como uma criação literária e histórica é um conceito asmoneu.
Considerada mais polêmica ainda do que a de Philip R. Davies é a postura do norte-americano Thomas L. Thompson, cujo programa é fazer uma história do Levante Sul sem contar com os míticos textos bíblicos e considerando todos os outros povos da região, não só Israel, pois este constitui apenas uma parte desta região. Thomas L. Thompson é contra qualquer arqueologia e história bíblicas! Para ele, o pior erro metodológico no uso das fontes é harmonizar a arqueologia com as narrativas bíblicas.
Aliás, o uso do texto bíblico como fonte válida para a escrita da História de Israel, tem sido alvo de muitos debates e grandes controvérsias. E não há como fugir da questão, pelo menos enquanto muitas ‘Histórias de Israel’ continuarem a ser nada mais do que uma paráfrase racionalista da narrativa bíblica.
Em uma das reuniões do Seminário Europeu sobre Metodologia Histórica, por exemplo, debatendo o assunto, alguns dos participantes acabaram classificando qualquer História de Israel como fictícia, enquanto outros defenderam que o texto bíblico usado cuidadosa e criticamente é um elemento válido para um empreendimento deste tipo. Na conclusão do livro onde foram publicados os debates deste encontro há uma boa amostragem do problema do uso das fontes.
Diz o britânico Lester L. Grabbe, coordenador do grupo, que parece haver quatro possíveis atitudes a respeito da questão:
assumir a impossibilidade de se fazer uma ‘História de Israel’.
ignorar o texto bíblico como um todo e escrever uma história fundamentada apenas nos dados arqueológicos e outras evidências primárias: esta é a postura verdadeiramente ‘minimalista’, mas o problema é que sem o texto bíblico muitas interpretações dos dados tornam-se extremamente difíceis.
dar prioridade aos dados primários, mas fazendo uso do texto bíblico como fonte secundária usada com cautela.
aceitar a narrativa bíblica sempre, exceto quando ela se mostra como absolutamente falseada: esta é a postura caracterizada como ‘maximalista’, e ninguém neste grupo a defendeu.
O fato é que as posturas 1 e 4 são inconciliáveis e estão fora das possibilidades de uma ‘História de Israel’ mais crítica: isto porque a 1 rejeita a possibilidade concreta da história e a 4 trata o texto bíblico com peso diferente das outras fontes históricas. Somente o diálogo entre as posições 2 e 3 podem levar a um resultado positivo. Praticamente todos os membros do seminário ficaram nesta posição 3 ou, talvez, entre a 2 e a 3, concluiu Lester L. Grabbe.
Parece-me, neste ponto, que já ficou claro para o leitor a importância do exame das fontes primárias, se quisermos saber algo sobre a monarquia.
Aliás, as fontes sobre a monarquia israelita são de quatro tipos diferentes, podendo ser classificadas, portanto, em quatro níveis: antropologia histórica, fontes primárias, fontes secundárias e fontes terciárias.
Antropologia histórica: considera os dados provenientes de estudos da geografia, do clima, dos assentamentos humanos, da agricultura, da organização social e da economia de uma região e de sua população.
Fontes primárias: fontes escritas provenientes da Palestina, evidência arqueológica da Palestina e fontes escritas fora da Palestina, todas mais ou menos contemporâneas aos eventos que relatam, tais como a Estela de Merneptah, a Inscrição de Tel Dan, a Estela de Mesha, os Óstraca de Samaria, os Selos lemelek de Judá, a Inscrição de Siloé, a Carta Yavneh Yam, o Calendário de Gezer, os Óstraca de Arad, as Cartas de Lakish, os Anais de Salmanasar III, o Obelisco Negro de Salmanasar III, os testemunhos de reis assírios e babilônicos como Adad-nirari III, Tiglat-Pileser III, Sargão II, Senaquerib, Assaradon, Assurbanipal, Nabucodonosor, e do Egito o Faraó Sheshonq…
Fontes Secundárias: a Bíblia Hebraica, especialmente o Pentateuco e a Obra Histórica Deuteronomista, escritos muito tempo depois dos fatos e com objetivos mais teológicos do que históricos.
Fontes Terciárias: livros da Bíblia Hebraica que retomam fontes secundárias, como os livros das Crônicas que retomam a OHDtr.
O alemão Herbert Niehr, em Some Aspects of Working with the Textual Sources [Alguns Aspectos do Trabalho com as Fontes Escritas], por exemplo, ao fazer tal distinção, repassa os problemas metodológicos relativos ao uso de cada uma destas fontes, argumentando que as tentativas para superar as diferenças existentes entre elas devem ser feitas cuidadosamente e concluindo que podemos fazer apenas tentativas de escrever uma História de Israel, sempre sujeita a um processo contínuo de mudança, até mesmo porque quanto mais evidência primária tivermos com o avanço da pesquisa, menor valor devemos atribuir aos textos da Bíblia Hebraica.
Fonte: www.airtonjo.com
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