Os Lusíadas – Luís de Camões

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Luís Vaz de Camões

Canto I

As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando,

E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando,

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram.

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mi um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mi vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloco e corrente,

Por que de vossas águas Febo ordene

Que não tenham enveja às de Hipocrene.

Dai-me üa fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa,

Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

Dai-me igual canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;

Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

E, vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

Vós, ó novo temor da Maura lança,

Maravilha fatal da nossa idade,

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Pera do mundo a Deus dar parte grande;

Vós, tenro e novo ramo florecente

De üa árvore, de Cristo mais amada

Que nenhüa nascida no Ocidente,

Cesárea ou Cristianíssima chamada

(Vede-o no vosso escudo, que presente

Vos amostra a vitória já passada,

Na qual vos deu por armas e deixou

As que Ele pera si na Cruz tomou);

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando dece o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco Oriental e do Gentio

Que inda bebe o licor do santo Rio:

Inclinei por um pouco a majestade

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Quando subindo ireis ao eterno templo;

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

De amor dos pátrios feitos valerosos,

Em versos divulgado numerosos.

Vereis amor da pátria, não movido

De prémio vil, mas alto e quási eterno;

Que não é prémio vil ser conhecido

Por um pregão do ninho meu paterno.

Ouvi: vereis o nome engrandecido

Daqueles de quem sois senhor superno,

E julgareis qual é mais excelente,

Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,

Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas

Musas, de engrandecer-se desejosas:

As verdadeiras vossas são tamanhas

Que excedem as sonhadas, fabulosas,

Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro

E Orlando, inda que fora verdadeiro.

Por estes vos darei um Nuno fero,

Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço,

Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero

A cítara par’eles só cobiço;

Pois polos Doze Pares dar-vos quero

Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço;

Dou-vos também aquele ilustre Gama,

Que para si de Eneias toma a fama.

Pois se a troco de (Carlos, Rei de França,

Ou de César, quereis igual memória,

Vede o primeiro Afonso, cuja lança

Escura faz qualquer estranha glória;

E aquele que a seu Reino a segurança

Deixou, com a grande e próspera vitória;

Outro Joane, invicto cavaleiro;

O quarto e quinto Afonsos e o terceiro.

Nem deixarão meus versos esquecidos

Aqueles que nos Reinos lá da Aurora

Se fizeram por armas tão subidos,

Vossa bandeira sempre vencedora:

Um Pacheco fortíssimo e os temidos

Almeidas, por quem sempre o Tejo chora,

Albuquerque terríbil, Castro forte,

E outros em quem poder não teve a morte.

E, enquanto eu estes canto – e a vós não posso,

Sublime Rei, que não me atrevo a tanto – ,

Tomai as rédeas vós do Reino vosso:

Dareis matéria a nunca ouvido canto.

Comecem a sentir o peso grosso

(Que polo mundo todo faça espanto)

De exércitos e feitos singulares,

De África as terras e do Oriente os mares.

Em vós os olhos tem o Mouro frio,

Em quem vê seu exício afigurado;

Só com vos ver, o bárbaro Gentio

Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;

Tétis todo o cerúleo senhorio

Tem pera vós por dote aparelhado,

Que, afeiçoada ao gesto belo e tento,

Deseja de comprar-vos pera genro.

Em vós se vêm, da Olímpica morada,

Dos dous avós as almas cá famosas;

üa, na paz angélica dourada,

Outra, pelas batalhas sanguinosas.

Em vós esperam ver-se renovada

Sua memória e obras valerosas;

E lá vos têm lugar, no fim da idade,

No templo da suprema Eternidade.

Mas, enquanto este tempo passa lento

De regerdes os povos, que o desejam,

Dai vós favor ao novo atrevimento,

Pera que estes meus versos vossos sejam,

E vereis ir cortando o salso argento

Os vossos Argonautas, por que vejam

Que são vistos de vós no mar irado,

E costumai-vos já a ser invocado.

Já no largo Oceano navegavam,

As inquietas ondas apartando;

Os ventos brandamente respiravam,

Das naus as velas côncavas inchando;

Da branca escuma os mares se mostravam

Cobertos, onde as proas vão cortando

As marítimas águas consagradas,

Que do gado de Próteu são cortadas,

Quando os Deuses no Olimpo luminoso,

Onde o governo está da humana gente,

Se ajuntam em consílio glorioso,

Sobre as cousas futuras do Oriente.

Pisando o cristalino Céu fermoso,

Vêm pela Via Láctea juntamente,

Convocados, da parte de Tonante,

Pelo neto gentil do velho Atlante.

Deixam dos sete Céus o regimento,

Que do poder mais alto lhe foi dado,

Alto poder, que só co pensamento

Governa o Céu, a Terra e o Mar irado.

Ali se acharam juntos num momento

Os que habitam o Arcturo congelado

E os que o Austro têm e as partes onde

A Aurora nasce e o claro Sol se esconde.

Estava o Padre ali, sublime e dino,

Que vibra os feros raios de Vulcano,

Num assento de estrelas cristalino,

Com gesto alto, severo e soberano;

Do rosto respirava um ar divino,

Que divino tornara um corpo humano:

Com üa coroa e ceptro rutilante,

De outra pedra mais clara que diamante.

Em luzentes assentos, marchetados

De ouro e de perlas, mais abaixo estavam

Os outros Deuses, todos assentados

Como a Razão e a Ordem concertavam

(Precedem os antigos, mais honrados,

Mais abaixo os menores se assentavam);

Quando Júpiter alto, assi dizendo,

Cum tom de voz começa grave e horrendo:

– «Eternos moradores do luzente,

Estelífero Pólo e claro Assento:

Se do grande valor da forte gente

De Luso não perdeis o pensamento,

Deveis de ter sabido claramente

Como é dos Fados grandes certo intento

Que por ela se esqueçam os humanos

De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.

«Já lhe foi (bem o vistes) concedido,

Cum poder tão singelo e ao pequeno,

Tomar ao Mouro forte e guarnecido

Toda a terra que rega o Tejo ameno.

Pois contra o Castelhano ao temido

Sempre alcançou favor do Céu sereno:

Assi que sempre, enfim, com fama e glória.

Teve os troféus pendentes da vitória.

«Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,

Que co a gente de Rómulo alcançaram,

Quando com Viriato, na inimiga

Guerra Romana, tanto se afamaram;

Também deixo a memória que os obriga

A grande nome, quando alevantaram

Um por seu capitão, que, peregrino,

Fingiu na cerva espírito divino.

«Agora vedes bem que, cometendo

O duvidoso mar num lenho leve,

Por vias nunca usadas, não temendo

de Áfrico e Noto a força, a mais s’atreve:

Que, havendo tanto já que as partes vendo

Onde o dia é comprido e onde breve,

Inclinam seu propósito e perfia

A ver os berços onde nasce o dia.

«Prometido lhe está do Fado eterno,

Cuja alta lei não pode ser quebrada,

Que tenham longos tempos o governo

Do mar que vê do Sol a roxa entrada.

Nas águas têm passado o duro Inverno;

A gente vem perdida e trabalhada;

Já parece bem feito que lhe seja

Mostrada a nova terra que deseja.

«E porque, como vistes, têm passados

Na viagem tão ásperos perigos,

Tantos climas e céus exprimentados,

Tanto furor de ventos inimigos,

Que sejam, determino, agasalhados

Nesta costa Africana como amigos;

E, tendo guarnecida a lassa frota,

Tornarão a seguir sua longa rota.

Estas palavras Júpiter dizia,

Quando os Deuses, por ordem respondendo,

Na sentença um do outro diferia,

Razões diversas dando e recebendo.

O padre Baco ali não consentia

No que Júpiter disse, conhecendo

Que esquecerão seus feitos no Oriente

Se lá passar a Lusitana gente.

Ouvido tinha aos Fados que viria

üa gente fortíssima de Espanha

Pelo mar alto, a qual sujeitaria

Da Índia tudo quanto Dóris banha,

E com novas vitórias venceria

A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.

Altamente lhe dói perder a glória

De que Nisa celebra inda a memória.

Vê que já teve o Indo sojugado

E nunca lhe tirou Fortuna ou caso

Por vencedor da Índia ser cantado

De quantos bebem a água de Parnaso.

Teme agora que seja sepultado

Seu tão célebre nome em negro vaso

D’água do esquecimento, se lá chegam

Os fortes Portugueses que navegam.

Sustentava contra ele Vénus bela,

Afeiçoada à gente Lusitana

Por quantas qualidades via nela

Da antiga, tão amada, sua Romana;

Nos fortes corações, na grande estrela

Que mostraram na terra Tingitana,

E na língua, na qual quando imagina,

Com pouca corrupção crê que é a
Latina

Estas causas moviam Citereia

E mais, porque das Parcas claro entende

Que há-de ser celebrada a clara Deia

Onde a gente belígera se estende.

Assi que, um, pela infâmia que arreceia,

E o outro, pelas honras que pretende,

Debatem, e na perfia permanecem;

A qualquer seus amigos favorecem.

Qual Austro fero ou Bóreas na espessura

De silvestre arvoredo abastecida,

Rompendo os ramos vão da mata escura

Com ímpeto e braveza desmedida,

Brama toda montanha, o som murmura,

Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:

Tal andava o tumulto, levantado

Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.

Mas Marte, que da Deusa sustentava

Entre todos as partes em porfia,

Ou porque o amor antigo o obrigava,

Ou porque a gente forte o merecia,

De antre os Deuses em pé se levantava:

Merencório no gesto parecia;

O forte escudo, ao colo pendurado,

Deitando pera trás, medonho e irado;

A viseira do elmo de diamante

Alevantando um pouco, mui seguro,

Por dar seu parecer se pôs diante

De Júpiter, armado, forte e duro;

E dando üa pancada penetrante

Co conto do bastão no sólio puro,

O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,

Um pouco a luz perdeu, como enfiado;

E disse assi:- «Ó Padre, a cujo império

Tudo aquilo obedece que criaste:

Se esta gente que busca outro Hemisfério.

Cuja valia e obras tanto amaste,

Não queres que padeçam vitupério,

Como há já tanto tempo que ordenaste,

Não ouças mais, pois és juiz direito,

Razões de quem parece que é suspeito.

«Que, se aqui a razão se não mostrasse

Vencida do temor demasiado,

Bem fora que aqui Baco os sustentasse,

Pois que de Luso vêm, seu tão privado;

Mas esta tenção sua agora passe,

Porque enfim vem de estâmago danado;

Que nunca tirará alheia enveja

O bem que outrem merece e o Céu deseja.

E tu, Padre de grande fortaleza,

Da determinação que tens tomada

Não tornes por detrás, pois é fraqueza

Desistir-se da cousa começada.

Mercúrio, pois excede em ligeireza

Ao vento leve e à seta bem talhada,

Lhe vá mostrar a terra onde se informe

Da Índia, e onde a gente se reforme.»

Como isto disse, o Padre poderoso,

A cabeça inclinando, consentiu

No que disse Mavorte valeroso

E néctar sobre todos esparziu.

Pelo caminho Lácteo glorioso

Logo cada um dos Deuses se partiu,

Fazendo seus reais acatamentos,

Pera os determinados apousentos.

Enquanto isto se passa na fermosa

Casa etérea do Olimpo omnipotente,

Cortava o mar a gente belicosa

Já lá da banda do Austro e do Oriente,

Entre a costa Etiópica e a famosa

Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente

Queimava então os Deuses que Tifeu

Co temor grande em pexes converteu.

Tão brandamente os ventos os levavam

Como quem o Céu tinha por amigo;

Sereno o ar e os tempos se mostravam,

Sem nuvens, sem receio de perigo.

O promontório Prasso já passavam

Na costa de Etiópia, nome antigo,

Quando o mar, descobrindo, lhe mostrava

Novas ilhas, que em torno cerca e lava.

Vasco da Gama, o forte Capitão,

Que a tamanhas empresas se oferece,

De soberbo e de altivo coração,

A quem Fortuna sempre favorece,

Pera se aqui deter não vê razão,

Que inabitada a terra lhe parece.

Por diante passar determinava,

Mas não lhe sucedeu como cuidava.

Eis aparecem logo em companhia

Uns pequenos batéis, que vêm daquela

Que mais chegada à terra parecia,

Cortando o longo mar com larga vela.

A gente se alvoroça e, de alegria,

Não sabe mais que olhar a causa dela.

– «Que gente será esta?» (em si diziam)

«Que costumes, que Lei, que Rei teriam?»

As embarcações eram na maneira

Mui veloces, estreitas e compridas;

Ás velas com que vêm eram de esteira,

Düas folhas de palma, bem tecidas;

A gente da cor era verdadeira

Que Fáëton, nas terras acendidas,

Ao mundo deu, de ousado e não prudente

(O Pado o sabe e Lampetusa o sente).

De panos de algodão vinham vestidos,

De várias cores, brancos e listrados;

Uns trazem derredor de si cingidos,

Outros em modo airoso sobraçados;

Das cintas pera cima vêm despidos;

Por armas têm adagas e tarçados;

Com toucas na cabeça; e, navegando,

Anafis sonorosos vão tocando.

Cos panos e cos braços acenavam

Às gentes Lusitanas, que esperassem;

Mas já as proas ligeiras se inclinavam,

Pera que junto às Ilhas amainassem.

A gente e marinheiros trabalhavam

Como se aqui os trabalhos s’acabassem:

Tomam velas, amaina-se a verga alta,

Da âncora o mar ferido em cima salta.

Não eram ancorados, quando a gente

Estranha polas cordas já subia.

No gesto ledos vêm, e humanamente

O Capitão sublime os recebia.

As mesas manda pôr em continente;

Do licor que Lieu prantado havia

Enchem vasos de vidro; e do que deitam

Os de Fáëton queimados nada enjeitam.

Comendo alegremente, perguntavam,

Pela Arábica língua, donde vinham,

Quem eram, de que terra, que buscavam,

Ou que partes do mar corrido tinham?

Os fortes Lusitanos lhe tornavam

As discretas repostas que convinham:

– «Os Portugueses somos do Ocidente,

Imos buscando as terras do Oriente.

«Do mar temos corrido e navegado

Toda a parte do Antártico e Calisto,

Toda a costa Africana rodeado;

Diversos céus e terras temos visto;

Dum Rei potente somos, tão amado,

Tão querido de todos e benquisto,

Que não no largo mar, com leda fronte,

Mas no lago entraremos de Aqueronte.

«E, por mandado seu, buscando andamos

A terra Oriental que o Indo rega;

Por ele o mar remoto navegamos,

Que só dos feios focas se navega.

Mas já razão parece que saibamos

(Se entre vós a verdade não se nega),

Quem sois, que terra é esta que habitais,

Ou se tendes da Índia alguns sinais?»

– «Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)

Estrangeiros na terra, Lei e nação;

Que os próprios são aqueles que criou

A Natura, sem Lei e sem Razão.

Nós temos a Lei certa que ensinou

O claro descendente de Abraão,

Que agora tem do mundo o senhorio;

A mãe Hebreia teve e o pai, Gentio.

«Esta Ilha pequena, que habitamos,

É em toda esta terra certa escala

De todos os que as ondas navegamos,

De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;

E, por ser necessária, procuramos,

Como próprios da terra, de habitá-la;

E por que tudo enfim vos notifique,

Chama-se a pequena Ilha – Moçambique.

«E já que de tão longe navegais,

Buscando o Indo Idaspe e terra ardente,

Piloto aqui tereis, por quem sejais

Guiados pelas ondas sàbiamente.

Também será bem feito que tenhais

Da terra algum refresco, e que o Regente

Que esta terra governa, que vos veja

E do mais necessário vos proveja.»

Isto dizendo, o Mouro se tornou

A seus batéis com toda a companhia;

Do Capitão e gente se apartou

Com mostras de devida cortesia.

Nisto Febo nas águas encerrou

Co carro de cristal, o claro dia,

Dando cargo à Irmã que alumiasse

O largo mundo, enquanto repousasse.

A noite se passou na lassa frota

Com estranha alegria e não cuidada,

Por acharem da terra tão remota

Nova de tanto tempo desejada.

Qualquer então consigo cuida e nota

Na gente e na maneira desusada,

E como os que na errada Seita creram,

Tanto por todo o mundo se estenderam.

Da Lüa os claros raios rutilavam

Polas argênteas ondas Neptuninas;

As Estrelas os Céus acompanhavam,

Qual campo revestido de boninas;

Os furiosos ventos repousavam

Polas covas escuras peregrinas;

Porém da armada a gente vigiava,

Como por longo tempo costumava.

Mas, assi como a Aurora marchetada

Os fermosos cabelos espalhou

No Céu sereno, abrindo a roxa entrada

Ao claro Hiperiónio, que acordou,

Começa a embandeirar-se toda a armada

E de toldos alegres se adornou,

Por receber com festas e alegria

O Regedor das Ilhas, que partia.

Partia, alegremente navegando,

A ver as naus ligeiras Lusitanas,

Com refresco da terra, em si cuidando

Que são aquelas gentes inumanas

Que, os apousentos Cáspios habitando,

A conquistar as terras Asianas

Vieram e, por ordem do Destino,

O Império tomaram a Costantino.

Recebe o Capitão alegremente

O Mouro e toda sua companhia;

Dá-lhe de ricas peças um presente,

Que só pera este efeito já trazia;

Dá-lhe conserva doce e dá-lhe o ardente,

Não usado licor, que dá alegria.

Tudo o Mouro contente bem recebe,

E muito mais contente come e bebe

Está a gente marítima de Luso

Subida pela enxárcia, de admirada,

Notando o estrangeiro modo e uso

E a linguagem tão bárbara e enleada.

Também o Mouro astuto está confuso,

Olhando a cor, o trajo e a forte armada;

E, perguntando tudo, lhe dizia

Se porventura vinham de Turquia.

E mais lhe diz também que ver deseja

Os livros de sua Lei, preceito ou fé,

Pera ver se conforme à sua seja,

Ou se são dos de Cristo, como crê;

E por que tudo note e tudo veja,

Ao Capitão pedia que lhe dê

Mostra das fortes armas de que usavam

Quando cos inimigos pelejavam.

Responde o valeroso Capitão,

Por um que a língua escura bem sabia:

-«Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação

De mi, da Lei, das armas que trazia.

Nem sou da terra, nem da geração

Das gentes enojosas de Turquia,

Mas sou da forte Europa belicosa;

Busco as terras da Índia tão famosa.

«A Lei tenho d’Aquele a cujo império

Obedece o visíbil e invisíbil,

Aquele que criou todo o Hemisfério,

Tudo o que sente e todo o insensíbil;

Que padeceu desonra e vitupério,

Sofrendo morte injusta e insofríbil,

E que do Céu à Terra enfim deceu,

Por subir os mortais da Terra ao Céu.

«Deste Deus-Homem, alto e infinito,

Os livros que tu pedes não trazia,

Que bem posso escusar trazer escrito

Em papel o que na alma andar devia.

Se as armas queres ver, como tens dito,

Cumprido esse desejo te seria;

Como amigo as verás, porque eu me obrigo

Que nunca as queiras ver como inimigos».

Isto dizendo, manda os diligentes

Ministros amostrar as armaduras:

Vêm arneses e peitos reluzentes,

Malhas finas e lâminas seguras,

Escudos de pinturas diferentes,

Pelouros, espingardas de aço puras,

Arcos e sagitíferas aljavas,

Partazanas agudas, chuças bravas.

As bombas vêm de fogo, e juntamente

As panelas sulfúreas, tão danosas;

Porém aos de Vulcano não consente

Que dêm fogo às bombardas temerosas;

Porque o generoso ânimo e valente,

Entre gentes tão poucas e medrosas,

Não mostra quanto pode; e com razão,

Que é fraqueza entre ovelhas ser lião.

Porém disto que o Mouro aqui notou,

E de tudo o que viu com olho atento,

Um ódio certo na alma lhe ficou,

üa vontade má de pensamento;

Nas mostras e no gesto o não mostrou,

Mas, com risonho e ledo fingimento,

Tratá-los brandamente determina,

Até que mostrar possa o que imagina.

Pilotos lhe pedia o Capitão,

Por quem pudesse à Índia ser levado;

Diz-lhe que o largo prémio levarão

Do trabalho que nisso for tomado.

Promete-lhos o Mouro, com tenção

De peito venenoso e tão danado

Que a morte, se pudesse, neste dia,

Em lugar de pilotos lhe daria.

Tamanho o ódio foi e a má vontade

Que aos estrangeiros súpito tomou,

Sabendo ser sequaces da Verdade

Que o filho de David nos ensinou!

Ó segredos daquela Eternidade

A quem juízo algum não alcançou:

Que nunca falte um pérfido inimigo

Àqueles de quem foste tanto amigo!

Partiu-se nisto, enfim, co a companhia,

Das naus o falso Mouro despedido,

Com enganosa e grande cortesia,

Com gesto ledo a todos e fingido.

Cortaram os batéis a curta via

Das águas de Neptuno; e, recebido

Na terra do obseqüente ajuntamento,

Se foi o Mouro ao cógnito apousento.

Do claro Assento etéreo, o grão Tebano,

Que da paternal coxa foi nascido,

Olhando o ajuntamento Lusitano

Ao Mouro ser molesto e avorrecido,

No pensamento cuida um falso engano,

Com que seja de todo destruído;

E, enquanto isto só na alma imaginava,

Consigo estas palavras praticava:

-«Está do Fado já determinado

Que tamanhas vitórias, tão famosas,

Hajam os Portugueses alcançado

Das Indianas gentes belicosas;

E eu só, filho do Padre sublimado,

Com tantas qualidades generosas,

Hei-de sofrer que o Fado favoreça

Outrem, por quem meu nome se escureça?

«Já quiseram os Deuses que tivesse

O filho de Filipo nesta parte

Tanto poder que tudo sometesse

Debaixo do seu jugo o fero Marte;

Mas há-se de sofrer que o Fado desse

A tão poucos tamanho esforço e arte,

Qu’eu, co grão Macedónio e Romano,

Dêmos lugar ao nome Lusitano?

«Não será assi, porque, antes que chegado

Seja este Capitão, astutamente

Lhe será tanto engano fabricado

Que nunca veja as partes do Oriente.

Eu decerei à Terra e o indignado

Peito revolverei da Maura gente;

Porque sempre por via irá direita

Quem do oportuno tempo se aproveita.»

Isto dizendo, irado e quási insano,

Sobre a terra Africana descendeu,

Onde, vestindo a forma e gesto humano,

Pera o Prasso sabido se moveu.

E, por milhor tecer o astuto engano,

No gesto natural se converteu

Dum Mouro, em Moçambique conhecido,

Velho, sábio, e co Xeque mui valido.

E, entrando assi a falar-lhe, a tempo e horas,

A sua falsidade acomodadas,

Lhe diz como eram gentes roubadoras

Estas que ora de novo são chegadas;

Que das nações na costa moradoras,

Correndo a fama veio que roubadas

Foram por estes homens que passavam,

Que com pactos de paz sempre ancoravam.

– «E sabe mais (lhe diz), como entendido

Tenho destes Cristãos sanguinolentos,

Que quási todo o mar têm destruído

Com roubos, com incêndios violentos;

E trazem já de longe engano urdido

Contra nós; e que todos seus intentos

São pera nos matarem e roubarem,

E mulheres e filhos cativarem.

«E também sei que tem determinado

De vir por água a terra, muito cedo,

O Capitão, dos seus acompanhado,

Que da tenção danada nasce o medo

Tu deves de ir também cos teus armado

Esperá-lo em cilada, oculto e quedo;

Porque, saindo a gente descuidada,

Caïrão fàcilmente na cilada.

«E se inda não ficarem deste jeito

Destruídos ou mortos totalmente,

Eu tenho imaginada no conceito

Outra manha e ardil que te contente:

Manda-lhe dar piloto que de jeito

Seja astuto no engano, e tão prudente

Que os leve aonde sejam destruídos,

Desbaratados, mortos ou perdidos.»

Tanto que estas palavras acabou

O Mouro, nos tais casos sábio e velho,

Os braços pelo colo lhe lançou,

Agradecendo muito o tal conselho;

E logo nesse instante concertou

Pera a guerra o belígero aparelho,

Pera que ao Português se lhe tornasse

Em roxo sangue a água que buscasse.

E busca mais, pera o cuidado engano,

Mouro que por piloto à nau lhe mande,

Sagaz, astuto e sábio em todo o dano,

De quem fiar se possa um feito grande.

Diz-lhe que, acompanhando o Lusitano,

Por tais costas e mares co ele ande,

Que, se daqui escapar, que lá diante

Vá cair onde nunca se alevante.

Já o raio Apolíneo visitava

Os Montes Nabateios acendido,

Quando Gama cos seus determinava

De vir por água a terra apercebido.

A gente nos batéis se concertava

Como se fosse o engano já sabido;

Mas pôde suspeitar-se facilmente,

Que o coração pres[s]ago nunca mente.

E mais também mandado tinha a terra,

De antes, pelo piloto necessário,

E foi-lhe respondido em som de guerra,

Caso do que cuidava mui contrário.

Por isto, e porque sabe quanto erra

Quem se crê de seu pérfido adversário,

Apercebido vai como podia

Em três batéis somente que trazia.

Mas os Mouros, que andavam pela praia

Por lhe defender a água desejada,

Um de escudo embraçado e de azagaia,

Outro de arco encurvado e seta ervada,

Esperam que a guerreira gente saia,

Outros muitos já postos em cilada;

E, por que o caso leve se lhe faça,

Põem uns poucos diante por negaça.

Andam pela ribeira alva, arenosa,

Os belicosos Mouros acenando

Com a adarga e co a hástea perigosa,

Os fortes Portugueses incitando

Não sofre muito a gente generosa

Andar-lhe os Cães os dentes amostrando;

Qualquer em terra salta, tão ligeiro,

Que nenhum dizer pode que é primeiro:

Qual no corro sanguino o ledo amante,

Vendo a fermosa dama desejada,

O touro busca e, pondo-se diante,

Salta, corre, sibila, acena e brada,

Mas o animal atroce, nesse instante,

Com a fronte cornígera inclinada,

Bramando, duro corre e os olhos cerra,

Derriba, fere e mata e põe por terra.

Eis nos batéis o fogo se levanta

Na furiosa e dura artelharia;

A plúmbea péla mata, o brado espanta;

Ferido, o ar retumba e assovia.

O coração dos Mouros se quebranta,

O temor grande o sangue lhe resfria.

Já foge o escondido, de medroso,

E morre o descoberto aventuroso.

Não se contenta a gente Portuguesa,

Mas, seguindo a vitória, estrui e mata;

A povoação sem muro e sem defesa

Esbombardeia, acende e desbarata.

Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa,

Que bem cuidou comprá-la mais barata;

Já blasfema da guerra, e maldizia,

O velho inerte e a mãe que o filho cria.

Fugindo, a seta o Mouro vai tirando

Sem força, de covarde e de apressado,

Apedra, o pau e o canto arremessando;

Dá-lhe armas o furor desatinado.

Já a Ilha, e todo o mais, desemparando,

À terra firme foge amedrontado;

Passa e corta do mar o estreito braço

Que a Ilha em torno cerca em pouco espaço.

Uns vão nas almadias carregadas,

Um corta o mar a nado, diligente;

Quem se afoga nas ondas encurvadas,

Quem bebe o mar e o deita juntamente.

Arrombam as miúdas bombardadas

Os pangaios sutis da bruta gente.

Destarte o Português, enfim, castiga

A vil malícia, pérfida, inimiga.

Tornam vitoriosos pera a armada,

Co despojo da guerra e rica presa,

E vão a seu prazer fazer aguada,

Sem achar resistência nem defesa.

Ficava a Maura gente magoada,

No ódio antigo mais que nunca acesa;

E, vendo sem vingança tanto dano,

Sòmente estriba no segundo engano.

Pazes cometer manda, arrependido,

O Regedor daquela inica terra,

Sem ser dos Lusitanos entendido

Que em figura de paz lhe manda guerra;

Porque o piloto falso prometido,

Que toda a má tenção no peito encerra,

Pera os guiar à morte lhe mandava,

Como em sinal das pazes que tratava.

O Capitão, que já lhe então convinha

Tornar a seu caminho acostumado,

Que tempo concertado e ventos tinha

Pera ir buscar o Indo desejado,

Recebendo o piloto que lhe vinha,

Foi dele alegremente agasalhado,

E respondendo ao mensageiro, a tento,

As velas manda dar ao largo vento.

Destarte despedida, a forte armada

As ondas de Anfítrite dividia,

Das filhas de Nereu acompanhada,

Fiel, alegre e doce companhia.

O Capitão, que não caía em nada

Do enganoso ardil que o Mouro urdia,

Dele mui largamente se informava

Da Índia toda e costas que passava.

Mas o Mouro, instruído nos enganos

Que o malévolo Baco lhe ensinara,

De morte ou cativeiro novos danos,

Antes que à Índia chegue, lhe prepara.

Dando razão dos portos Indianos,

Também tudo o que pede lhe declara,

Que, havendo por verdade o que dizia,

De nada a forte gente se temia.

E diz-lhe mais, co falso pensamento

Com que Sínon os Frígios enganou,

Que perto está üa Ilha, cujo assento

Povo antigo Cristão sempre habitou.

O Capitão, que a tudo estava atento,

Tanto co estas novas se alegrou

Que com dádivas grandes lhe rogava

Que o leve à terra onde esta gente estava.

O mesmo o falso Mouro determina

Que o seguro Cristão lhe manda e pede;

Que a Ilha é possuída da malina

Gente que segue o torpe Mahamede.

Aqui o engano e morte lhe imagina,

Porque em poder e forças muito excede

À Moçambique esta Ilha, que se chama

Quíloa, mui conhecida pola fama.

Pera lá se inclinava a leda frota;

Mas a Deusa em Citere celebrada,

Vendo como deixava a certa rota

Por ir buscar a morte não cuidada,

Não consente que em terra tão remota

Se perca a gente dela tanto amada,

E com ventos contrairos a desvia

Donde o piloto falso a leva e guia.

Mas o malvado Mouro, não podendo

Tal determinação levar avante,

Outra maldade inica cometendo,

Ainda em seu propósito constante,

Lhe diz que, pois as águas, discorrendo,

Os levaram por força por diante,

Que outra Ilha tem perto, cuja gente

Eram Cristãos com Mouros juntamente.

Também nestas palavras lhe mentia,

Como por regimento, enfim, levava;

Que aqui gente de Cristo não havia,

Mas a que a Mahamede celebrava.

O Capitão, que em tudo o Mouro cria,

Virando as velas, a Ilha demandava;

Mas, não querendo a Deusa guardadora,

Não entra pela barra, e surge fora.

Estava a Ilha à terra tão chegada

Que um estreito pequeno a dividia;

üa cidade nela situada,

Que na fronte do mar aparecia,

De nobres edifícios fabricada,

Como por fora, ao longe, descobria,

Regida por um Rei de antiga idade:

Mombaça é o nome da Ilha e da cidade.

E sendo a ela o Capitão chegado,

Estranhamente ledo, porque espera

De poder ver o povo baptizado,

Como o falso piloto lhe dissera,

Eis vêm batéis da terra com recado

Do Rei, que já sabia a gente que era;

Que Baco muito de antes o avisara,

Na forma doutro Mouro, que tomara.

O recado que trazem é de amigos,

Mas debaxo o veneno vem coberto,

Que os pensamentos eram de inimigos,

Segundo foi o engano descoberto.

Ó grandes e gravíssimos perigos,

Ó caminho de vida nunca certo,

Que aonde a gente põe sua esperança

Tenha a vida tão pouca segurança!

No mar tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno?

Canto II

Já neste tempo o lúcido Planeta

Que as horas vai do dia distinguindo,

Chegava à desejada e lenta meta,

A luz celeste às gentes encobrindo;

E da casa marítima secreta he estava o Deus

Nocturno a porta abrindo,

Quando as infidas gentes se chegaram

Às naus, que pouco havia que ancoraram.

Dantre eles um, que traz encomendado

O mortífero engano, assi dizia:

«Capitão valeroso, que cortado

Tens de Neptuno o reino e salsa via,

O Rei que manda esta Ilha, alvoraçado

Da vinda tua, tem tanta alegria

Que não deseja mais que agasalhar-te,

Ver-te e do necessário reformar-te.

«E porque está em extremo desejoso

De te ver, como cousa nomeada,

Te roga que, de nada receoso,

Entres a barra, tu com toda armada;

E porque do caminho trabalhoso

Trarás a gente débil e cansada,

Diz que na terra podes reformá-la,

Que a natureza obriga a desejá-la.

«E se buscando vás mercadoria

Que produze o aurífero levante,

Canela, cravo, ardente especiaria

Ou droga salutífera e prestante;

Ou se queres luzente pedraria,

O rubi fino, o rígido diamante,

Daqui levarás tudo tão sobejo

Com que faças o fim a teu desejo.»

Ao mensageiro o Capitão responde,

As palavras do Rei agradecendo,

E diz que, porque o Sol no mar se esconde,

Não entra pera dentro, obedecendo;

Porém que, como a luz mostrar por onde

Vá sem perigo a frota, não temendo,

Cumprirá sem receio seu mandado,

Que a mais por tal senhor está obrigado.

Pergunta-lhe despois se estão na terra

Cristãos, como o piloto lhe dizia;

O mensageiro astuto, que não erra,

Lhe diz que a mais da gente em Cristo cria.

Desta sorte do peito lhe desterra

Toda a suspeita e cauta fantasia;

Por onde o Capitão seguramente

Se fia da infiel e falsa gente.

E de alguns que trazia, condenados

Por culpas e por feitos vergonhosos,

Por que pudessem ser aventurados

Em casos desta sorte duvidosos,

Manda dous mais sagazes, ensaiados,

Por que notem dos Mouros enganosos

A cidade e poder, e por que vejam

Os Cristãos, que só tanto ver desejam.

E por estes ao Rei presentes manda,

Por que a boa vontade que mostrava

Tenha firme, segura, limpa e branda,

A qual bem ao contrário em tudo estava.

Já a companhia pérfida e nefanda

Das naus se despedia e o mar cortava:

Foram com gestos ledos e fingidos

Os dous da frota em terra recebidos.

E despois que ao Rei apresentaram

Co recado os presentes que traziam,

A cidade correram, e notaram

Muito menos daquilo que queriam;

Que os Mouros cautelosos se guardaram

De lhe mostrarem tudo o que pediam;

Que onde reina a malícia, está o receio

Que a faz imaginar no peito alheio.

Mas aquele que sempre a mocidade

Tem no rosto perpétua, e foi nascido

De duas mães, que urdia a falsidade

Por ver o navegante destruído,

Estava nüa casa da cidade,

Com rosto humano e hábito fingido,

Mostrando-se Cristão, e fabricava

Um altar sumptuoso que adorava.

Ali tinha em retrato afigurada

Do alto e Santo Espírito a pintura,

A cândida Pombinha, debuxada

Sobre a única Fénix, virgem pura;

A companhia santa está pintada,

Dos doze, tão torvados na figura

Como os que, só das línguas que caíram

De fogo, várias línguas referiram.

Aqui os dous companheiros, conduzidos

Onde com este engano Baco estava,

Põem em terra os giolhos, e os sentidos

Naquele Deus que o Mundo governava.

Os cheiros excelentes, produzidos

Na Pancaia odorífera, queimava

O Tioneu, e assi por derradeiro

O falso Deus adora o verdadeiro.

Aqui foram de noite agasalhados,

Com todo o bom e honesto tratamento

Os dous Cristãos, não vendo que enganados

Os tinha o falso e santo fingimento

Mas, assi como os raios espalhados

Do Sol foram no mundo, e num momento

Apareceu no rúbido Horizonte

Na moça de Titão a roxa fronte,

Tornam da terra os Mouros co recado

Do Rei pera que entrassem, e consigo

Os dous que o Capitão tinha mandado,

A quem se o Rei mostrou sincero amigo;

E sendo o Português certificado

De não haver receio de perigo

E que gente de Cristo em terra havia,

Dentro no salso rio entrar queria.

Dizem-lhe os que mandou que em terra viram

Sacras aras e sacerdote santo;

Que ali se agasalharam e dormiram

Enquanto a luz cobriu o escuro manto;

E que no Rei e gentes não sentiram

Senão contentamento e gosto tanto

Que não podia certo haver suspeita

Nüa mostra tão clara e tão perfeita.

Co isto o nobre Gama recebia

Alegremente os Mouros que subiam

Que levemente um ânimo se fia

De mostras que tão certas pareciam.

A nau da gente pérfida se enchia,

Deixando a bordo os barcos que traziam.

Alegres vinham todos porque crêm

Que a presa desejada certa têm.

Na terra cautamente aparelhavam

Armas e munições, que, como vissem

Que no rio os navios ancoravam,

Neles ousadamente se subissem;

E nesta treïção determinavam

Que os de Luso de todo destruíssem,

E que, incautos, pagassem deste jeito

O mal que em Moçambique tinham feito.

As âncoras tenaces vão levando,

Com a náutica grita costumada;

Da proa as velas sós ao vento dando,

Inclinam pera a barra abalizada.

Mas a linda Ericina, que guardando

Andava sempre a gente assinalada,

Vendo a cilada grande e tão secreta,

Voa do Céu ao mar como üa seta.

Convoca as alvas filhas de Nereu,

Com toda a mais cerúlea companhia,

Que, porque no salgado mar nasceu,

Das águas o poder lhe obedecia;

E, propondo-lhe a causa a que deceu,

Com todos juntamente se partia

Pera estorvar que a armada não chegasse

Aonde pera sempre se acabasse.

Já na água erguendo vão, com grande pressa,

Com as argênteas caudas branca escuma;

Cloto co peito corta e atravessa

Com mais furor o mar do que costuma;

Salta Nise, Nerine se arremessa

Por cima da água crespa em força suma;

Abrem caminho as ondas encurvadas,

De temor das Nereidas apressadas.

Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,

Vai a linda Dione furiosa;

Não sente quem a leva o doce peso,

De soberbo com carga tão fermosa.

Já chegam perto donde o vento teso

Enche as velas da frota belicosa;

Repartem-se e rodeiam nesse instante

As naus ligeiras, que iam por diante.

Põe-se a Deusa com outras em direito

Da proa capitaina, e ali fechando

O caminho da barra, estão de jeito

Que em vão assopra o vento, a vela inchando:

Põem no madeiro duro o brando peito

Pera detrás a forte nau forçando;

Outras em derredor levando-a estavam

E da barra inimiga a desviavam.

Quais pera a cova as próvidas formigas,

Levando o peso grande acomodado

As forças exercitam, de inimigas

Do inimigo Inverno congelado;

Ali são seus trabalhos e fadigas,

Ali mostram vigor nunca esperado:

Tais andavam as Ninfas estorvando

À gente Portuguesa o fim nefando.

Torna pera detrás a nau, forçada,

Apesar dos que leva, que, gritando,

Mareiam velas; ferve a gente irada,

O leme a um bordo e a outro atravessando;

O mestre astuto em vão da popa brada,

Vendo como diante ameaçando

Os estava um marítimo penedo,

Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.

A celeuma medonha se alevanta

No rudo marinheiro que trabalha;

O grande estrondo a Maura gente espanta,

Como se vissem hórrida batalha;

Não sabem a razão de fúria tanta,

Não sabem nesta pressa quem lhe valha:

Cuidam que seus enganos são sabidos

E que hão-de ser por isso aqui punidos.

Ei-los subitamente se lançavam

A seus batéis veloces que traziam;

Outros em cima o mar alevantavam

Saltando n’água, a nado se acolhiam;

De um bordo e doutro súbito saltavam,

Que o medo os compelia do que viam;

Que antes querem ao mar aventurar-se

Que nas mãos inimigas entregar-se.

Assi como em selvática alagoa

As rãs, no tempo antigo Lícia gente,

Se sentem porventura vir pessoa,

Estando fora da água incautamente,

Daqui e dali saltando (o charco soa),

Por fugir do perigo que se sente,

E, acolhendo-se ao couto que conhecem,

Sós as cabeças na água lhe aparecem:

Assi fogem os Mouros; e o piloto,

Que ao perigo grande as naus guiara,

Crendo que seu engano estava noto,

Também foge, saltando na água amara

Mas, por não darem no penedo imoto,

Onde percam a vida doce e cara,

A âncora solta logo a capitaina,

Qualquer das outras junto dela amaina.

Vendo o Gama, atentado, a estranheza

Dos Mouros, não cuidada, e juntamente

O piloto fugir-lhe com presteza,

Entende o que ordenava a bruta gente,

E vendo, sem contraste e sem braveza

Dos ventos ou das águas sem corrente.

Que a nau passar avante não podia,

Havendo-o por milagre, assi dizia:

«Ó caso grande, estranho e não cuidado!

Ó milagre claríssimo e evidente,

Ó descoberto engano inopinado,

Ó pérfida, inimiga e falsa gente!

Quem poderá do mal aparelhado

Livrar-se sem perigo, sàbiamente,

Se lá de cima a Guarda Soberana

Não acudir à fraca força humana?

«Bem nos mostra a Divina Providência

Destes portos a pouca segurança,

Bem claro temos visto na aparência

Que era enganada a nossa confiança;

Mas pois saber humano nem prudência

Enganos tão fingidos não alcança,

Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado

De quem sem ti não pode ser guardado!

«E, se te move tanto a piedade

Desta mísera gente peregrina,

Que, só por tua altíssima bondade,

Da gente a salvas pérfida e malina,

Nalgum porto seguro de verdade

Conduzir-nos já agora determina,

Ou nos amostra a terra que buscamos,

Pois só por teu serviço navegamos.»

Ouviu-lhe estas palavras piadosas

A fermosa Dione e, comovida,

Dantre as Ninfas se vai, que saüdosas

Ficaram desta súbita partida.

Ja penetra as Estrelas luminosas,

Já na terceira Esfera recebida

Avante passa, e lá no sexto Céu,

Pera onde estava o Padre, se moveu.

E, como ia afrontada do caminho,

Tão fermosa no gesto se mostrava

Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho

E tudo quanto a via, namorava.

Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,

Uns espíritos vivos inspirava,

Com que os Pólos gelados acendia,

E tornava do Fogo a Esfera, fria.

E, por mais namorar o soberano

Padre, de quem foi sempre amada e cara,

Se lh’apresenta assi como ao Troiano,

Na selva Ideia, já se apresentara.

Se a vira o caçador que o vulto humano

Perdeu, vendo Diana na água clara,

Nunca os famintos galgos o mataram,

Que primeiro desejos o acabaram.

Os crespos fios d’ouro se esparziam

Pelo colo que a neve escurecia;

Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,

Com quem Amor brincava e não se via;

Da alva petrina flamas lhe saíam,

Onde o Minino as almas acendia.

Polas lisas colunas lhe trepavam

Desejos, que como hera se enrolavam.

Cum delgado cendal as partes cobre

De quem vergonha é natural reparo;

Porém nem tudo esconde nem descobre

O véu, dos roxos lírios pouco avaro;

Mas, pera que o desejo acenda e dobre,

L’he põe diante aquele objecto raro.

Já se sentem no Céu, por toda a parte,

Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

E mostrando no angélico sembrante

Co riso üa tristeza misturada,

Como dama que foi do incauto amante

Em brincos amorosos mal tratada,

Que se aqueixa e se ri num mesmo instante

E se torna entre alegre, magoada,

Destarte a Deusa a quem nenhüa iguala,

Mais mimosa que triste ao Padre fala:

«Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,

Que, pera as cousas que eu do peito amasse,

Te achasse brando, afábil e amoroso,

Posto que a algum contrairo lhe pesasse;

Mas, pois que contra mi te vejo iroso,

Sem que to merecesse nem te errasse,

Faça-se como Baco determina;

Assentarei, enfim, que fui mofina.

«Este povo, que é meu, por quem derramo.

As lágrimas que em vão caídas vejo,

Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,

Sendo tu tanto contra meu desejo;

Por ele a ti rogando, choro e bramo,

E contra minha dita enfim pelejo.

Ora pois, porque o amo é mal tratado;

Quero-lhe querer mal, será guardado.

«Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,

Que pois eu fui.» E nisto, de mimosa,

O rosto banha em lágrimas ardentes,

Como co orvalho fica a fresca rosa.

Calada um pouco, como se entre os dentes

Lhe impedira a fala piedosa,

Torna a segui-la; e indo por diante,

Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.

E destas brandas mostras comovido,

Que moveram de um tigre o peito duro,

Co vulto alegre, qual, do Céu subido,

Torna sereno e claro o ar escuro,

As lágrimas lhe alimpa e, acendido,

Na face a beija e abraça o colo puro;

De modo que dali, se só se achara,

Outro novo Cupido se gerara

E, co seu apertando o rosto amado,

Que os saluços e lágrimas aumenta,

Como minino da ama castigado,

Que quem no afaga o choro lhe acrecenta,

Por lhe pôr em sossego o peito irado,

Muitos casos futuros lhe apresenta.

Dos Fados as entranhas revolvendo,

Desta maneira enfim lhe está dizendo:

– «Fermosa filha minha, não temais

Perigo algum nos vossos Lusitanos,

Nem que ninguém comigo possa mais

Que esses chorosos olhos soberanos;

Que eu vos prometo, filha, que vejais

Esquecerem-se Gregos e Romanos,

Pelos ilustres feitos que esta gente

Há-de fazer nas partes do Oriente.

«Que, se o facundo Ulisses escapou

De ser na Ogígia Ilha eterno escravo,

E se Antenor os seios penetrou

Ilíricos e a fonte de Timavo,

E se o piadoso Eneias navegou

De Cila e de Caríbdis o mar bravo,

Os vossos, mores cousas atentando,

Novos mundos ao mundo irão mostrando.

«Fortalezas, cidades e altos muros

Por eles vereis, filha, edificados;

Os Turcos belacíssimos e duros

Deles sempre vereis desbaratados;

Os Reis da Índia, livres e seguros,

Vereis ao Rei potente sojugados,

E por eles, de tudo enfim senhores,

Serão dadas na terra leis milhores.

«Vereis este que agora, pressuroso,

Por tantos medos o Indo vai buscando,

Tremer dele Neptuno de medroso,

Sem vento suas águas encrespando.

Ó caso nunca visto e milagroso,

Que trema e ferva o mar, em calma estando!

Ó gente forte e de altos pensamentos,

Que também dela hão medo os Elementos!

«Vereis a terra que a água lhe tolhia,

Que inda há-de ser um porto mui decente,

Em que vão descansar da longa via

As naus que navegarem do Ocidente

Toda esta costa, enfim, que agora urdia

O mortífero engano, obediente

Lhe pagará tributos, conhecendo

Não poder resistir ao Luso horrendo.

«E vereis o Mar Roxo, tão famoso,

Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;

Vereis de Ormuz o Reino poderoso

Duas vezes tomado e sojugado.

Ali vereis o Mouro furioso

De suas mesmas setas traspassado;

Que quem vai contra os vossos, claro veja

Que, se resiste, contra si peleja.

«Vereis a inexpugnábil Dio forte

Que dous cercos terá, dos vossos sendo;

Ali se mostrará seu preço e sorte,

Feitos de armas grandíssimos fazendo.

Envejoso vereis o grão Mavorte

Do peito Lusitano, fero e horrendo;

Do Mouro ali verão que a voz extrema do falso.

Mahamede ao Céu blasfema.

Goa vereis aos Mouros ser tomada,

O qual virá despois a ser senhora

De todo o Oriente, e sublimada

Cos triunfos da gente vencedora.

Ali, soberba, altiva e exalçada,

Ao Gentio que os Ídolos adora

Duro freio porá, e a toda a terra

Que cuidar de fazer aos vossos guerra.

«Vereis a fortaleza sustentar-se

De Cananor, com pouca força e gente;

E vereis Calecu desbaratar-se,

Cidade populosa e tão potente;

E vereis em Cochim assinalar-se

Tanto um peito soberbo e insolente

Que cítara jamais cantou vitória

Que assi mereça eterno nome e glória.

«Nunca com Marte instruto e furioso

Se viu ferver Leucate, quando Augusto

Nas civis Áctias guerras, animoso,

O Capitão venceu Romano injusto,

Que dos povos de Aurora e do famoso

Nilo e do Bactra Cítico e robusto

A vitória trazia e presa rica,

Preso da Egípcia linda e não pudica,

«Como vereis o mar fervendo aceso

Cos incêndios dos vossos, pelejando,

Levando o Idololatra e o Mouro preso,

De nações diferentes triunfando;

E, sujeita a rica Áurea Quersoneso,

Até o longico China navegando

E as Ilhas mais remotas do Oriente,

Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.

«De modo, filha minha, que de jeito

Amostrarão esforço mais que humano,

Que nunca se verá tão forte peito,

Do Gangético mar ao Gaditano,

Nem das Boreais ondas ao Estreito

Que mostrou o agravado Lusitano,

Posto que em todo o mundo, de afrontados,

Re[s]sucitassem todos os passados.»

Como isto disse, manda o consagrado

Filho de Maia à Terra, por que tenha

Um pacífico porto e sossegado,

Pera onde sem receio a frota venha;

E, pera que em Mombaça, aventurado,

O forte Capitão se não detenha,

Lhe manda mais que em sonhos lhe mostrasse

A terra onde quieto repousasse.

Já pelo ar o Cileneu voava;

Com as asas nos pés à Terra dece;

Sua vara fatal na mão levava,

Com que os olhos cansados adormece;

Com esta, as tristes almas revocava

Do Inferno, e o vento lhe obedece;

Na cabeça o galero costumado;

E destarte a Melinde foi chegado.

Consigo a Fama leva, por que diga

Do Lusitano o preço grande e raro,

Que o nome ilustre a um certo amor obriga,

E faz, a quem o tem, amado e caro.

Destarte vai fazendo a gente, amiga,

Co rumor famosíssimo e perclaro.

Já Melinde em desejos arde todo

De ver da gente forte o gesto e modo.

Dali pera Mombaça logo parte,

Aonde as naus estavam temerosas,

Pera que à gente mande que se aparte

Da barra imiga e terras suspeitosas;

Porque mui pouco val esforço e arte

Contra infernais vontades enganosas;

Pouco val coração, astúcia e siso,

Se lá dos Céus não vem celeste aviso.

Meio caminho a noite tinha andado,

E as Estrelas no Céu, co a luz alheia,

Tinham largo Mundo alumiado,

E só co sono a gente se recreia.

O Capitão ilustre, já cansado

De vigiar a noite que arreceia,

Breve repouso antão aos olhos dava,

A outra gente a quartos vigiava;

Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,

Dizendo: – «fuge, fuge, Lusitano,

Da cilada que o Rei malvado tece,

Por te trazer ao fim e extremo dano!

Fuge, que o vento e o Céu te favorece;

Sereno o tempo tens e o Oceano,

E outro Rei mais amigo, noutra parte,

Onde podes seguro agasalhar-te!

«Não tens aqui senão aparelhado

O hospício que o cru Diomedes dava,

Fazendo ser manjar acostumado

De cavalos a gente que hospedava;

As aras de Busíris infamado,

Onde os hóspedes tristes imolava,

Terás certas aqui, se muito esperas:

Fuge das gentes pérfidas e feras!

– «Vai-te ao longo da costa discorrendo

E outra terra acharás de mais verdade

Lá quási junto donde o Sol, ardendo,

Iguala o dia e noite em quantidade;

Ali tua frota alegre recebendo,

Um Rei, com muitas obras de amizade,

Gasalhado seguro te daria

E, pera a Índia, certa e sábia guia.»

Isto Mercúrio disse, e o sono leva

Ao Capitão, que, com mui grande espanto,

Acorda e vê ferida a escura treva

De üa súbita luz e raio santo;

E vendo claro quanto lhe releva

Não se deter na terra inica tanto,

Com novo esprito ao mestre seu mandava

Que as velas desse ao vento que assoprava.

– «Dai velas (disse) dai ao largo vento,

Que o Céu nos favorece e Deus o manda;

Que um mensageiro vi do claro Assento,

Que só em favor de nossos passos anda.»

Alevanta-se nisto o movimento

Dos marinheiros, de üa e de outra banda;

Levam gritando as âncoras acima,

Mostrando a ruda força que se estima.

Neste tempo que as ancoras levavam,

Na sombra escura os Mouros escondidos

Mansamente as amarras lhe cortavam,

Por serem, dando à costa, destruídos;

Mas com vista de linces vigiavam

Os Portugueses, sempre apercebidos;

Eles, como acordados os sentiram,

Voando, e não remando, lhe fugiram.

Mas já as agudas proas apartando

Iam as vias húmidas de argento;

Assopra-lhe galerno o vento e brando,

Com suave e seguro movimento.

Nos perigos passados vão falando,

Que mal se perderão do pensamento

Os casos grandes, donde em tanto aperto

A vida em salvo escapa por acerto.

Tinha üa volta dado o Sol ardente

E noutra começava, quando viram

No longe dous navios, brandamente

Cos ventos navegando, que respiram.

Porque haviam de ser da Maura gente,

Pera eles arribando, as velas viram.

Um, de temor do mal que arreceava,

Por se salvar a gente à costa dava.

Não é o outro que fica tão manhoso,

Mas nas mãos vai cair do Lusitano,

Sem o rigor de Marte furioso.

E sem a fúria horrenda de Vulcano;

Que, como fosse débil e medroso.

Da pouca gente o fraco peito humano,

Não teve resistência; e, se a tivera,

Mais dano, resistindo, recebera.

E como o Gama muito desejasse

Piloto pera a Índia, que buscava,

Cuidou que entre estes Mouros o tomasse,

Mas não lhe sucedeu como cuidava;

Que nenhum deles há que lhe ensinasse

A que parte dos céus a Índia estava;

Porém dizem-lhe todos que tem perto

Melinde, onde acharão piloto certo.

Louvam do Rei os Mouros a bondade,

Condição liberal, sincero peito,

Magnificência grande e humanidade,

Com partes de grandíssimo respeito.

O Capitão o assela por verdade,

Porque já lho dissera deste jeito

O Cileneu em sonhos; e partia

Pera onde o sonho e o Mouro lhe dizia.

Era no tempo alegre, quando entrava

No roubador de Europa a luz Febeia,

Quando um e o outro corno lhe aquentava,

E Flora derramava o de Amalteia;

A memória do dia renovava

O pres[s]uroso Sol, que o Céu rodeia,

Em que Aquele a quem tudo está sujeito

O selo pôs a quanto tinha feito;

Quando chegava a frota àquela parte

Onde o Reino Melinde já se via,

De toldos adornada e leda de arte

Que bem mostra estimar o Santo dia.

Treme a bandeira, voa o estandarte,

A cor purpúrea ao longe aparecia;

Soam os atambores e pandeiros;

E assi entravam ledos e guerreiros.

Enche-se toda a praia Melindana

Da gente que vem ver a leda armada,

Gente mais verdadeira e mais humana

Que toda a doutra terra atrás deixada.

Surge diante a frota Lusitana,

Pega no fundo a âncora pesada;

Mandam fora um dos Mouros que tomaram,

Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.

O Rei, que já sabia da nobreza

Que tanto os Portugueses engrandece,

Tomarem o seu porto tanto preza

Quanto a gente fortíssima merece;

E com verdadeiro ânimo e pureza,

Que os peitos generosos ennobrece,

Lhe manda rogar muito que saíssem

Pera que de seus reinos se servissem.

São oferecimentos verdadeiros

E palavras sinceras, não dobradas,

As que o Rei manda aos nobres cavaleiros

Que tanto mar e terras têm passadas.

Manda-lhe mais lanígeros carneiros

E galinhas domésticas cevadas,

Com as frutas que antão na terra havia;

E a vontade à dádiva excedia.

Recebe o Capitão alegremente

O mensageiro ledo e seu recado;

E logo manda ao Rei outro presente,

Que de longe trazia aparelhado:

Escarlata purpúrea, cor ardente,

O ramoso coral, fino e prezado,

Que debaxo das águas mole crece,

E, como é fora delas, se endurece.

Manda mais um, na prática elegante,

Que co Rei nobre as pazes concertasse

E que de não sair, naquele instante,

De suas naus em terra, o desculpasse.

Partido assi o embaixador prestante,

Como na terra ao Rei se apresentasse,

Com estilo que Palas lhe ensinava,

Estas palavras tais falando orava:

– «Sublime Rei, a quem do Olimpo puro

Foi da suma Justiça concedido

Refrear o soberbo povo duro,

Não menos dele amado, que temido:

Como porto mui forte e mui seguro,

De todo o Oriente conhecido,

Te vimos a buscar, pera que achemos

Em ti o remédio certo que queremos.

«Não somos roubadores que, passando

Pelas fracas cidades descuidadas,

A ferro e a fogo as gentes vão matando,

Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;

Mas, da soberba Europa navegando,

Imos buscando as terras apartadas

Da Índia, grande e rica, por mandado

De um Rei que temos, alto e sublimado.

«Que geração tão dura há
i de gente,

Que bárbaro costume e usança feia,

Que não vedem os portos tão somente,

Mas inda o hospício da deserta areia?

Que má tenção, que peito em nós
se sente,

Que de tão pouca gente se arreceia?

Que, com laços armados, tão fingidos,

Nos ordenassem ver-nos destruídos?

«Mas tu, em quem mui certo confiamos

Achar-se mais verdade, ó Rei benino,

E aquela certa ajuda em ti esperamos

Que teve o perdido Ítaco em Alcino,

A teu porto seguros navegamos,

Conduzidos do intérprete divino;

Que, pois a ti nos manda, está mui

Claro Que és de peito sincero, humano e raro.

«E não cuides, ó Rei, que não saísse

O nosso Capitão esclarecido

A ver-te ou a servir-te, porque visse

Ou suspeitasse em ti peito fingido;

Mas saberás que o fez, por que cumprisse

O regimento, em tudo obedecido,

De seu Rei, que lhe manda que não saia,

Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.

«E porque é de vassalos o exercício

Que os membros têm, regidos da cabeça,

Não quererás, pois tens de Rei o ofício,

Que ninguém a seu Rei desobedeça;

Mas as mercês e o grande benefício

Que ora acha em ti, promete que conheça

Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,

Enquanto os rios pera o mar correrem.»

Assi dizia; e todos juntamente,

Uns com outros em prática falando,

Louvavam muito o estâmago da gente

Que tantos céus e mares vai passando;

E o Rei ilustre, o peito obediente

Dos Portugueses na alma imaginando,

Tinha por valor grande e mui subido

O do Rei que é tão longe obedecido;

E com risonha vista e ledo aspeito,

Responde ao embaixador, que tanto estima:

– «Toda a suspeita má tirai do peito,

Nenhum frio temor em vós se imprima,

Que vosso preço e obras são de jeito

Pera vos ter o mundo em muita estima;

E quem vos fez molesto tratamento

Não pode ter subido pensamento.

«De não sair em terra toda a gente,

Por observar a usada preminência,

Ainda que me pese estranhamente,

Em muito tenho a muita obediência

Mas, se lho o regimento não consente,

Nem eu consentirei que a excelência

De peitos tão leais em si desfaça,

Só porque a meu desejo satisfaça.

«Porém, como a luz crástina chegada

Ao mundo for, em minhas almadias

Eu irei visitar a forte armada,

Que ver tanto desejo há tantos dias.

E, se vier do mar desbaratada

Do furioso vento e longas vias,

Aqui terá de limpos pensamentos

Piloto, munições e mantimentos.»

Isto disse; e nas águas se escondia

O filho de Latona; e o mensageiro,

Co a embaixada, alegre se partia

Pera a frota no seu batel ligeiro.

Enchem-se os peitos todos de alegria,

Por terem o remédio verdadeiro

Pera acharem a terra que buscavam;

E assi ledos a noite festejavam.

Não faltam ali os raios de artifício,

Os trémulos cometas imitando;

Fazem os bombardeiros seu ofício,

O céu, a terra e as ondas atroando;

Mostra-se dos Ciclopas o exercício,

Nas bombas que de fogo estão queimando;

Outros com vozes com que o céu feriam,

Instrumentos altíssonos tangiam.

Respondem-lhe da terra juntamente,

Co raio volteando com zunido;

Anda em giros no ar a roda ardente,

Estoira o pó sulfúreo escondido;

A grita se alevanta ao céu, da gente;

O mar se via em fogos acendido

E não menos a terra; e assi festeja

Um ao outro, à maneira de peleja.

Mas já o Céu inquieto, revolvendo,

As gentes incitava a seu trabalho;

E já a mãe de Menon, a luz trazendo

Ao sono longo punha certo atalho;

Iam-se as sombras lentas desfazendo,

Sobre as flores da terra em frio orvalho,

Quando o Rei Melindano se embarcava,

A ver a frota que no mar estava.

Viam-se em derredor ferver as praias,

Da gente que a ver só concorre leda;

Luzem da fina púrpura as cabaias,

Lustram os panos da tecida seda.

Em lugar de guerreiras azagaias

E do arco que os cornos arremeda

Da Lüa, trazem ramos de palmeira,

Dos que vencem, coroa verdadeira.

Um batel grande e largo, que toldado

Vinha de sedas de diversas cores,

Traz o Rei de Melinde, acompanhado

De nobres de seu Reino e de senhores.

Vem de ricos vestidos adornado,

Segundo seus costumes e primores;

Na cabeça, üa fota guarnecida

De ouro, e de seda e de algodão tecida;

Cabaia de Damasco rico e dino,

Da Tíria cor, entre eles estimada;

Um colar ao pescoço, de ouro fino,

Onde a matéria da obra é superada,

Cum resplandor reluze adamantino;

Na cinta a rica adaga, bem lavrada;

Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,

Cobrem ouro e aljôfar ao veludo.

Com um redondo emparo alto de seda,

Nüa alta e dourada hástea enxerido,

Um ministro à solar quentura veda

Que não ofenda e queime o Rei subido.

Música traz na proa, estranha e leda,

De áspero som, horríssono ao ouvido,

De trombetas arcadas em redondo,

Que, sem concerto, fazem rudo estrondo.

Não menos guarnecido, o Lusitano,

Nos seus batéis, da frota se partia,

A receber no mar o Melindano,

Com lustrosa e honrada companhia.

Vestido o Gama vem ao modo Hispano,

Mas Francesa era a roupa que vestia,

De cetim da Adriática Veneza,

Carmesi, cor que a gente tanto preza;

De botões d’ouro as mangas vêm tomadas

Onde o Sol, reluzindo, a vista cega;

As calças soldadescas, recamadas

Do metal que Fortuna a tantos nega;

E com pontas do mesmo, delicadas,

Os golpes do gibão ajunta e achega;

Ao Itálico modo a áurea espada;

Pruma na gorra, um pouco declinada.

Nos de sua companhia se mostrava

Da tinta que dá o múrice excelente

A vária cor, que os olhos alegrava,

E a maneira do trajo diferente.

Tal o fermoso esmalte se notava

Dos vestidos, olhados juntamente,

Qual aparece o arco rutilante

Da bela Ninfa, filha de Taumante.

Sonorosas trombetas incitavam

Os ânimos alegres, ressoando;

Dos Mouros os batéis o mar coalhavam,

Os toldos pelas águas arrojando;

As bombardas horríssonas bramavam,

Com as nuvens de fumo o Sol tomando;

Amiúdam-se os brados acendidos,

Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.

Já no batel entrou do Capitão

O Rei, que nos seus braços o levava;

Ele, co a cortesia que a razão

(Por ser Rei) requeria, lhe falava.

Cüas mostras de espanto e admiração,

O Mouro o gesto e o modo lhe notava,

Como quem em mui grande estima tinha

Gente que de tão longe à Índia vinha.

E com grandes palavras lhe oferece

Tudo o que de seus reinos lhe cumprisse,

E que, se mantimento lhe falece,

Como se próprio fosse, lho pedisse.

Diz-lhe mais que por fama bem conhece

A gente Lusitana, sem que a visse;

Que já ouviu dizer que noutra terra

Com gente de sua Lei tivesse guerra;

E como por toda Africa se soa,

Lhe diz, os grandes feitos que fizeram

Quando nela ganharam a coroa

Do Reino onde as Hespéridas viveram;

E com muitas palavras apregoa

O menos que os de Luso mereceram

E o mais que pela fama o Rei sabia;

Mas desta sorte o Gama respondia:

– «Ó tu que, só, tiveste piedade,

Rei benigno, da gente Lusitana,

Que com tanta miséria e adversidade

Dos mares exprimenta a fúria insana:

Aquela alta e divina Eternidade

Que o Céu revolve e rege a gente humana,

Pois que de ti tais obras recebemos,

Te pague o que nós outros não podemos.

«Tu só, de todos quantos queima Apolo,

Nos recebes em paz, do mar profundo;

Em ti, dos ventos hórridos de Eolo

Refúgio achamos, bom, fido e jocundo.

Enquanto apacentar o largo Pólo

As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,

Onde quer que eu viver, com fama e glória

Viverão teus louvores em memória.»

Isto dizendo, os barcos vão remando

Pera a frota, que o Mouro ver deseja;

Vão as naus üa e üa rodeando,

Por que de todas tudo note e veja.

Mas pera o Céu Vulcano fuzilando,

A frota co as bombardas o festeja

E as trombetas canoras lhe tangiam;

Cos anafis os Mouros respondiam.

Mas, despois de ser tudo já notado

Do generoso Mouro, que pasmava

Ouvindo o instrumento inusitado,

Que tamanho terror em si mostrava,

Mandava estar quieto e ancorado

N’água o batel ligeiro que os levava,

Por falar de vagar co forte Gama

Nas cousas de que tem notícia e fama.

Em práticas o Mouro diferentes

Se deleitava, perguntando agora

Pelas guerras famosas e excelentes

Co povo havidas que a Mafoma adora;

Agora lhe pergunta pelas gentes

De toda a Hespéria última, onde mora;

Agora, pelos povos seus vizinhos,

Agora, pelos húmidos caminhos.

– «Mas antes, valeroso Capitão,

Nos conta (lhe dizia), diligente,

Da terra tua o clima e região

Do mundo onde morais, distintamente;

E assi de vossa antiga geração,

E o princípio do Reino tão potente,

Cos sucessos das guerras do começo,

Que, sem sabê-las, sei que são de preço;

«E assi também nos conta dos rodeios

Longos em que te traz o Mar irado,

Vendo os costumes bárbaros, alheios,

Que a nossa Africa ruda tem criado;

Conta, que agora vêm cos áureos freios

Os cavalos que o carro marchetado

Do novo Sol, da fria Aurora trazem;

O vento dorme, o mar e as ondas jazem.

«E não menos co tempo se parece

O desejo de ouvir-te o que contares;

Que quem há que por fama não conhece

As obras Portuguesas singulares?

Não tanto desviado resplandece

De nós o claro Sol, pera julgares

Que os Melindanos têm tão rudo peito

Que não estimem muito um grande feito.

«Cometeram soberbos os Gigantes,

Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;

Tentou Perito e Teseu, de ignorantes,

O Reino de Plutão, horrendo e escuro.

Se houve feitos no mundo tão possantes,

Não menos é trabalho ilustre e duro,

Quanto foi cometer Inferno e Céu,

Que outrem cometa a fúria de Nereu.

«Queimou o sagrado templo de Diana,

Do sutil Tesifónio fabricado,

Heróstrato, por ser da gente humana

Conhecido no mundo e nomeado.

Se também com tais obras nos engana

O desejo de um nome aventajado,

Mais razão há que queira eterna glória

Quem faz obras tão dinas de memória.».

Canto III

AGORA tu, Calíope, me ensina

O que contou ao Rei o ilustre Gama;

Inspira imortal canto e voz divina

Neste peito mortal, que tanto te ama.

Assi o claro inventor da Medicina,

De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,

Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,

Te negue o amor devido, como soe.

Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,

Como merece a gente Lusitana;

Que veja e saiba o mundo que do Tejo

O licor de Aganipe corre e mana.

Deixa as flores de Pindo, que já vejo

Banhar-me Apolo na água soberana;

Senão direi que tens algum receio

Que se escureça o teu querido Orfeio.

Prontos estavam todos escuitando

O que o sublime Gama contaria,

Quando, despois de um pouco estar cuidando

Alevantando o rosto, assi dizia:

– «Mandas-me, ó Rei, que conte declarando

De minha gente a grão genealogia;

Não me mandas contar estranha história,

Mas mandas-me louvar dos meus a glória.

«Que outrem possa louvar esforço alheio,

Cousa é que se costuma e se deseja;

Mas louvar os meus próprios, arreceio

Que louvor tão suspeito mal me esteja;

E, pera dizer tudo, temo e creio

Que qualquer longo tempo curto seja;

Mas, pois o mandas, tudo se te deve;

Irei contra o que devo, e serei breve.

«Além disso, o que a tudo enfim me obriga

É não poder mentir no que disser,

Porque de feitos tais, por mais que diga,

Mais me há-de ficar inda por dizer.

Mas, porque nisto a ordem leve e siga,

Segundo o que desejas de saber,

Primeiro tratarei da larga terra,

Despois direi da sanguinosa guerra.

«Entre a Zona que o Cancro senhoreia,

Meta Setentrional do Sol luzente,

E aquela que por fria se arreceia

Tanto, como a do meio por ardente,

Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,

Pela parte do Arcturo e do Ocidente.

Com suas salsas ondas o Oceano,

E pela Austral, o Mar Mediterrano.

Da parte donde o dia vem nascendo,

Com Asia se avizinha; mas o rio

Que dos Montes Rifeios vai correndo

Na alagoa Meótis, curvo e frio,

As divide, e o mar que, fero e horrendo,

Viu dos Gregos o irado senhorio,

Onde agora de Tróia triunfante

Não vê mais que a memória o navegante.

«Lá onde mais debaxo está do Pólo

Os Montes Hiperbóreos aparecem

E aqueles onde sempre sopra Eolo,

E co nome dos sopros se ennobrecem

Aqui tão pouca força têm de Apolo

Os raios que no mundo resplandecem,

que a nEve está contino pelos montes,

Gelado o mar, geladas sempre as fontes.

«Aqui dos Citas grande quantidade

Vivem, que antigamente grande guerra

Tiveram, sobre a humana antiguidade,

Cos que tinham antão a Egípcia terra;

Mas quem tão fora estava da verdade

(Já que o juízo humano tanto erra),

Pera que do mais certo se informara,

Ao campo Damasceno o perguntara.

«Agora nestas partes se nomeia

A Lápia fria, a inculta Noruega,

Escandinávia Ilha, que se arreia

Das vitórias que Itália não lhe nega.

Aqui, enquanto as águas não refreia

O congelado Inverno, se navega

Um braço do Sarmático Oceano

Pelo Brús[s]io, Suécio e frio Dano.

«Entre este Mar e o Tánais vive estranha

Gente, Rutenos, Moscos e Livónios,

Sármatas outro tempo; e na montanha

Hircínia os Marcomanos são Polónios.

Sujeitos ao Império de Alemanha

São Saxones, Boémios e Panónios

E outras várias nações, que o Reno frio

Lava, e o Danúbio, Amásis e Álbis rio.

«Entre o remoto Istro e o claro Estreito

Aonde Hele deixou, co nome, a vida,

Estão os Traces de robusto peito,

Do fero Marte pátria tão querida,

Onde, co Hemo, o Ródope sujeito

Ao Otomano está, que sometida

Bizâncio tem a seu serviço indino:

– Boa injúria do grande Costantino!

«Logo de Macedónia estão as gentes,

A quem lava do Áxio a água fria;

E vós também, ó terras excelentes

Nos costumes, engenhos e ousadia,

Que criastes os peitos eloquentes

E os juízos de alta fantasia,

Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras,

E não menos por armas, que por letras.

«Logo os Dálmatas vivem; e no seio

Onde Antenor já muros levantou,

A soberba Veneza está no meio

Das águas, – que tão baxa começou.

Da terra um braço vem ao mar, que, cheio

De esforço, nações várias sujeitou;

Braço forte, de gente sublimada

Não menos nos engenhos que na espada.

«Em torno o cerca o Reino Neptunino,

Cos muros naturais por outra parte;

Pelo meio o divide o Apenino,

Que tão ilustre fez o pátrio Marte;

Mas, despois que o Porteiro tem divino,

Perdendo o esforço veio e bélica arte;

Pobre está já de antiga potestade.

Tanto Deus se contenta de humildade!

«Gália ali se verá, que nomeada

Cos Cesáreos triunfos foi no mundo;

Que do Séquana e Ródano é regada

E do Garuna frio e Reno fundo.

Logo os montes da Ninfa sepultada,

Pirene, se alevantam, que, segundo

Antiguidades contam, quando arderam,

Rios de ouro e de prata antão correram.

«Eis aqui se descobre a nobre Espanha,

Como cabeça ali de Europa toda,

Em cujo senhorio e glória estranha

Muitas voltas tem dado a fatal roda;

Mas nunca poderá, com força ou manha,

A Fortuna inquieta por-lhe noda

Que lha não tire o esforço e ousadia

Dos belicosos peitos que em si cria.

«Com Tingitânia entesta; e ali parece

Que quer fechar o Mar Mediterrano

Onde o sabido Estreito se ennobrece

Co extremo trabalho do Tebano.

Com nações diferentes se engrandece,

Cercadas com as ondas do Oceano;

Todas de tal nobreza e tal valor

Que qualquer delas cuida que é milhor.

«Tem o Tarragonês, que se fez claro

Sujeitando Parténope inquieta;

O Navarro, as Astúrias, que reparo

Já foram contra a gente Mahometa;

Tem o Galego cauto e o grande e raro

Castelhano, a quem fez o seu Planeta

Restituidor de Espanha e senhor dela;

Bétis, Lião, Granada, com Castela.

«Eis aqui, quási cume da cabeça

De Europa toda, o Reino Lusitano,

Onde a terra se acaba e o mar começa

E onde Febo repousa no Oceano.

Este quis o Céu justo que floreça

Nas armas contra o torpe Mauritano,

Deitando-o de si fora; e lá na ardente

África estar quieto o não consente.

«Esta é a ditosa pátria minha amada,

À qual se o Céu me dá que eu sem perigo

Torne, com esta empresa já acabada,

Acabe-se esta luz ali comigo.

Esta foi Lusitânia, derivada

De Luso ou Lisa, que de Baco antigo

Filhos foram, parece, ou companheiros,

E nela antão os íncolas primeiros.

«Desta o pastor nasceu que no seu nome

Se vê que de homem forte os feitos teve;

Cuja fama ninguém virá que dome,

Pois a grande de Roma não se atreve.

Esta, o Velho que os filhos próprios come,

Por decreto do Céu, ligeiro e leve,

Veio a fazer no mundo tanta parte,

Criando-a Reino ilustre; e foi destarte:

«Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,

Que fez aos Sarracenos tanta guerra,

Que, por armas sanguinas, força e manha,

A muitos fez perder a vida e a terra.

Voando deste Rei a fama estranha

Do Herculano Calpe à Cáspia Serra,

Muitos, pera na guerra esclarecer-se,

Vinham a ele e à morte oferecer-se.

«E com um amor intrínseco acendidos

Da Fé, mais que das honras populares,

Eram de várias terras conduzidos,

Deixando a pátria amada e próprios lares.

Despois que em feitos altos e subidos

Se mostraram nas armas singulares,

Quis o famoso Afonso que obras tais

Levassem prémio dino e dões iguais.

«Destes Anrique (dizem que segundo

Filho de um Rei de Hungria exprimentado)

Portugal houve em sorte, que no mundo

Então não era ilustre nem prezado;

E, pera mais sinal de amor profundo,

Quis o Rei Castelhano que casado

Com Teresa, sua filha, o Conde fosse;

E com ela das terras tomou posse.

«Este, despois que contra os descendentes

Da escrava Agar vitórias grandes teve,

Ganhando muitas terras adjacentes,

Fazendo o que a seu forte peito deve,

Em prémio destes feitos excelentes

Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,

Um filho que ilustrasse o nome ufano

Do belicoso Reino Lusitano.

«Já tinha vindo Anrique da conquista

Da cidade Hierosólima sagrada,

E do Jordão a areia tinha vista,

Que viu de Deus a carne em si lavada

(Que, não tendo Gotfredo a quem resista,

Despois de ter Judeia sojugada,

Muitos que nestas guerras o ajudaram

Pera seus senhorios se tornaram);

«Quando, chegado ao fim de sua idade,

O forte e famoso Húngaro estremado,

Forçado da fatal necessidade,

O esprito deu a Quem lho tinha dado.

Ficava o filho em tenra mocidade,

Em quem o pai deixava seu traslado,

Que do mundo os mais fortes igualava:

Que de tal pai tal filho se esperava.

«Mas o velho rumor – não sei se errado,

Que em tanta antiguidade não há certeza –

Conta que a mãe, tomando todo o estado,

Do segundo himeneu não se despreza.

O filho órfão deixava deserdado,

Dizendo que nas terras a grandeza

Do senhorio todo só sua era,

Porque, pera casar, seu pai lhas dera.

«Mas o Príncipe Afonso (que destarte

Se chamava, do avô tomando o nome),

Vendo-se em suas terras não ter parte,

Que a mãe com seu marido as manda e come,

Fervendo-lhe no peito o duro Marte,

Imagina consigo como as tome:

Revolvidas as causas no conceito,

Ao propósito firme segue o efeito.

«De Guimarães o campo se tingia

Co sangue proprio da intestina guerra,

Onde a mãe, que tão pouco o parecia,

A seu filho negava o amor e a terra.

Co ele posta em campo já se via;

E não vê a soberba o muito que erra

Contra Deus, contra o maternal amor;

Mas nela o sensual era maior.

«Ó Progne crua, ó mágica Medeia!

Se em vossos próprios filhos vos vingais

Da maldade dos pais, da culpa alheia,

Olhai que inda Teresa peca mais!

Incontinência má, cobiça feia,

São as causas deste erro principais:

Cila, por üa mata o velho pai;

Esta, por ambas, contra o filho vai.

«Mas já o Príncipe claro o vencimento

Do padrasto e da inica mãe levava;

Já lhe obedece a terra, num momento,

Que primeiro contra ele pelejava;

Porém, vencido de ira o entendimento,

A mãe em ferros ásperos atava;

Mas de Deus foi vingada em tempo breve.

Tanta veneração aos pais se deve!

«Eis se ajunta o soberbo Castelhano

Pera vingar a injúria de Teresa,

Contra o, tão raro em gente, Lusitano,

A quem nenhum trabalho agrava ou pesa.

Em batalha cruel, o peito humano,

Ajudado da Angélica defesa,

Não só contra tal fúria se sustenta,

Mas o inimigo aspérrimo afugenta.

«Não passa muito tempo, quando o forte

Príncipe em Guimarães está cercado

De infinito poder, que desta sorte

Foi refazer-se o imigo magoado;

Mas, com se oferecer à dura morte

O fiel Egas amo, foi livrado;

Que, de outra arte, pudera ser perdido,

Segundo estava mal apercebido.

«Mas o leal vassalo, conhecendo

Que seu senhor não tinha resistência,

Se vai ao Castelhano, prometendo

Que ele faria dar-lhe obediência.

Levanta o inimigo o cerco horrendo,

Fiado na promessa e consciência

De Egas Moniz; mas não consente o peito

Do moço ilustre a outrem ser sujeito.

«Chegado tinha o prazo prometido,

Em que o Rei Castelhano já aguardava

Que o Príncipe, a seu mando sometido.

Lhe desse a obediência que esperava.

Vendo Egas que ficava fementido,

O que dele Castela não cuidava,

Determina de dar a doce vida

A troco da palavra mal cumprida.

«E com seus filhos e mulher se parte

A alevantar co eles a fiança,

Descalços e despidos, de tal arte

Que mais move a piedade que a vingança.

– «Se pretendes, Rei alto, de vingar-te

De minha temerária confiança

(Dizia) eis aqui venho oferecido

A te pagar co a vida o prometido

«Vés aqui trago as vidas inocentes

Dos filhos sem pecado e da consorte;

Se a peitos generosos e excelentes

Dos fracos satisfaz a fera morte,

Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:

Nelas sós exprimenta toda sorte

De tormentos, de mortes, pelo estilo

De Sínis e do touro de Perilo.»

«Qual diante do algoz o condenado,

Que já na vida a morte tem bebido,

Põe no cepo a garganta e já entregado

Espera pelo golpe tão temido:

Tal diante do Príncipe indinado

Egas estava, a tudo oferecido.

Mas o Rei vendo a estranha lealdade,

Mais pôde, enfim, que a ira, a piedade.

«Ó grão fidelidade Portuguesa

De vassalo, que a tanto se obrigava!

Que mais o Persa fez naquela empresa

Onde rosto e narizes se cortava?

Do que ao grande Dario tanto pesa,

Que mil vezes dizendo suspirava

Que mais o seu Zopiro são prezara

Que vinte Babilónias que tomara.

«Mas já o Príncipe Afonso aparelhava

O Lusitano exército ditoso,

Contra o Mouro que as terras habitava

De além do claro Tejo deleitoso;

Já no campo de Ourique se assentava

O arraial soberbo e belicoso,

Defronte do inimigo Sarraceno,

Posto que em força e gente tão pequeno,

«Em nenhüa outra cousa confiado,

senão no sumo Deus que o Céu regia,

Que tão pouco era o povo bautizado,

Que, pera um só, cem Mouros haveria.

Julga qualquer juízo sossegado

Por mais temeridade que ousadia

Cometer um tamanho ajuntamento,

Que pera um cavaleiro houvesse cento.

«Cinco Reis Mouros são os inimigos,

Dos quais o principal Ismar se chama;

Todos exprimentados nos perigos

Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.

Seguem guerreiras damas seus amigos,

Imitando a fermosa e forte Dama

De quem tanto os Troianos se ajudaram,

E as que o Termodonte já gostaram.

«A matutina luz, serena e fria,

As Estrelas do Pólo já apartava,

Quando na Cruz o Filho de Maria,

Amostrando-se a Afonso, o animava.

Contra o touro remete, que fiado

Na força está do corno temeroso;

Ora pega na orelha, ora no lado,

Latindo mais ligeiro que forçoso,

Até que enfim, rompendo-lhe a garganta,

Do bravo a força horrenda se quebranta:

«Tal do Rei novo o estâmago acendido

Por Deus e polo povo juntamente,

O Bárbaro comete, apercebido

Co animoso exército rompente.

Levantam nisto os Perros o alarido

Dos gritos; tocam a arma, ferve a gente,

As lanças e arcos tomam, tubas soam,

Instrumentos de guerra tudo atroam!

«Bem como quando a flama, que ateada

Foi nos áridos campos (assoprando

O sibilante Bóreas), animada

Co vento, o seco mato vai queimando;

A pastoral companha, que deitada

Co doce sono estava, despertando

Ao estridor do fogo que se ateia,

Recolhe o fato e foge pera a aldeia:

«Destarte o Mouro, atónito e Torvado,

Toma sem tento as armas mui depressa;

Não foge, mas espera confiado,

E o ginete belígero arremessa.

O Português o encontra denodado, Pelos peitos as lanças
lhe atravessa;

Uns caem meios mortos e outros vão

A ajuda convocando do Alcorão.

«Ali se vêm encontros temerosos,

Pera se desfazer üa alta serra,

E os animais correndo furiosos

Que Neptuno amostrou, ferindo a terra;

Golpes se dão medonhos e forçosos;

Por toda a parte andava acesa a guerra;

Mas o de Luso arnês, couraça e malha,

Rompe, corta desfaz abola e talha.

«Cabeças pelo campo vão saltando,

Braços, pernas, sem dono e sem sentido,

E doutros as entranhas palpitando,

Pálida a cor, o gesto amortecido.

Ele, adorando Quem lhe aparecia,

Na Fé todo inflamado assi gritava:

– «Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis,

E não a mi, que creio o que podeis!»

«Com tal milagre os ânimos da gente

Portuguesa inflamados, levantavam

Por seu Rei natural este excelente

Príncipe, que do peito tanto amavam;

E diante do exército potente

Dos imigos, gritando, o céu tocavam,

Dizendo em alta voz: – «Real, real,

Por Afonso, alto Rei de Portugal!»

«Qual cos gritos e vozes incitado,

Pela montanha, o rábido moloso

Já perde o campo o exército nefando;

Correm rios do sangue desparzido,

Com que também do campo a cor se perde,

Tornado carmesi, de branco e verde.

«Já fica vencedor o Lusitano,

Recolhendo os troféus e presa rica;

Desbaratado e roto o Mauro Hispano

Três dias o grão Rei no campo fica.

Aqui pinta no branco escudo ufano,

Que agora esta vitória certifica,

Cinco escudos azuis esclarecidos,

Em sinal destes cinco Reis vencidos.

«E nestes cinco escudos pinta os trinta

Dinheiros por que Deus fora vendido,

Escrevendo a memória, em vária tinta,

Daquele de Quem foi favorecido.

Em cada um dos cinco, cinco pinta,

Porque assi fica o número cumprido,

Contando duas vezes o do meio,

Dos cinco azuis que em cruz pintando veio.

«Passado já algum tempo que passada

Era esta grão vitória, o Rei subido

A tomar vai Leiria, que tomada

Fora, mui pouco havia, do vencido.

Com esta a forte Arronches sojugada

Foi juntamente; e o sempre ennobrecido

Scabelicastro, cujo campo ameno

Tu, claro Tejo, regas tão sereno.

«A estas nobres vilas sometidas

Ajunta também Mafra, em pouco espaço,

E, nas serras da Lüa conhecidas,

Sojuga a fria Sintra o duro braço;

Sintra, onde as Naiades, escondidas

Nas fontes, vão fugindo ao doce laço

Onde Amor as enreda brandamente,

Nas águas acendendo fogo ardente.

«E tu, nobre Lisboa, que no mundo

Fàcilmente das outras és princesa,

Que edificada foste do facundo

Por cujo engano foi Dardânia acesa;

Tu a quem obedece o Mar profundo

Obedeceste à força Portuguesa,

Ajudada também da forte armada

Que das Boreais partes foi mandada.

«Lá do Germânico Álbis e do Reno

E da fria Bretanha conduzidos,

A destruir o povo Sarraceno

Muitos com tenção santa eram partidos.

Entrando a boca já do Tejo ameno,

Co arraial do grande Afonso unidos,

Cuja alta fama antão subia aos céus,

Foi posto cerco aos muros Ulisseus.

«Cinco vezes a Lüa se escondera

E outras tantas mostrara cheio o rosto,

Quando a cidade, entrada, se rendera

Ao duro cerco que lhe estava posto

Foi a batalha tão sanguina e fera

Quanto obrigava o firme pros[s]uposto

De vencedores ásperos e ousados

E de vencidos já desesperados.

«Destarte, enfim, tomada se rendeu

Aquela que, nos tempos já passados,

À grande força nunca obedeceu

Dos frios povos Cíticos ousados,

Cujo poder a tanto se estendeu

Que o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;

E, enfim, co Bétis tanto alguns puderam

Que à terra, de Vandália nome deram.

«Que cidade tão forte porventura

Haverá que resista, se Lisboa

Não pôde resistir à força dura

Da gente cuja fama tanto voa?

Já lhe obedece toda a Estremadura,

Óbidos, Alanquer, por onde soa

O tom das frescas águas entre as pedras,

Que murmurando lava, e Torres Vedras.

«E vós também, ó terras Transtaganas,

Afamadas co dom da flava Ceres,

Obedeceis às forças mais que humanas,

Entregando-lhe os muros e os poderes;

E tu, lavrador Mouro, que te enganas,

Se sustentar a fértil terra queres:

Que Elvas e Moura e Serpa, conhecidas,

E Alcáçare do Sal estão rendidas.

«Eis a nobre cidade, certo assento

Do rebelde Sertório antigamente,

Onde ora as águas nítidas de argento

Vêm sustentar de longo a terra e a gente

Pelos arcos reais, que, cento e cento,

Nos ares se alevantam nobremente,

Obedeceu por meio e ousadia

De Giraldo, que medos não temia.

«Já na cidade Beja vai tomar

Vingança de Trancoso destruída

Afonso, que não sabe sossegar,

Por estender co a fama a curta vida.

Não se lhe pode muito sustentar

A cidade; mas, sendo já rendida,

Em toda a cousa viva a gente irada

Provando os fios vai da dura espada.

«Com estas sojugada foi Palmela

E a piscosa Sesimbra e, juntamente,

Sendo ajudado mais de sua estrela,

Desbarata um exército potente

(Sentiu-o a vila e viu-o a serra dela),

Que a socorrê-la vinha diligente

Pela fralda da serra, descuidado

Do temeroso encontro inopinado.

«O Rei de Badajoz era, alto Mouro,

Com quatro mil cavalos furiosos,

Inúmeros peões, de armas e de ouro

Guarnecidos, guerreiros e lustrosos;

Mas, qual no mês de Maio o bravo touro,

Cos ciúmes da vaca, arreceosos,

Sentindo gente, o bruto e cego amante

Salteia o descuidado caminhante:

«Destarte Afonso, súbito mostrado,

Na gente dá, que passa bem segura;

Fere, mata, derriba, denodado;

Foge o Rei Mouro e só da vida cura;

Dum pânico terror todo assombrado,

Só de segui-lo o exército procura;

Sendo estes que fizeram tanto abalo

Nô mais que só sessenta de cavalo.

«Logo segue a vitória, sem tardança,

O grão Rei incansábil, ajuntando

Gentes de todo o Reino, cuja usança

Era andar sempre terras conquistando.

Cercar vai Badajoz e logo alcança

O fim de seu desejo, pelejando

Com tanto esforço e arte e valentia,

Que a fez fazer às outras companhia.

«Mas o alto Deus, que pera longe guarda

O castigo daquele que o merece,

Ou pera que se emende, às vezes tarda,

Ou por segredos que homem não conhece

Se até qui sempre o forte Rei resguarda

Dos perigos a que ele se oferece,

Agora lhe não deixa ter defesa

Da maldição da mãe que estava presa:

«Que, estando na cidade que cercara,

Cercado nela foi dos Lioneses,

Porque a conquista dela lhe tomara,

De Lião sendo, e não dos Portugueses.

A pertinácia aqui lhe custa cara,

Assi como acontece muitas vezes,

Que em ferros quebra as pernas, indo aceso

À batalha, onde foi vencido e preso.

«Ó famoso Pompeio, não te pene

De teus feitos ilustres a ruína,

Nem ver que a justa Némesis ordene

Ter teu sogro de ti vitória dina,

Posto que o frio Fásis ou Siene,

Que pera nenhum cabo a sombra inclina,

O Bootes gelado e a linha ardente

Temessem o teu nome geralmente.

«Posto que a rica Arábia e que os feroces

Heníocos e Colcos, cuja fama

O Véu dourado estende, e os Capadoces

E Judeia, que um Deus adora e ama,

E que os moles Sofenos e os atroces

Cilícios, com a Arménia, que derrama

As águas dos dous rios cuja fonte

Está noutro mais alto e santo monte,

«E posto, enfim, que desd’o mar de Atlante

Até o Cítico Tauro, monte erguido,

Já vencedor te vissem, não te espante

Se o campo Emátio só te viu vencido;

Porque Afonso verás, soberbo e ovante,

Tudo render e ser despois rendido.

Assi o quis o Conselho alto, celeste,

Que vença o sogro a ti e o genro a este!

«Tornado o Rei sublime, finalmente,

Do divino Juízo castigado;

Despois que em Santarém soberbamente,

Em vão, dos Sarracenos foi cercado,

E despois que do mártire Vicente

O santíssimo corpo venerado

Do Sacro Promontório conhecido

À cidade Ulisseia foi trazido;

«Por que levasse avante seu desejo,

Ao forte filho manda o lasso velho

Que às terras se passasse d’Alentejo,

Com gente e co belígero aparelho.

Sancho, d’esforço e d’ânimo sobejo,

Avante passa e faz correr vermelho

O rio que Sevilha vai regando,

Co sangue Mauro, bárbaro e nefando.

«E, com esta vitória cobiçoso,

Já não descansa o moço, até que
veja

Outro estrago como este, temeroso,

No Bárbaro que tem cercado Beja.

Não tarda muito o Príncipe ditoso

Sem ver o fim daquilo que deseja.

Assi estragado, o Mouro na vingança

De tantas perdas põe sua esperança.

«Já se ajuntam do monte a quem Medusa

O corpo fez perder que teve o Céu;

Já vêm do promontório de Ampelusa

E do Tinge, que assento foi de Anteu.

O morador de Abila não se escusa,

Que também com suas armas se moveu,

Ao som da Mauritana e ronca tuba,

Todo o Reino que foi do nobre Juba.

«Entrava, com toda esta companhia,

O Miralmomini em Portugal;

Treze Reis mouros leva de valia,

Entre os quais tem o ceptro Imperial.

E assi, fazendo quanto mal podia,

O que em partes podia fazer mal,

Dom Sancho vai cercar em Santarém;

Porém não lhe sucede muito bem.

«Dá-lhe combates ásperos, fazendo

Ardis de guerra mil, o Mouro iroso;

Não lhe aproveita já trabuco horrendo,

Mina secreta, aríete forçoso;

Porque o filho de Afonso, não perdendo

Nada do esforço e acordo generoso,

Tudo provê com ânimo e prudência,

Que em toda a parte há esforço e resistência.

«Mas o velho, a quem tinham já obrigado

Os trabalhosos anos ao sossego,

Estando na cidade cujo prado

Enverdecem as águas do Mondego,

Sabendo como o filho está cercado,

Em Santarém, do Mauro povo cego,

Se parte diligente da cidade;

Que não perde a presteza co a idade.

«E co a famosa gente, à guerra usada,

Vai socorrer o filho; e assi ajuntados,

A Portuguesa fúria costumada

Em breve os Mouros tem desbaratados.

A campina, que toda está coalhada

De marlotas, capuzes variados,

De cavalos, jaezes, presa rica,

De seus senhores mortos cheia fica.

«Logo todo o restante se partiu

De Lusitânia, postos em fugida;

O Miralmomini só não fugiu,

Porque, antes de fugir, lhe foge a vida.

A Quem lhe esta vitória permitiu

Dão louvores e graças sem medida;

Que, em casos tão estranhos, claramente

Mais peleja o favor de Deus que a gente.

«De tamanhas vitórias triunfava

O velho Afonso, Príncipe subido,

Quando quem tudo enfim vencendo andava,

Da larga e muita idade foi vencido.

A pálida doença lhe tocava,

Com fria mão, o corpo enfraquecido;

E pagaram seus anos, deste jeito,

À triste Libitina seu direito.

«Os altos promontórios o choraram,

E dos rios as águas saüdosas

Os semeados campos alagaram,

Com lágrimas correndo piadosas;

Mas tanto pelo mundo se alargaram,

Com fama suas obras valerosas,

Que sempre no seu reino chamarão

«Afonso! Afonso!» os ecos; mas em vão.

«Sancho, forte mancebo, que ficara

Imitando seu pai na valentia,

E que em sua vida já se exprimentara

Quando o Bétis de sangue se tingia

E o bárbaro poder desbaratara

Do Ismaelita Rei de Andaluzia,

E mais quando os que Beja em vão cercaram

Os golpes de seu braço em si provaram;

«Despois que foi por Rei alevantado,

Havendo poucos anos que reinava,

A cidade de Silves tem cercado,

Cujos campos o Bárbaro lavrava.

Foi das valentes gentes ajudado

Da Germânica armada que passava,

De armas fortes e gente apercebida,

A recobrar Judeia já perdida.

«Passavam a ajudar na santa empresa

O roxo Federico, que moveu

O poderoso exército, em defesa

Da cidade onde Cristo padeceu,

Quando Guido, co a gente em sede acesa,

Ao grande Saladino se rendeu,

No lugar onde aos Mouros sobejavam

As águas que os de Guido desejavam.

«Mas a fermosa armada, que viera

Por contraste de vento àquela parte,

Sancho quis ajudar na guerra fera,

Já que em serviço vai do santo Marte.

Assi como a seu pai acontecera

Quando tomou Lisboa, da mesma arte

Do Germano ajudado, Silves toma

E o bravo morador destrui e doma.

«E se tantos troféus do Mahometa

Alevantando vai, também do forte

Lionês não consente estar quieta

A terra, usada aos casos de Mavorte,

Até que na cerviz seu jugo meta

Da soberba Tuí, que a mesma sorte

Viu ter a muitas vilas suas vizinhas,

Que por armas tu, Sancho, humildes tinhas.

«Mas, entre tantas palmas salteado

Da temerosa morte, fica herdeiro

Um filho seu, de todos estimado,

Que foi segundo Afonso e Rei terceiro.

No tempo deste, aos Mauros foi tomado

Alcáçare do Sal, por derradeiro;

Porque dantes os Mouros o tomaram,

Mas agora estruídos o pagaram.

Morto despois Afonso, lhe sucede

Sancho segundo, manso e descuidado;

Que tanto em seus descuidos se desmede

Que de outrem quem mandava era mandado.

De governar o Reino, que outro pede,

Por causa dos privados foi privado,

Porque, como por eles se regia,

Em todos os seus vícios consentia.

«Não era Sancho, não, tão desonesto

Como Nero, que um moço recebia

Por mulher e, despois, horrendo incesto

Com a mãe Agripina cometia;

Nem tão cruel às gentes e molesto

Que a cidade queimasse onde vivia;

Nem tão mau como foi Heliogabalo,

Nem como o mole Rei Sardanapalo.

«Nem era o povo seu tiranizado,

Como Sicília foi de seus tiranos;

Nem tinha, como Fálaris, achado

Género de tormentos inumanos;

Mas o Reino, de altivo e costumado

A senhores em tudo soberanos,

A Rei não obedece nem consente

Que não for mais que todos excelente.

«Por esta causa, o Reino governou

O Conde Bolonhês, despois alçado

Por Rei, quando da vida se apartou

Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado.

Este, que Afonso o Bravo se chamou,

Despois de ter o Reino segurado,

Em dilatá-lo cuida, que em terreno

Não cabe o altivo peito, tão pequeno.

«Da terra dos Algarves, que lhe fora

Em casamento dada, grande parte

Recupera co braço, e deita fora

O Mouro, mal querido já de Marte.

Este de todo fez livre e senhora

Lusitânia, com força e bélica arte,

E acabou de oprimir a nação forte,

Na terra que aos de Luso coube em sorte.

«Eis despois vem Dinis, que bem parece

Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,

Com quem a fama grande se escurece

Da liberalidade Alexandrina.

Co este o Reino próspero florece

(Alcançada já a paz áurea divina)

Em constituições, leis e costumes,

Na terra já tranquila claros lumes.

«Fez primeiro em Coimbra exercitar-se

O valeroso ofício de Minerva;

E de Helicona as Musas fez passar-se

A pisar de Mondego a fértil erva.

Quanto pode de Atenas desejar-se

Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.

Aqui as capelas dá tecidas de ouro,

Do bácaro e do sempre verde louro.

«Nobres vilas de novo edificou,

Fortalezas, castelos mui seguros,

E quási o Reino todo reformou

Com edifícios grandes e altos muros;

Mas despois que a dura Átropos cortou

O fio de seus dias já maduros,

Ficou-lhe o filho pouco obediente,

Quarto Afonso, mas forte e excelente.

«Este sempre as soberbas Castelhanas

Co peito desprezou firme e sereno,

Porque não é das forças Lusitanas

Temer poder maior, por mais pequeno;

Mas porém, quando as gentes Mauritanas,

A possuir o Hespérico terreno,

Entraram pelas terras de Castela,

Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.

«Nunca com Semirâmis gente tanta

Veio os campos Idáspicos enchendo,

Nem Átila, que Itália toda espanta,

Chamando-se de Deus açoute horrendo,

Gótica gente trouxe tanta, quanta

Do Sarraceno bárbaro, estupendo,

Co poder excessivo de Granada,

Foi nos campos Tartés[s]ios ajuntada.

«E, vendo o Rei sublime Castelhano

A força inexpugnábil, grande e forte,

Temendo mais o fim do povo Hispano,

Já perdido üa vez, que a própria morte,

Pedindo ajuda ao forte Lusitano

Lhe mandava a caríssima consorte,

Mulher de quem a manda e filha amada

Daquele a cujo Reino foi mandada.

«Entrava a fermosíssima Maria

Polos paternais paços sublimados,

Lindo o gesto, mas fora de alegria,

E os seus olhos em lágrimas banhados;

Os cabelos angélicos trazia

Pelos ebúrneos ombros espalhados.

Diante do pai ledo, que a agasalha,

Estas palavras tais, chorando, espalha:

– «Quantos povos a terra produziu

De Africa toda, gente fera e estranha,

O grão Rei de Marrocos conduziu

Pera vir possuir a nobre Espanha:

Poder tamanho junto não se viu

Despois que o salso mar a terra banha

Trazem ferocidade e furor tanto

Que a vivos medo e a mortos faz espanto!

«Aquele que me deste por marido,

Por defender sua terra amedrontada,

Co pequeno poder, oferecido

Ao duro golpe está da Maura espada;

E, se não for contigo socorrido,

Ver-me-ás dele e do Reino ser privada;

Viúva e triste e posta em vida escura,

Sem marido, sem Reino e sem ventura.

«Portanto, ó Rei, de quem com puro medo

O corrente Muluca se congela,

Rompe toda a tardança, acude cedo

À miseranda gente de Castela.

Se esse gesto, que mostras claro e ledo,

De pai o verdadeiro amor assela,

Acude e corre, pai, que, se não corres,

Pode ser que não aches quem socorres.»

«Não de outra sorte a tímida Maria

Falando está que a triste Vénus, quando

A Júpiter, seu pai, favor pedia

Pera Eneias, seu filho, navegando;

Que a tanta piedade o comovia

Que, caído das mãos o raio infando,

Tudo o clemente Padre lhe concede,

Pesando-lhe do pouco que lhe pede.

«Mas já cos esquadrões da gente armada

Os Eborenses campos vão coalhados;

Lustra co Sol o arnês, a lança, a espada;

Vão rinchando os cavalos jaezados;

A canora trombeta embandeirada

Os corações, à paz acostumados,

Vai às fulgentes armas incitando,

Polas concavidades retumbando

«Entre todos no meio se sublima,

Das insígnias Reais acompanhado,

O valeroso Afonso, que por cima

De todos leva o colo alevantado,

E sòmente co gesto esforça e anima

A qualquer coração amedrontado.

Assi entra nas terras de Castela

Com a filha gentil, Rainha dela.

«Juntos os dous Afonsos, finalmente

Nos campos de Tarifa estão defronte

Da grande multidão da cega gente,

Pera quem são pequenas campo e monte.

Não há peito tão alto e tão potente

Que de desconfiança não se afronte,

Enquanto não conheça e claro veja

Que co braço dos seus Cristo peleja.

«Estão de Agar os netos quási rindo

Do poder dos Cristãos, fraco e pequeno,

As terras como suas repartindo,

Antemão, entre o exército Agareno,

Que, com título falso, possuindo

Está o famoso nome Sarraceno.

Assi também, com falsa conta e nua,

À nobre terra alheia chamam sua.

«Qual o membrudo e bárbaro Gigante,

Do Rei Saul, com causa tão temido,

Vendo o Pastor inerme estar diante,

Só de pedras e esforço apercebido,

Com palavras soberbas, o arrogante,

Despreza o fraco moço mal vestido,

Que, rodeando a funda, o desengana

(Quanto mais pode a Fé que a força humana!)

«Destarte o Mouro pérfido despreza

O poder dos Cristãos, e não entende

Que está ajudado da alta Fortaleza

A quem o Inferno horrífico se rende.

Co ela o Castelhano, e com destreza,

De Marrocos o Rei comete e ofende;

O Português, que tudo estima em nada,

Se faz temer ao Reino de Granada.

«Eis as lanças e espadas retiniam

Por cima dos arneses – bravo estrago! -;

Chamam (segundo as Leis que ali seguiam),

Uns Mafamede e os outros Santiago.

Os feridos com grita o céu feriam,

Fazendo de seu sangue bruto lago,

Onde outros, meios mortos, se afogavam,

Quando do ferro as vidas escapavam.

«Com esforço tamanho estrui e mata

O Luso ao Granadil, que em pouco espaço

Totalmente o poder lhe desbarata,

Sem lhe valer defesa ou peito de aço.

De alcançar tal vitória tão barata

Índa não bem contente o forte braço,

Vai ajudar ao bravo Castelhano,

Que pelejando está co Mauritano.

«Já se ia o Sol ardente recolhendo

Pera a casa de Tétis, e inclinado

Pera o Ponente, o véspero trazendo,

Estava o claro dia memorado,

Quando o poder do Mauro, grande e horrendo,

Foi pelos fortes Reis desbaratado,

Com tanta mortindade que a memória

Nunca no mundo viu tão grão vitória.

«Não matou a quarta parte o forte Mário

Dos que morreram neste vencimento,

Quando as águas co sangue do adversário

Fez beber ao exército sedento;

Nem o Peno, asperíssimo contrário

Do Romano poder, de nascimento,

Quando tantos matou da ilustre Roma,

Que alqueires três de anéis dos mortos toma.

«E se tu tantas almas só pudeste

Mandar ao Reino escuro de Cocito,

Quando a santa Cidade desfizeste

Do povo pertinaz no antigo rito,

Permissão e vingança foi celeste,

E não força de braço, ó nobre
Tito,

Que assi dos Vates foi profetizado

E despois por JESU certificado.

«Passada esta tão prospera vitória,

Tornado Afonso à Lusitana terra,

A se lograr da paz com tanta glória

Quanta soube ganhar na dura guerra,

O caso triste, e dino da memória

Que do sepulcro os homens desenterra.

Aconteceu da mísera e mesquinha

Que despois de ser morta foi Rainha.

«Tu só, tu, poro Amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tua

Nem com lágrimas tristes se mitiga,

É porque queres, áspero e tirano,

Tuas aras banhar em sangue humano.

«Estavas, linda lnês, posta em sossego,

De teus anos colhendo doce fruto,

Naquele engano da alma, ledo e cego,

Que a Fortuna não deixa durar muito,

Nos saüdosos campos do Mondego,

De teus fermosos olhos nunca enxuto,

Aos montes ensinando e às ervinhas

O nome que no peito escrito tinhas.

«Do teu Príncipe ali te respondiam

As lembranças que na alma lhe moravam,

Que sempre ante seus olhos te traziam,

Quando dos teus fermosos se apartavam;

De noite, em doces sonhos que mentiam,

De dia, em pensamentos que voavam;

E quanto, enfim, cuidava e quanto via

Eram tudo memórias de alegria.

«De outras belas senhoras e Princesas

Os desejados tálamos enjeita,

Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas

Quando um gesto suave te sujeita.

Vendo estas namoradas estranhezas,

O velho pai sesudo, que respeita

O murmurar do povo e a fantasia

Do filho, que casar-se não queria,

«Tirar Inês ao mundo determina,

Por lhe tirar o filho que tem preso,

Crendo co sangue só da morte indina

Matar do firme amor o fogo aceso.

Que furor consentiu que a espada fina

Que pôde sustentar o grande peso

Do furor Mauro, fosse alevantada

Contra üa fraca dama delicada?

«Traziam-a os horríficos algozes

Ante o Rei, já movido a piedade;

Mas o povo, com falsas e ferozes

Razões, à morte crua o persuade.

Ela, com tristes e piedosas vozes,

Saídas só da mágoa e saüdade

Do seu Príncipe e filhos, que deixava,

Que mais que a própria morte a magoava,

«Pera o céu cristalino alevantando,

Com lágrimas, os olhos piedosos

(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando

Um dos duros ministros rigorosos);

E despois nos mininos atentando,

Que tão queridos tinha e tão mimosos,

Cuja orfindade como mãe temia,

Pera o avô cruel assi dizia:

«Se já nas brutas feras, cuja mente

Natura fez cruel de nascimento,

E nas aves agrestes, que somente

Nas rapinas aéreas têm o intento,

Com pequenas crianças viu a gente

Terem tão piadoso sentimento

Como co a mãe de Nino já mostraram,

E cos irmãos que Roma edificaram:

«Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito

(Se de humano é matar üa donzela,

Fraca e sem força, só por ter subjeito

O coração a quem soube vencê-la),

A estas criancinhas tem respeito,

Pois o não tens à morte escura dela;

Mova-te a piedade sua e minha,

Pois te não move a culpa que não tinha.

«E se, vencendo a Maura resistência,

A morte sabes dar com fogo e ferro,

Sabe também dar vida com clemência

A quem pera perdê-la não fez erro.

Mas, se to assi merece esta inocência,

Põe-me em perpétuo e mísero desterro,

Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,

Onde em lágrimas viva eternamente.

«Põe-me onde se use toda a feridade,

Entre liões e tigres, e verei

Se neles achar posso a piedade

Que entre peitos humanos não achei.

Ali, co amor intrínseco e vontade

Naquele por quem mouro, criarei

Estas relíquias suas, que aqui viste,

Que refrigério sejam da mãe triste.»

Queria perdoar-lhe o Rei benino,

Movido das palavras que o magoam;

Mas o pertinaz povo e seu destino

(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.

Arrancam das espadas de aço fino

Os que por bom tal feito ali apregoam.

Contra üa dama, ó peitos carniceiros,

Feros vos amostrais – e cavaleiros?

«Qual contra a linda moça Policena,

Consolação extrema da mãe velha,

Porque a sombra de Aquiles a condena,

Co ferro o duro Pirro se aparelha;

Mas ela, os olhos com que o ar serena

(Bem como paciente e mansa ovelha)

Na mísera mãe postos, que endoudece,

Ao duro sacrifício se oferece:

«Tais contra Inês os brutos matadores,

No colo de alabastro, que sustinha

As obras com que Amor matou de amores

Aquele que despois a fez Rainha,

As espadas banhando, e as brancas flores,

Que ela dos olhos seus regadas tinha,

Se encarniçavam, férvidos e irosos

No futuro castigo não cuidosos.

«Bem puderas, ó Sol, da vista destes,

Teus raios apartar aquele dia,

Como da seva mesa de Tiestes,

Quando os filhos por mão de Atreu comia!

Vós, ó côncavos vales, que pudestes

A voz extrema ouvir da boca fria,

O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,

Por muito grande espaço repetistes!

«Assi como a bonina, que cortada

Antes do tempo foi, cândida e bela,

Sendo das mãos lacivas maltratada

Da minina que a trouxe na capela,

O cheiro traz perdido e a cor murchada:

Tal está, morta, a pálida donzela,

Secas do rosto as rosas e perdida

A branca e viva cor, co a doce vida.

«As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram,

E, por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram.

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram.

Vede que fresca fonte rega as flores,

Que lágrimas são a água e o nome Amores!

«Não correu muito tempo que a vingança

Não visse Pedro das mortais feridas,

Que, em tomando do Reino a governança,

A tomou dos fugidos homicidas;

Do outro Pedro cruíssimo os alcança,

Que ambos, imigos das humanas vidas,

O concerto fizeram, duro e injusto,

Que com Lépido e António fez Augusto.

«Este, castigador foi rigoroso

De latrocínios, mortes e adultérios;

Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,

Eram os seus mais certos refrigérios.

As cidades guardando, justiçoso,

De todos os soberbos vitupérios,

Mais ladrões, castigando, à morte deu,

Que o vagabundo Alcides ou Teseu.

«Do justo e duro Pedro nasce o brando

(Vede da natureza o desconcerto!),

Remisso e sem cuidado algum, Fernando,

Que todo o Reino pôs em muito aperto;

Que, vindo o Castelhano devastando

Às terras sem defesa, esteve perto

De destruir-se o Reino totalmente;

Que um fraco Rei faz fraca a forte gente.

«Ou foi castigo claro do pecado

De tirar Lianor a seu marido

E casar-se com ela, de enlevado

Num falso parecer mal entendido,

Ou foi que o coração, sujeito e dado

Ao vício vil, de quem se viu rendido,

Mole se fez e fraco; e bem parece

Que um baxo amor os fortes enfraquece.

«Do pecado tiveram sempre a pena

Muitos, que Deus o quis e permitiu:

Os que foram roubar a bela Helena,

E com Ápio também Tarquino o viu.

Pois por quem David Santo se condena?

Ou quem o Tribo ilustre destruiu

De Benjamim? Bem claro no-lo ensina

Por Sarra Faraó, Siquém por Dina.

«E pois, se os peitos fortes enfraquece

Um inconcesso amor desatinado,

Bem no filho de Almena se parece

Quando em Ônfale andava transformado.

De Marco António a fama se escurece

Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado.

Tu também, Peno próspero, o sentiste

Despois que üa moça vil na Apúlia viste.

«Mas quem pode livrar-se, porventura,

Dos laços que Amor arma brandamente

Entre as rosas e a neve humana pura,

O ouro e o alabastro transparente?

Quem, de üa peregrina fermosura,

De um vulto de Medusa propriamente,

Que o coração converte, que tem preso,

Em pedra, não, mas em desejo aceso?

«Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,

üa suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

Desculpado por certo está Fernando,

Pera quem tem de amor experiência;

Mas antes, tendo livre a fantasia,

Por muito mais culpado o julgaria.

Canto IV

DESPOIS de procelosa tempestade,

Nocturna sombra e sibilante vento,

Traz a manhã serena claridade,

Esperança de porto e salvamento;

Aparta o Sol a negra escuridade,

Removendo o temor ao pensamento:

Assi no Reino forte aconteceu

Despois que o Rei Fernando faleceu.

«Porque, se muito os nossos desejaram

Quem os danos e ofensas vá vingando

Naqueles que tão bem se aproveitaram

Do descuido remisso de Fernando,

Despois de pouco tempo o alcançaram,

Joane, sempre ilustre, alevantando

Por Rei, como de Pedro único herdeiro

(Ainda que bastardo) verdadeiro.

«Ser isto ordenação dos Céus divina

Por sinais muito claros se mostrou~

Quando em Évora a voz de üa minina,

Ante tempo falando, o nomeou.

E, como causa, enfim, que o Céu destina,

No berço o corpo e a voz alevantou:

– «Portugal, Portugal (alçando a mão,

Disse) polo Rei novo, Dom João!»

«Alteradas então do Reino as gentes

Co ódio que ocupado os peitos tinha,

Absolutas cruezas e evidentes

Faz do povo o furor, por onde vinha;

Matando vão amigos e parentes

Do adúltero Conde e da Rainha,

Com quem sua incontinência desonesta

Mais (despois de viúva) manifesta.

«Mas ele, enfim, com causa desonrado,

Diante dela a ferro frio morre,

De outros muitos na morte acompanhado,

Que tudo o fogo erguido queima e corre:

Quem, como Astianás, precipitado,

Sem lhe valerem ordens, de alta torre;

A quem ordens, nem aras, nem respeito;

Quem nu por ruas, e em pedaços feito.

«Podem-se pôr em longo esquecimento

As cruezas mortais que Roma viu,

Feitas do feroz Mário e do cruento

Cila, quando o contrário lhe fugiu.

Por isso Lianor, que o sentimento

Do morto Conde ao mundo descobriu,

Faz contra Lusitânia vir Castela,

Dizendo ser sua filha herdeira dela.

«Beatriz era a filha, que casada

Co Castelhano está que o Reino pede,

Por filha de Fernando reputada,

Se a corrompida fama lho concede.

Com esta voz Castela alevantada,

Dizendo que esta filha ao pai sucede,

Suas forças ajunta, pera as guerras,

De várias regiões e várias terras.

«Vêm de toda a província que de um Brigo

(Se foi) já teve o nome derivado;

Das terras que Fernando e que Rodrigo

Ganharam do tirano e Mauro estado.

Não estimam das armas o perigo

Os que cortando vão co duro arado

Os campos Lioneses, cuja gente

Cos Mouros foi nas armas excelente.

«Os Vândalos, na antiga valentia

Ainda confiados, se ajuntavam

Da cabeça de toda Andaluzia,

Que do Guadalquibir as águas lavam.

A nobre Ilha também se apercebia

Que antigamente os Tírios habitavam,

Trazendo por insígnias verdadeiras

As Hercúleas colunas nas bandeiras.

«Também vêm lá do Reino de Toledo,

Cidade nobre e antiga, a quem cercando

O Tejo em torno vai, suave e ledo,

Que das serras de Conca vem manando.

A vós outros também não tolhe o medo

Ó sórdidos Galegos, duro bando,

Que, pera resistirdes, vos armastes,

Àqueles cujos golpes já provastes.

«Também movem da guerra as negras fúrias

A gente Bizcainha, que carece

De polidas razões, e que as injúrias

Muito mal dos estranhos compadece.

A terra de Guipúscua e das Astúrias,

Que com minas de ferro se ennobrece,

Armou dele os soberbos moradores,

Pera ajudar na guerra a seus senhores.

«Joane, a quem do peito o esforço crece,

Como a Sansão Hebreio da guedelha,

Posto que tudo pouco lhe parece,

Cos poucos do seu Reino se aparelha;

E, não porque conselho lhe falece,

Cos principais senhores se aconselha,

Mas só por ver das gentes as sentenças,

Que sempre houve entre muitos diferenças.

«Não falta com razões quem desconcerte

Da opinião de todos, na vontade;

Em quem o esforço antigo se converte

Em desusada e má deslealdade,

Podendo o temor mais, gelado, inerte,

Que a própria e natural fidelidade.

Negam o Rei e a Pátria e, se convém,

Negarão (como Pedro) o Deus que têm.

«Mas nunca foi que este erro se sentisse

No forte Dom Nuno Álveres; mas antes,

Posto que em seus irmãos tão claro o visse,

Reprovando as vontades inconstantes,

Àquelas duvidosas gentes disse,

Com palavras mais duras que elegantes,

A mão na espada, irado e não facundo,

Ameaçando a terra, o mar e o mundo:

– «Como? Da gente ilustre Portuguesa

Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?

Como? Desta província, que princesa

Foi das gentes na guerra em toda parte,

Há-de sair quem negue ter defesa?

Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte

De Português, e por nenhum respeito

O próprio Reino queira ver sujeito?

«Como? Não sois vós inda os descendentes

Daqueles que, debaixo da bandeira

Do grande Henriques, feros e valentes,

Vencestes esta gente tão guerreira,

Quando tantas bandeiras, tantas gentes

Puseram em fugida, de maneira

Que sete ilustres Condes lhe trouxeram

Presos, afora a presa que tiveram?

«Com quem foram contino sopeados

Estes, de quem o estais agora vós,

Por Dinis e seu filho sublimados,

Senão cos vossos fortes pais e avôs?

Pois se, com seus descuidos ou pecados,

Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,

Torne-vos vossas forças o Rei novo,

Se é certo que co Rei se muda o povo.

«Rei tendes tal que, se o valor tiverdes

Igual ao Rei que agora alevantastes,

Desbaratareis tudo o que quiserdes,

Quanto mais a quem já desbaratastes.

E se com isto, enfim, vos não moverdes

Do penetrante medo que tomastes,

Atai as mãos a vosso vão receio,

Que eu só resistirei ao jugo alheio.

«Eu só, com meus vassalos e com esta

(E dizendo isto arranca meia espada),

Defenderei da força dura e infesta

A terra nunca de outrem sojugada.

Em virtude do Rei, da pátria mesta,

Da lealdade já por vós negada,

Vencerei não só estes adversários,

Mas quantos a meu Rei forem contrários!»

«Bem como entre os mancebos recolhidos

Em Canúsio, relíquias sós de Canas,

Já pera se entregar quási movidos

À fortuna das forças Africanas,

Cornélio moço os faz que, compelidos

Da sua espada, jurem que as Romanas

Armas não deixarão, enquanto a vida

Os não deixar ou nelas for perdida:

«Destarte a gente força e esforça Nuno,

Que, com lhe ouvir as últimas razões,

Removem o temor frio, importuno,

Que gelados lhe tinha os corações.

Nos animais cavalgam de Neptuno,

Brandindo e volteando arremessões;

Vão correndo e gritando, a boca aberta:

– «Viva o famoso Rei que nos liberta!»

«Das gentes populares, uns aprovam

A guerra com que a pátria se sustinha;

Uns as armas alimpam e renovam,

Que a ferrugem da paz gastadas tinha:

Capacetes estofam, peitos provam,

Arma-se cada um como convinha;

Outros fazem vestidos de mil cores,

Com letras e tenções de seus amores.

«Com toda esta lustrosa companhia

Joane forte sai da fresca Abrantes,

Abrantes, que também da fonte fria

Do Tejo logra as águas abundantes.

Os primeiros armígeros regia

Quem pera reger era os mui possantes

Orientais exércitos sem conto

Com que passava Xerxes o Helesponto;

«Dom Nuno Alveres digo: verdadeiro

Açoute de soberbos Castelhanos,

Como já o fero Huno o foi primeiro

Pera Franceses, pera Italianos.

Outro também, famoso cavaleiro,

Que a ala direita tem dos Lusitanos,

Apto pera mandá-los e regê-los,

Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.

«E da outra ala, que a esta corresponde,

Antão Vasques de Almada é capitão,

Que despois foi de Abranches nobre Conde;

Das gentes vai regendo a sestra mão.

Logo na retaguarda não se esconde

Das Quinas e Castelos o pendão,

Com Joane, Rei forte em toda parte,

Que escurecendo o preço vai de Marte.

«Estavam pelos muros, temerosas

E de um alegre medo quási frias,

:Rezando, as mães, irmãs, damas e esposas,

Prometendo jejuns e romarias.

Já chegam as esquadras belicosas

Defronte das imigas companhias,

Que com grita grandíssima os recebem;

E todas grande dúvida concebem.

«Respondem as trombetas mensageiras,

Pífaros sibilantes e atambores;

Alférezes volteiam as bandeiras,

Que variadas são de muitas cores.

Era no seco tempo que nas eiras

Ceres o fruto deixa aos lavradores;

Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto;

Baco das uvas tira o doce mosto.

«Deu sinal a trombeta Castelhana,

Horrendo, fero, ingente e temeroso;

Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana

Atrás tornou as ondas de medroso.

Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana;

Correu ao mar o Tejo duvidoso;

E as mães, que o som terríbil escuitaram,

Aos peitos os filhinhos apertaram.

«Quantos rostos ali se vêm sem cor,

Que ao coração acode o sangue amigo!

Que, nos perigos grandes, o temor

É maior muitas vezes que o perigo.

E se o não é, parece-o; que o furor

De ofender ou vencer o duro imigo

Faz não sentir que é perda grande e rara

Dos membros corporais, da vida cara.

«Começa-se a travar a incerta guerra:

De ambas partes se move a primeira ala;

Uns leva a defensão da própria terra,

Outros as esperanças de ganhá-la.

Logo o grande Pereira, em quem se encerra

Todo o valor, primeiro se assinala:

Derriba e encontra e a terra enfim semeia,

Dos que a tanto desejam, sendo alheia.

«Já pelo espesso ar os estridentes

Farpões, setas e vários tiros voam;

Debaxo dos pés duros dos ardentes

Cavalos treme a terra, os vales soam.

Espedaçam-se as lanças, e as frequentes

Quedas co as duras armas tudo atroam.

Recrecem os imigos sobre a pouca

Gente do fero Nuno, que os apouca.

«Eis ali seus irmãos contra ele vão

(Caso feio e cruel!); mas não se espanta,

Que menos é querer matar o irmão,

Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta.

Destes arrenegados muitos são

No primeiro esquadrão, que se adianta

Contra irmãos e parentes (caso estranho),

Quais nas guerras civis de Júlio [ e ] Magno

«O tu, Sertório, ó nobre Coriolano,

Catilina, e vós outros dos antigos

Que contra vossas pátrias com profano

Coração vos fizestes inimigos:

E se lá no reino escuro de Sumano

Receberdes gravíssimos castigos,

Dizei-lhe que também dos Portugueses

Alguns tredores houve algüas vezes.

«Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,

Tantos dos inimigos a eles vão!

Está ali Nuno, qual pelos outeiros

De Ceita está o fortíssimo lião

Que cercado se vê dos cavaleiros

Que os campos vão correr de Tutuão:

Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,

Torvado um pouco está, mas não medroso;

«Com torva vista os vê, mas a natura

Ferina e a ira não lhe compadecem

Que as costas dê, mas antes na espessura

Das lanças se arremessa, que recrecem.

Tal está o cavaleiro, que a verdura

Tinge co sangue alheio; ali perecem

Alguns dos seus, que o ânimo valente

Perde a virtude contra tanta gente.

«Sentiu Joane a afronta que passava

Nuno, que, como sábio capitão,

Tudo corria e via e a todos dava,

Com presença e palavras, coração.

Qual parida lioa, fera e brava,

Que os filhos, que no ninho sós estão,

Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,

O pastor de Massília lhos furtara,

«Corre raivoso e freme e com bramidos

Os montes Sete Irmãos atroa e abala:

Tal Joane, com outros escolhidos

Dos seus, correndo acode à primeira ala:

– «O fortes companheiros, ó subidos

Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,

Defendei vossas terras, que a esperança

Da liberdade está na nossa lança!

«Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro,

Que entre as lanças e setas e os arneses

Dos inimigos corro e vou primeiro;

Pelejai, verdadeiros Portugueses! »

Isto disse o magnânimo guerreiro

E, sopesando a lança quatro vezes,

Com força tira; e deste único tiro

Muitos lançaram o último suspiro.

«Porque eis os seus, acesos novamente

Dua nobre vergonha e honroso fogo,

Sobre qual mais, com ânimo valente,

Perigos vencerá do Márcio jogo,

Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente;

Rompem malhas primeiro e peitos logo.

Assi recebem junto e dão feridas,

Como a quem já não dói perder as vidas.

«A muitos mandam ver o Estígio lago,

Em cujo corpo a morte e o ferro entrava.

O Mestre morre ali de Santiago,

Que fortìssimamente pelejava;

Morre também, fazendo grande estrago,

Outro Mestre cruel de Calatrava.

Os Pereiras também, arrenegados,

Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.

«Muitos também do vulgo vil, sem nome,

Vão, e também dos nobres, ao Profundo,

Onde o trifauce Cão perpétua fome

Tem das almas que passam deste mundo.

E por que mais aqui se amanse e dome

A soberba do imigo furibundo,

A sublime bandeira Castelhana

Foi derribada òs pés da Lusitana.

«Aqui a fera batalha se encruece

Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;

A multidão da gente que perece

Tem as flores da própria cor mudadas.

Já as costas dão e as vidas; já falece

O furor e sobejam as lançadas;

Já de Castela o Rei desbaratado

Se vê e de seu propósito mudado.

«O campo vai deixando ao vencedor,

Contente de lhe não deixar a vida.

Seguem-no os que ficaram, e o temor

Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.

Encobrem no profundo peito a dor

Da morte, da fazenda despendida,

Da mágoa, da desonra e triste nojo

De ver outrem triunfar de seu despojo.

«Alguns vão maldizendo e blasfemando

Do primeiro que guerra fez no mundo;

Outros a sede dura vão culpando

Do peito cobiçoso e sitibundo,

Que, por tomar o alheio, o miserando

Povo aventura às penas do Profundo,

Deixando tantas mães, tantas esposas,

Sem filhos, sem maridos, desditosas.

«O vencedor Joane esteve os dias

Costumados no campo, em grande glória;

Com ofertas, despois, e romarias,

As graças deu a Quem lhe deu vitória.

Mas Nuno, que não quer por outras vias

Entre as gentes deixar de si memória

Senão por armas sempre soberanas,

Pera as terras se passa Transtaganas.

«Ajuda-o seu destino de maneira

Que fez igual o efeito ao pensamento,

Porque a terra dos Vândalos, fronteira,

Lhe concede o despojo e o vencimento.

Já de Sevilha a Bética bandeira,

E de vários senhores, num momento

Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa,

Obrigados da força Portuguesa.

«Destas e outras vitórias longamente

Eram os Castelhanos oprimidos,

Quando a paz, desejada já da gente,

Deram os vencedores aos vencidos,

Despois que quis o Padre omnipotente

Dar os Reis inimigos por maridos

As duas Ilustríssimas Inglesas,

Gentis, fermosas, ínclitas princesas.

«Não sofre o peito forte, usado à guerra,

Não ter imigo já a quem faça dano;

E assi, não tendo a quem vencer na terra,

Vai cometer as ondas do Oceano

Este é o primeiro Rei que se desterra

Da pátria, por fazer que o Africano

Conheça, pelas armas, quanto excede

A lei de Cristo à lei de Mafamede.

«Eis mil nadantes aves, pelo argento

Da furiosa Tétis inquieta,

Abrindo as pandas asas vão ao vento,

Pera onde Alcides pôs a extrema meta.

O monte Abila e o nobre fundamento

De Ceita toma, e o torpe Mahometa

Deita fora, e segura toda Espanha

Da Juliana, má e desleal manha.

«Não consentiu a morte tantos anos

Que de Herói tão ditoso se lograsse

Portugal, mas os coros soberanos

Do Céu supremo quis que povoasse.

Mas, pera defensão dos Lusitanos,

Deixou Quem o levou, quem governasse

E aumentasse a terra mais que dantes:

Ínclita geração, altos Infantes.

«Não foi do Rei Duarte tão ditoso

O tempo que ficou na suma alteza,

Que assi vai alternando o tempo iroso

O bem co mal, o gosto co a tristeza.

Quem viu sempre um estado deleitoso?

Ou quem viu em Fortuna haver firmeza?

Pois inda neste Reino e neste Rei

Não usou ela tanto desta lei?

«Viu ser cativo o santo irmão Fernando

(Que a tão altas empresas aspirava),

Que, por salvar o povo miserando

Cercado, ao Sarraceno se entregava.

Só por amor da pátria está passando

A vida, de senhora feita escrava,

Por não se dar por ele a forte Ceita.

Mais o público bem que o seu respeita.

«Codro, por que o inimigo não vencesse,

Deixou antes vencer da morte a vida;

Régulo, por que a pátria não perdesse,

Quis mais a liberdade ver perdida.

Este, por que se Espanha não temesse,

A cativeiro eterno se convida!

Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto,

Nem os Décios leais, fizeram tanto.

«Mas Afonso, do Reino único herdeiro,

Nome em armas ditoso em nossa Hespéria.

Que a soberba do Bárbaro fronteiro

Tornou em baxa e humílima miséria,

Fora por certo invicto cavaleiro,

Se não quisera ir ver a terra Ibéria.

Mas Africa dirá ser impossíbil

Poder ninguém vencer o Rei terríbil.

«Este pôde colher as maçãs de ouro

Que somente o Tiríntio colher pôde.

Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro

A cerviz inda agora não sacode.

Na fronte a palma leva e o verde louro

Das vitórias do Bárbaro, que acode

A defender Alcácer, forte vila,

Tângere populoso e a dura Arzila.

«Porém elas, enfim, por força entradas

Os muros abaxaram de diamante

Às Portuguesas forças, costumadas

A derribarem quanto acham diante.

Maravilhas em armas, estremadas

E de escritura dinas elegante,

Fizeram cavaleiros nesta empresa,

Mais afinando a fama Portuguesa.

«Porém despois, tocado de ambição

E glória de mandar, amara e bela,

Vai cometer Fernando de Aragão,

Sobre o potente Reino de Castela.

Ajunta-se a inimiga multidão

Das soberbas e várias gentes dela,

Desde Cáliz ao alto Perineu,

Que tudo ao Rei Fernando obedeceu.

«Não quis ficar nos Reinos occioso

O mancebo Joane, e logo ordena

De ir ajudar o pai ambicioso,

Que então lhe foi ajuda não pequena.

Saiu-se, enfim, do trance perigoso,

Com fronte não torvada, mas serena.

Desbaratado o pai sanguinolento,

Mas ficou duvidoso o vencimento;

«Porque o filho, sublime e soberano,

Gentil, forte, animoso cavaleiro,

Nos contrários fazendo imenso dano,

Todo um dia ficou no campo inteiro.

Destarte foi vencido Octaviano,

E António vencedor, seu companheiro,

Quando daqueles que César mataram

Nos Filípicos campos se vingaram.

«Porém, despois que a escura noite eterna

Afonso apousentou no Céu sereno,

O Príncipe que o Reino então governa

Foi Joane segundo e Rei trezeno.

Este, por haver fama sempiterna,

Mais do que tentar pode homem terreno

Tentou, que foi buscar da roxa Aurora

Os términos, que eu vou buscando agora.

«Manda seus mensageiros, que passaram

Espanha, França, Itália celebrada,

E lá no ilustre porto se embarcaram

Onde já foi Parténope enterrada:

Nápoles, onde os Fados se mostraram,

Fazendo-a a várias gentes subjugada,

Pola ilustrar, no fim de tantos anos,

Co senhorio de ínclitos Hispanos.

«Polo mar alto Sículo navegam;

Vão-se às praias de Rodes arenosas;

E dali às ribeiras altas chegam

Que com morte de Magno são famosas;

Vão a Mênfis, e às terras que se regam

Das enchentes Nilóticas undosas;

Sobem à Etiópia, sobre Egipto,

Que de Cristo lá guarda o santo rito.

«Passam também as ondas Eritreias,

Que o povo de Israel sem nau passou;

Ficam-lhe atrás as serras Nabateias,

Que o filho de Ismael co nome ornou.

As costas odoríferas Sabeias,

Que a mãe do belo Adónis tanto honrou,

Cercam, com toda a Arábia descoberta,

Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta.

«Entram no Estreito Pérsico, onde dura

Da confusa Babel inda a memória;

Ali co Tigre o Eufrates se mistura,

Que as fontes onde nascem têm por glória.

Dali vão em demanda da água pura

(Que causa inda será de larga história)

Do Indo, pelas ondas do Oceano,

Onde não se atreveu passar Trajano.

«Viram gentes incógnitas e estranhas

Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,

Vendo vários costumes, várias manhas,

Que cada região produze e cria.

Mas de vias tão ásperas, tamanhas,

Tornar-se fàcilmente não podia.

Lá morreram, enfim, e lá ficaram,

Que à desejada pátria não tornaram.

«Parece que guardava o claro Céu

A Manuel e seus merecimentos

Esta empresa tão árdua, que o moveu

A subidos e ilustres movimentos;

Manuel, que a Joane sucedeu

No Reino e nos altivos pensamentos,

Logo como tomou do Reino cargo,

Tomou mais a conquista do mar largo.

«O qual, como do nobre pensamento

Daquela obrigação que lhe ficara

De seus antepassados, cujo intento

Foi sempre acrecentar a terra cara,

Não deixasse de ser um só momento

Conquistado, no tempo que a luz clara

Foge, e as estrelas nítidas que saem

A repouso convidam quando caem,

«Estando já. deitado no áureo leito,

Onde imaginações mais certas são,

Revolvendo contino no conceito

De seu ofício e sangue a obrigação,

Os olhos lhe ocupou o sono aceito,

Sem lhe desocupar o coração;

Porque, tanto que lasso se adormece,

Morfeu em várias formas lhe aparece.

«Aqui se lhe apresenta que subia

Tão alto que tocava à prima Esfera,

Donde diante vários mundos via,

Nações de muita gente, estranha e fera.

E lá bem junto donde nace o dia,

Despois que os olhos longos estendera,

Viu de antigos, longincos e altos montes

Nacerem duas claras e altas fontes.

«Aves agrestes, feras e alimárias

Pelo monte selvático habitavam;

Mil árvores silvestres e ervas várias

O passo e o trato às gentes atalhavam.

Estas duras montanhas, adversárias

De mais conversação, por si mostravam

Que, dês que Adão pecou aos nossos anos,

Não as romperam nunca pés humanos.

«Das águas se lhe antolha que saíam,

Par’ele os largos passos inclinando,

Dous homens, que mui velhos pareciam,

De aspeito, inda que agreste, venerando.

Das pontas dos cabelos lhe saíam

Gotas, que o corpo todo vão banhando;

A cor da pele, baça e denegrida;

A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.

«D’ambos de dous a fronte coroada

Ramos não conhecidos e ervas tinha.

Um deles a presença traz cansada,

Como quem de mais longe ali caminha;

E assi a água, com ímpeto alterada,

Parecia que doutra parte vinha,

Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa

Vai buscar os abraços de Aretusa.

«Este, que era o mais grave na pessoa,

Destarte pera o Rei de longe brada:

– «Ó tu, a cujos reinos e coroa

Grande parte do mundo está guardada,

Nós outros, cuja fama tanto voa,

Cuja cerviz bem nunca foi domada,

Te avisamos que é tempo que já mandes

A receber de nós tributos grandes.

«Eu sou o ilustre Ganges, que na terra

Celeste tenho o berço verdadeiro;

Estoutro é o Indo, Rei que, nesta serra

Que vês, seu nascimento tem primeiro.

Custar-t’-emos contudo dura guerra;

Mas, insistindo tu, por derradeiro,

Com não vistas vitórias, sem receio

A quantas gentes vês porás o freio.»

«Não disse mais o Rio ilustre e santo,

Mas ambos desparecem num momento.

Acorda Emanuel cum novo espanto

E grande alteração de pensamento.

Estendeu nisto Febo o claro manto

Pelo escuro Hemispério somnolento;

Veio a manhã no céu pintando as cores

De pudibunda rosa e roxas flores.

«Chama o Rei os senhores a conselho

E propõe-lhe as figuras da visão;

As palavras lhe diz do santo velho,

Que a todos foram grande admiração.

Determinam o náutico aparelho,

Pera que, com sublime coração,

Vá a gente que mandar cortando os mares

A buscar novos climas, novos ares.

«Eu, que bem mal cuidava que em efeito

Se pusesse o que o peito me pedia,

Que sempre grandes coisas deste jeito,

Pres[s]ago, o coração me prometia,

Não sei por que razão, por que respeito,

Ou por que bom sinal que em mi se via,

Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave

Deste cometimento grande e grave.

«E com rogo e palavras amorosas,

Que é um mando nos Reis que a mais obriga,

Me disse: – «As cousas árduas e lustrosas

Se alcançam com trabalho e com fadiga;

Faz as pessoas altas e famosas

A vida que se perde e que periga,

Que, quando ao medo infame não se rende,

Então, se menos dura, mais se estende.

«Eu vos tenho entre todos escolhido

Pera üa empresa, qual a vós se deve,

Trabalho ilustre, duro e esclarecido,

O que eu sei que por mi vos será leve.»

«Não sofri mais, mas logo: – «Ó
Rei subido,

Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,

É tão pouco por vós que mais me pena

Ser esta vida cousa tão pequena.

«Imaginai tamanhas aventuras

Quais Euristeu a Alcides inventava:

O lião Cleonéu, Harpias duras,

O porco de Erimanto, a Hidra brava,

Decer, enfim, às sombras vãs e escuras

Onde os campos de Dite a Estige lava;

Porque a maior perigo, a mor afronta,

Por vós, ó Rei, o esprito e carne é pronta.»

«Com mercês sumptuosas me agardece

E com razões me louva esta vontade;

Que a virtude louvada vive e crece

E o louvor altos casos persuade.

A acompanhar-me logo se oferece,

Obrigado d’amor e d’amizade,

Não menos cobiçoso de honra e fama,

O caro meu irmão Paulo da Gama.

«Mais se me ajunta Nicolau Coelho,

De trabalhos mui grande sofredor.

Ambos são de valia e de conselho,

D’experiência em armas e furor.

Já de manceba gente me aparelho,

Em que crece o desejo do valor;

Todos de grande esforço; e assi parece

Quem a tamanhas cousas se oferece.

«Foram de Emanuel remunerados,

Por que com mais amor se apercebessem,

E com palavras altas animados

Pera quantos trabalhos sucedessem.

Assi foram os Mínias ajuntados,

Pera que o Véu dourado combatessem,

Na fatídica nau, que ousou primeira

Tentar o mar Euxínio, aventureira.

«E já no porto da ínclita Ulisseia,

Cum alvoroço nobre e cum desejo

(Onde o licor mistura e branca areia

Co salgado Neptuno o doce Tejo)

As naus prestes estão; e não refreia

Temor nenhum o juvenil despejo,

Porque a gente marítima e a de Marte

Estão pera seguir-me a toda a parte.

«Pelas praias vestidos os soldados

De várias cores vêm e várias artes,

E não menos de esforço aparelhados

Pera buscar do mundo novas partes.

Nas fortes naus os ventos sossegados

Ondeiam os aéreos estandartes;

Elas prometem, vendo os mares largos,

De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.

«Despois de aparelhados, desta sorte,

De quanto tal viagem pede e manda,

Aparelhámos a alma pera a morte,

Que sempre aos nautas ante os olhos anda.

Pera o sumo Poder, que a etérea Corte

Sustenta só co a vista veneranda,

Implorámos favor que nos guiasse

E que nossos começos aspirasse.

«Partimo-nos assi do santo templo

Que nas praias do mar está assentado,

Que o nome tem da terra, pera exemplo,

Donde Deus foi em carne ao mundo dado.

Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo

Como fui destas praias apartado,

Cheio dentro de dúvida e receio,

Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

«A gente da cidade, aquele dia,

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente) concorria,

Saüdosos na vista e descontentes

E nós, co a virtuosa companhia

De mil Religiosos diligentes,

Em procissão solene, a Deus orando,

Pera os batéis viemos caminhando.

«Em tão longo caminho e duvidoso

Por perdidos as gentes nos julgavam,

As mulheres cum choro piadoso

Os homens com suspiros que arrancavam.

Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso

Amor mais desconfia, acrecentavam

A desesperação e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.

«Qual vai dizendo: – «Ó filho, a quem eu
tinha

Só pera refrigério e doce emparo

Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará, penoso e amaro

Porque me deixas, mísera e mesquinha?

Porque de mi te vás, ó filho caro,

A fazer o funéreo enterramento

Onde sejas de pexes mantimento?»

«Qual em cabelo: – «Ó doce e amado esposo,

Sem quem não quis Amor que viver possa,

Porque is aventurar ao mar airoso

Essa vida que é minha e não é vossa?

Como, por um caminho duvidoso,

Vos esquece a afeição tão doce nossa?

Nosso amor, nosso vão contentamento,

Quereis que com as velas leve o vento?»

«Nestas e outras palavras que diziam,

De amor e de piadosa humanidade,

Os velhos e os mininos os seguiam,

Em quem menos esforço põe a idade.

Os montes de mais perto respondiam,

Quási movidos de alta piedade;

A branca areia as lágrimas banhavam,

Que em multidão com elas se igualavam.

«Nós outros, sem a vista alevantarmos

Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,

Por nos não magoarmos, ou mudarmos

Do propósito firme começado,

Determinei de assi nos embarcarmos,

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

«Mas um velho, d’aspeito venerando,

Que ficava nas praias, entre a gente,

Postos em nós os olhos, meneando

Três vezes a cabeça, descontente,

A voz pesada um pouco alevantando,

Que nós no mar ouvimos claramente,

Cum saber só d’experiências feito,

Tais palavras tirou do experto peito:

– «Ó glória de mandar, ó vã
cobiça

Desta vaidade a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

Cüa aura popular, que honra se chama!

Que castigo tamanho e que justiça

Fazes no peito vão que muito te ama!

Que mortes, que perigos, que tormentas,

Que crueldades neles experimentas!

«Dura inquietação d’alma e da vida

Fonte de desemparos e adultérios,

Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinas e de impérios!

hamam-te ilustre, chamam-te subida,

Sendo dina de infames vitupérios;

Chamam-te Fama e Glória soberana,

Nomes com quem se o povo néscio engana!

«A que novos desastres determinas

De levar estes Reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas,

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos e de minas

D’ouro, que lhe farás tão facilmente?

Que famas lhe prometerás? Que histórias?

Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

«Mas, ó tu, geração daquele insano

Cujo pecado e desobediência

Não somente do Reino soberano

Te pôs neste desterro e triste ausência,

Mas inda doutro estado mais que humano,

Da quieta e da simpres inocência,

Idade d’ouro, tanto te privou,

Que na de ferro e d’armas te deitou:

«Já que nesta gostosa vaidade

Tanto enlevas a leve fantasia,

Já que à bruta crueza e feridade

Puseste nome, esforço e valentia,

Já que prezas em tanta quantidade :

O desprezo da vida, que devia

De ser sempre estimada, pois que já

Temeu tanto perdê-la Quem a dá:

«Não tens junto contigo o Ismaelita,

Com quem sempre terás guerras sobejas?

Não segue ele do Arábio a lei maldita,

Se tu pola de Cristo só pelejas?

Não tem cidades mil, terra infinita,

Se terras e riqueza mais desejas?

Não é ele por armas esforçado,

Se queres por vitórias ser louvado?

«Deixas criar às portas o inimigo,

Por ires buscar outro de tão longe,

Por quem se despovoe o Reino antigo,

Se enfraqueça e se vá deitando a longe;

Buscas o incerto e incógnito perigo

Por que a Fama te exalte e te lisonje

Chamando-te senhor, com larga cópia,

Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.

«Oh, maldito o primeiro que, no mundo,

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Dino da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

Nem cítara sonora ou vivo engenho

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória!

«Trouxe o filho de Jápeto do Céu

O fogo que ajuntou ao peito humano,

Fogo que o mundo em armas acendeu,

Em mortes, em desonras (grande engano!).

Quanto milhor nos fora, Prometeu,

E quanto pera o mundo menos dano,

Que a tua estátua ilustre não tivera

Fogo de altos desejos, que a movera!

«Não cometera o moço miserando

O carro alto do pai, nem o ar vazio

O grande arquitector co filho, dando

Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.

Nenhum cometimento alto e nefando

Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração.

Mísera sorte! Estranha condição!»

Canto V

ESTAS sentenças tais o velho honrado

Vociferando estava, quando abrimos

As asas ao sereno e sossegado

Vento, e do porto amado nos partimos.

E, como é já no mar costume usado,

A vela desfraldando, o céu ferimos,

Dizendo:- «Boa viagem!»; logo o vento

Nos troncos fez o usado movimento.

«Entrava neste tempo o eterno lume

No animal Nemeio truculento;

E o Mundo, que co tempo se consume,

Na sexta idade andava, enfermo e lento.

Nela vê, como tinha por costume,

Cursos do Sol catorze vezes cento,

Com mais noventa e sete, em que corria,

Quando no mar a armada se estendia.

«Já a vista, pouco e pouco, se desterra

Daqueles pátrios montes, que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam;

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam;

E, já despois que toda se escondeu,

Não vimos mais, enfim, que mar e céu.

«Assi fomos abrindo aqueles mares,

Que geração algüa não abriu,

As novas Ilhas vendo e os novos ares

Que o generoso Henrique descobriu;

De Mauritânia os montes e lugares,

Terra que Anteu num tempo possuiu,

Deixando à mão esquerda, que à direita

Não há certeza doutra, mas suspeita.

«Passámos a grande Ilha da Madeira,

Que do muito arvoredo assi se chama;

Das que nós povoámos a primeira,

Mais célebre por nome que por fama.

Mas, nem por ser do mundo a derradeira,

Se lhe aventajam quantas Vénus ama;

Antes, sendo esta sua, se esquecera

De Cipro, Gnido, Pafos e Citera.

«Deixámos de Massília a estéril
costa,

Onde seu gado os Azenegues pastam,

Gente que as frescas águas nunca gosta,

Nem as ervas do campo bem lhe abastam;

A terra a nenhum fruto, enfim, disposta,

Onde as aves no ventre o ferro gastam,

Padecendo de tudo extrema inópia,

Que aparta a Barbaria de Etiópia.

«Passámos o limite aonde chega

O Sol, que pera o Norte os carros guia;

Onde jazem os povos a quem nega

O filho de Climene a cor do dia.

Aqui gentes estranhas lava e rega

Do negro Sanagá a corrente fria,

Onde o Cabo Arsinário o nome perde,

Chamando-se dos nossos Cabo Verde.

«Passadas tendo já as Canárias ilhas,

Que tiveram por nome Fortunadas,

Entrámos, navegando, polas filhas

Do velho Hespério, Hespéridas chamadas;

Terras por onde novas maravilhas

Andaram vendo já nossas armadas.

Ali tomámos porto com bom vento,

Por tomarmos da terra mantimento.

«Àquela ilha aportámos que tomou

O nome do guerreiro Santiago,

Santo que os Espanhóis tanto ajudou

fazerem nos Mouros bravo estrago.

Daqui, tanto que Bóreas nos ventou,

Tornámos a cortar o imenso lago

Do salgado Oceano, e assi deixámos

A terra onde o refresco doce achámos.

«Por aqui rodeando a larga parte

De África, que ficava ao Oriente

(A província Jalofo, que reparte

Por diversas nações a negra gente;

A mui grande Mandinga, por cuja arte

Logramos o metal rico e luzente,

Que do curvo Gambeia as águas bebe,

As quais o largo Atlântico recebe),

«As Dórcadas passámos, povoadas

Das Irmãs que outro tempo ali viviam,

Que, de vista total sendo privadas,

Todas três dum só olho se serviam.

Tu só, tu, cujas tranças encrespadas

Neptuno lá nas águas acendiam,

Tornada já de todas a mais feia,

De bívoras encheste a ardente areia.

«Sempre, enfim, pera o Austro a aguda proa,

No grandíssimo gôlfão nos metemos,

Deixando a Serra aspérrima Lioa,

Co Cabo a quem das Palmas nome demos.

O grande rio, onde batendo soa

O mar nas praias notas, que ali temos,

Ficou, co a Ilha ilustre, que tomou

O nome dum que o lado a Deus tocou.

«Ali o mui grande reino está de Congo,

Por nós já convertido à fé de
Cristo,

Por onde o Zaire passa, Claro e longo,

Rio pelo antigos nunca visto.

Por este largo mar, enfim, me alongo

Do conhecido PóIo de Calisto,

Tendo o término ardente já passado

Onde o meio do Mundo é limitado.

«Já descoberto tínhamos diante,

Lá no novo Hemispério, nova estrela,

Não vista de outra gente, que, ignorante,

Alguns tempos esteve incerta dela.

Vimos a parte menos rutilante

E, por falta de estrelas, menos bela,

Do Pólo fixo, onde inda se não sabe

Que outra terra comece ou mar acabe.

«Assi, passando aquelas regiões

Por onde duas vezes passa Apolo,

Dous Invernos fazendo e dous Verões,

Enquanto corre dum ao outro Pólo,

Por calmas, por tormentas e opressões,

Que sempre faz no mar o irado Eolo,

Vimos as Ursas, a pesar de Juno,

Banharem-se nas águas de Neptuno.

«Contar-te longamente as perigosas

Cousas do mar, que os homens não entendem,

Súbitas trovoadas temerosas,

Relâmpados que o ar em fogo acendem,

Negros chuveiros, noites tenebrosas,

Bramidos de trovões, que o mundo fendem,

Não menos é trabalho que grande erro,

Ainda que tivesse a voz de ferro.

«Os casos vi, que os rudos marinheiros,

Que têm por mestra a longa experiência,

Contam por certos sempre e verdadeiros,

Julgando as cousas só pola aparência,

E que os que têm juízos mais inteiros,

Que só por puro engenho e por ciência

Vêm do mundo os segredos escondidos,

Julgam por falsos ou mal entendidos.

«Vi, claramente visto, o lume vivo

Que a marítima gente tem por santo,

Em tempo de tormenta e vento esquivo,

De tempestade escura e triste pranto.

Não menos foi a todos excessivo

Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,

Ver as nuvens, do mar com largo cano,

Sorver as altas águas do Oceano.

«Eu o vi certamente (e não presumo

Que a vista me enganava): levantar-se

No ar um vaporzinho e sutil fumo

E, do vento trazido, rodear-se;

De aqui levado um cano ao Pólo sumo

Se via, tão delgado, que enxergar-se

Dos olhos fàcilmente não podia;

Da matéria das nuvens parecia.

«Ia-se pouco e pouco acrecentando

E mais que um largo masto se engrossava;

Aqui se estreita, aqui se alarga, quando

Os golpes grandes de água em si chupava;

Estava-se co as ondas ondeando;

Em cima dele ua nuvem se espessava,

Fazendo-se maior, mais carregada,

Co cargo grande d’água em si tomada.

«Qual roxa sangues[s]uga se veria

Nos beiços da alimária (que, imprudente,

Bebendo a recolheu na fonte fria)

Fartar co sangue alheio a sede ardente;

Chupando, mais e mais se engrossa e cria,

Ali se enche e se alarga grandemente:

Tal a grande coluna, enchendo, aumenta

A si e a nuvem negra que sustenta.

«Mas, despois que de todo se fartou,

O pé que tem no mar a si recolhe

E pelo céu, chovendo, enfim voou,

Por que co a água a jacente água molhe;

Às ondas torna as ondas que tomou,

Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.

Vejam agora os sábios na escritura

Que segredos são estes de Natura!

«Se os antigos Filósofos, que andaram

Tantas terras, por ver segredos delas,

As maravilhas que eu passei, passaram,

A tão diversos ventos dando as velas,

Que grandes escrituras que deixaram!

Que influïção de sinos e de estrelas!

Que estranhezas, que grandes qualidades!

E tudo, sem mentir, puras verdades.

«Mas já o Planeta que no Céu primeiro

Habita, cinco vezes, apressada,

Agora meio rosto, agora inteiro,

Mostrara, enquanto o mar cortava a armada,

Quando da etérea gávea, um marinheiro,

Pronto co a vista: «Terra! Terra!» brada.

Salta no bordo alvoroçada a gente,

Cos olhos no horizonte do Oriente.

«A maneira de nuvens se começam

A descobrir os montes que enxergamos;

As âncoras pesadas se adereçam;

As velas, já chegados, amainamos.

E, pera que mais certas se conheçam

As partes tão remotas onde estamos,

Pelo novo instrumento do Astrolábio,

Invenção de sutil juízo e sábio,

«Desembarcamos logo na espaçosa

Parte, por onde a gente se espalhou,

De ver cousas estranhas desejosa,

Da terra que outro povo não pisou.

Porém eu, cos pilotos, na arenosa

Praia, por vermos em que parte estou,

Me detenho em tomar do Sol a altura

E compassar a universal pintura.

«Achámos ter de todo já passado

Do Semícapro Pexe a grande meta,

Estando entre ele e o circulo gelado

Austral, parte do mundo mais secreta.

Eis, de meus companheiros rodeado,

Vejo um estranho vir, de pele preta,

Que tomaram per força, enquanto apanha

De mel os doces favos na montanha.

«Torvado vem na vista, como aquele

Que não se vira nunca em tal extremo;

Nem ele entende a nós, nem nós a ele,

Selvagem mais que o bruto Polifemo.

Começo-lhe a mostrar da rica pele

De Colcos o gentil metal supremo,

A prata fina, a quente especiaria:

A nada disto o bruto se movia.

«Mando mostrar-lhe peças mais somenos:

Contas de cristalino transparente,

Alguns soantes cascavéis pequenos,

Um barrete vermelho, cor contente;

Vi logo, por sinais e por acenos,

Que com isto se alegra grandemente.

Mando-o soltar com tudo e assi caminha

Pera a povoação, que perto tinha.

«Mas, logo ao outro dia, seus parceiros,

Todos nus e da cor da escura treva,

Decendo pelos ásperos outeiros,

As peças vêm buscar que estoutro leva.

Domésticos já tanto e companheiros se nos

mostram, que fazem que se atreva

Fernão Veloso a ir ver da terra o trato

E partir-se co eles pelo mato.

«É Veloso no braço confiado

E, de arrogante, crê que vai seguro;

Mas, sendo um grande espaço já passado,

Em que algum bom sinal saber procuro,

Estando, a vista alçada, co cuidado

No aventureiro, eis pelo monte duro

Aparece e, segundo ao mar caminha,

Mais apressado do que fora, vinha.

«O batel de Coelho foi depressa

Polo tomar; mas, antes que chegasse,

Um Etíope ousado se arremessa

A ele, por que não se lhe escapasse;

Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa

Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;

Acudo eu logo, e, enquanto o remo aperto,

Se mostra um bando negro, descoberto.

«Da espessa nuvem setas e pedradas

Chovem sobre nós outros, sem medida;

E não foram ao vento em vão deitadas,

Que esta perna trouxe eu dali ferida.

Mas nós, como pessoas magoadas,

A reposta lhe demos tão tecida

Que em mais que nos barretes se suspeita

Que a cor vermelha levam desta feita.

«E, sendo já Veloso em salvamento,

Logo nos recolhemos pera a armada,

Vendo a malícia feia e rudo intento

Da gente bestial, bruta e malvada,

De quem nenhum milhor conhecimento

Pudemos ter da Índia desejada

Que estarmos inda muito longe dela.

E assi tornei a dar ao vento a vela.

«Disse então a Veloso um companheiro

(Começando-se todos a sorrir):

– «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro

É milhor de decer que de subir!»

– «Si, é (responde o ousado aventureiro);

Mas, quando eu pera cá vi tantos vir

Daqueles cães, depressa um pouco vim,

Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»

«Contou então que, tanto que passaram

Aquele monte os negros de quem falo,

Avante mais passar o não deixaram,

Querendo, se não torna, ali matá-lo;

E tornando-se, logo se emboscaram,

Por que, saindo nós pera tomá-lo,

Nos pudessem mandar ao reino escuro,

Por nos roubarem mais a seu seguro.

«Porém já cinco Sóis eram passados

Que dali nos partíramos, cortando

Os mares nunca d’outrem navegados,

Pròsperamente os ventos assoprando,

Quando üa noute, estando descuidados

Na cortadora proa vigiando,

üa nuvem que os ares escurece,

Sobre nossas cabeças aparece.

«Tão temerosa vinha e carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Bramindo, o negro mar de longe brada,

Como se desse em vão nalgum rochedo.

– «Ó Potestade (disse) sublimada:

Que ameaço divino ou que segredo

Este clima e este mar nos apresenta,

Que mor cousa parece que tormenta?»

«Não acabava, quando üa figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

«Tão grande era de membros que bem posso

Certificar-te que este era o segundo

De Rodes estranhíssimo Colosso,

Que um dos sete milagres foi do mundo.

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,

Que pareceu sair do mar profundo.

Arrepiam-se as carnes e o cabelo,

A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

«E disse: – «Ó gente ousada, mais que quantas

No mundo cometeram grandes cousas,

Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,

E por trabalhos vãos nunca repousas,

Pois os vedados términos quebrantas

E navegar meus longos mares ousas,

Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,

Nunca arados d’estranho ou próprio lenho;

«Pois vens ver os segredos escondidos

Da natureza e do húmido elemento,

A nenhum grande humano concedidos

De nobre ou de imortal merecimento,

Ouve os danos de mi que apercebidos

Estão a teu sobejo atrevimento,

Por todo o largo mar e pola terra

Que inda hás-de sojugar com dura guerra.

«Sabe que quantas naus esta viagem

Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,

Inimiga terão esta paragem,

Com ventos e tormentas desmedidas;

E da primeira armada que passagem

Fizer por estas ondas insofridas,

Eu farei de improviso tal castigo

Que seja mor o dano que o perigo!

«Aqui espero tomar, se não me engano,

De quem me descobriu suma vingança;

E não se acabará só nisto o dano

De vossa pertinace confiança:

Antes, em vossas naus vereis, cada ano,

Se é verdade o que meu juízo alcança,

Naufrágios, perdições de toda sorte,

Que o menor mal de todos seja a morte!

«E do primeiro Ilustre, que a ventura

Com fama alta fizer tocar os Céus,

Serei eterna e nova sepultura,

Por juízos incógnitos de Deus.

Aqui porá da Turca armada dura

Os soberbos e prósperos troféus;

Comigo de seus danos o ameaça

A destruída Quíloa com Mombaça.

«Outro também virá, de honrada fama,

Liberal, cavaleiro, enamorado,

E consigo trará a fermosa dama

Que Amor por grão mercê lhe terá dado.

Triste ventura e negro fado os chama

Neste terreno meu, que, duro e irado,

Os deixará dum cru naufrágio vivos,

Pera verem trabalhos excessivos.

«Verão morrer com fome os filhos caros,

Em tanto amor gerados e nacidos;

Verão os Cafres, ásperos e avaros,

Tirar à linda dama seus vestidos;

Os cristalinos membros e perclaros

À calma, ao frio, ao ar, verão despidos,

Despois de ter pisada, longamente,

Cos delicados pés a areia ardente.

«E verão mais os olhos que escaparem

De tanto mal, de tanta desventura,

Os dous amantes míseros ficarem

Na férvida, implacábil espessura.

Ali, despois que as pedras abrandarem

Com lágrimas de dor, de mágoa pura,

Abraçados, as almas soltarão

Da fermosa e misérrima prisão.»

«Mais ia por diante o monstro horrendo,

Dizendo nossos Fados, quando, alçado,

Lhe disse eu: – «Quem és tu? Que esse estupendo

Corpo, certo me tem maravilhado!»

A boca e os olhos negros retorcendo

E dando um espantoso e grande brado,

Me respondeu, com voz pesada e amara,

Como quem da pergunta lhe pesara:

«Eu sou aquele oculto e grande Cabo

A quem chamais vós outros Tormentório,

Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,

Plinio e quantos passaram fui notório.

Aqui toda a Africana costa acabo

Neste meu nunca visto Promontório,

Que pera o Pólo Antártico se estende,

A quem vossa ousadia tanto ofende.

«Fui dos filhos aspérrimos da Terra,

Qual Encélado, Egeu e o Centimano;

Chamei-me Adamastor, e fui na guerra

Contra o que vibra os raios de Vulcano;

Não que pusesse serra sobre serra,

Mas, conquistando as ondas do Oceano,

Fui capitão do mar, por onde andava

A armada de Neptuno, que eu buscava.

«Amores da alta esposa de Peleu

Me fizeram tomar tamanha empresa;

Todas as Deusas desprezei do Céu,

Só por amar das águas a Princesa.

Um dia a vi, co as filhas de Nereu,

Sair nua na praia e logo presa

A vontade senti de tal maneira

Que inda não sinto cousa que mais queira.

«Como fosse impossíbil alcançá-la,

Pola grandeza feia de meu gesto,

Determinei por armas de tomá-la

E a Dóris este caso manifesto.

De medo a Deusa então por mi lhe fala;

Mas ela, cum fermoso riso honesto,

Respondeu: – «Qual será o amor bastante

De Ninfa, que sustente o dum Gigante?

«Contudo, por livrarmos o Oceano

De tanta guerra, eu buscarei maneira

Com que, com minha honra, escuse o dano.»

Tal resposta me torna a mensageira.

Eu, que cair não pude neste engano

(Que é grande dos amantes a cegueira),

Encheram-me, com grandes abondanças,

O peito de desejos e esperanças.

«Já néscio, já da guerra desistindo,

üa noite, de Dóris prometida,

Me aparece de longe o gesto lindo

Da branca Tétis, única, despida.

Como doudo corri de longe, abrindo

Os braços pera aquela que era vida

Deste corpo, e começo os olhos belos

A lhe beijar, as faces e os cabelos.

«Oh que não sei de nojo como o conte!

Que, crendo ter nos braços quem amava,

Abraçado me achei cum duro monte

De áspero mato e de espessura brava.

Estando cum penedo fronte a fronte,

Qu’eu polo rosto angélico apertava,

Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo

E, junto dum penedo, outro penedo!

«Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,

Já que minha presença não te agrada,

Que te custava ter-me neste engano,

Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?

Daqui me parto, irado e quási insano

Da mágoa e da desonra ali passada,

A buscar outro mundo, onde não visse

Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

«Eram já neste tempo meus Irmãos

Vencidos e em miséria extrema postos,

E, por mais segurar-se os Deuses vãos,

Alguns a vários montes sotopostos.

E, como contra o Céu não valem mãos,

Eu, que chorando andava meus desgostos,

Comecei a sentir do Fado imigo,

Por meus atrevimentos, o castigo:

Converte-se-me a carne em terra dura;

Em penedos os ossos se fizeram;

Estes membros que vês, e esta figura,

Por estas longas águas se estenderam.

Enfim, minha grandíssima estatura

Neste remoto Cabo converteram

Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,

Me anda Tétis cercando destas águas.»

«Assi contava; e, cum medonho choro,

Súbito d’ante os olhos se apartou;

Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro

Bramido muito longe o mar soou.

Eu, levantando as mãos ao santo coro

Dos Anjos, que tão longe nos guiou,

A Deus pedi que removesse os duros

Casos, que Adamastor contou futuros.

«Já Flégon e Piróis vinham tirando,

Cos outros dous, o carro radiante,

Quando a terra alta se nos foi mostrando

Em que foi convertido o grão Gigante.

Ao longo desta costa, começando

Já de cortar as ondas do Levante,

Por ela abaixo um pouco navegámos,

Onde segunda vez terra tomámos.

«A gente que esta terra possuía,

Posto que todos Etiopes eram,

Mais humana no trato parecia

Que os outros que tão mal nos receberam.

Com bailos e com festas de alegria

Pela praia arenosa a nós vieram,

As mulheres consigo e o manso gado

Que apacentavam, gordo e bem criado.

«As mulheres, queimadas, vêm em cima

Dos vagarosos bois, ali sentadas,

Animais que eles têm em mais estima

Que todo o outro gado das manadas.

Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,

Na sua língua cantam, concertadas

Co doce som das rústicas avenas,

Imitando de Títiro as Camenas.

«Estes, como na vista prazenteiros

Fossem, humanamente nos trataram,

Trazendo-nos galinhas e carneiros

A troco doutras peças que levaram;

Mas como nunca, enfim, meus companheiros

Palavra sua algüa lhe alcançaram

Que desse algum sinal do que buscamos,

As velas dando, as âncoras levamos.

«Já aqui tínhamos dado um grão
rodeio

À costa negra de Africa, e tornava

A proa a demandar o ardente meio

Do Céu, e o Pólo Antártico ficava.

Aquele ilhéu deixámos onde veio

Outra armada primeira, que buscava

O Tormentório Cabo e, descoberto,

Naquele ilhéu fez seu limite certo.

«Daqui fomos cortando muitos dias,

Entre tormentas tristes e bonanças,

No largo mar fazendo novas vias,

Só conduzidos de árduas esperanças.

Co mar um tempo andámos em porfias,

Que, como tudo nele são mudanças,

Corrente nele achámos tão possante,

Que passar não deixava por diante:

«Era maior a força em demasia,

Segundo pera trás nos obrigava,

Do mar, que contra nós ali corria,

Que por nós a do vento que assoprava.

Injuriado Noto da porfia

Em que co mar (parece) tanto estava,

Os assopros esforça iradamente,

Com que nos fez vencer a grão corrente.

«Trazia o Sol o dia celebrado

Em que três Reis das partes do Oriente

Foram buscar um Rei, de pouco nado,

No qual Rei outros três há juntamente;

Neste dia outro porto foi tomado

Por nós, da mesma já contada gente,

Num largo rio, ao qual o nome demos

Do dia em que por ele nos metemos.

«Desta gente refresco algum tomámos

E do rio fresca água; mas contudo

Nenhum sinal aqui da Índia achámos

No povo, com nós outros cási mudo.

Ora vê, Rei, quamanha terra andámos.

Sem sair nunca deste povo rudo,

Sem vermos nunca nova nem sinal

Da desejada parte Oriental.

De algodão, as cabeças apertavam;

Com outro, que de tinta azul se tinge,

Cada um as vergonhosas partes cinge.

Foi düa novidade alvoroçado.

«E foi que, estando já da costa perto,

Onde as praias e vales bem se viam,

Num rio, que ali sai ao mar aberto,

Batéis à vela entravam e saíam.

Alegria mui grande foi, por certo,

Acharmos já pessoas que sabiam

Navegar, porque entre elas esperámos

De achar novas algüas, como achámos.

«Etíopes são todos, mas parece

Que com gente milhor comunicavam;

Palavra algüa Arábia se conhece

Entre a linguagem sua que falavam;

E com pano delgado, que se tece

«Ora imagina agora quão coitados

Andaríamos todos, quão perdidos

De fomes, de tormentas quebrantados,

Por climas e por mares não sabidos,

E do esperar comprido tão cansados

Quanto a desesperar já compelidos,

Por céus não naturais, de qualidade

Inimiga de nossa humanidade!

«Corrupto já e danado o mantimento,

Danoso e mau ao fraco corpo humano

E, além disso, nenhum contentamento,

Que sequer da esperança fosse engano.

Crês tu que, se este nosso ajuntamento

De soldados não fora Lusitano,

Que durara ele tanto obediente,

Porventura, a seu Rei e a seu regente?

«Crês tu que já não foram levantados

Contra seu Capitão, se os resistira,

Fazendo-se piratas, obrigados

De desesperação, de fome, de ira?

Grandemente, por certo, estão provados,

Pois que nenhum trabalho grande os tira

Daquela Portuguesa alta excelência

De lealdade firme e obediência.

«Deixando o porto, enfim, do doce rio

E tornando a cortar a água salgada,

Fizemos desta costa algum desvio,

Deitando pera o pego toda a armada;

Porque, ventando Noto, manso e frio,

Não nos apanhasse a água da enseada

Que a costa faz ali, daquela banda

Donde a rica Sofala o ouro manda.

«Esta passada, logo o leve leme

Encomendado ao sacro Nicolau,

Pera onde o mar na costa brada e geme,

A proa inclina düa e doutra nau;

Quando, indo o coração que espera e teme

E que tanto fiou dum fraco pau,

Do que esperava já desesperado,

«Pela Arábica língua que mal falam

E que Fernão Martins mui bem entende,

Dizem que, por naus que em grandeza igualam

As nossas, o seu mar se corta e fende;

Mas que, lá donde sai o Sol, se abalam

Pera onde a costa ao Sul se alarga e estende,

E do Sul pera o Sol, terra onde havia

Gente, assi como nós, da cor do dia.

«Mui grandemente aqui nos alegrámos

Co a gente, e com as novas muito mais.

Pelos sinais que neste rio achámos

O nome lhe ficou dos Bons Sinais.

Um padrão nesta terra alevantámos,

Que, pera assinalar lugares tais,

Trazia alguns; o nome tem do belo

Guiador de Tobias a Gabelo.

«Aqui de limos, cascas e d’ostrinhos,

Nojosa criação das águas fundas,

Alimpámos as naus, que dos caminhos

Longos do mar vêm sórdidas e imundas.

Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,

Com mostras aprazíveis e jocundas,

Houvemos sempre o usado mantimento,

Limpos de todo o falso pensamento.

«Mas não foi, da esperança grande e imensa

Que nesta terra houvemos, limpa e pura

A alegria; mas logo a recompensa

A Ramnúsia com nova desventura.

Assi no Céu sereno se dispensa;

Co esta condição, pesada e dura,

Nacemos: o pesar terá firmeza,

Mas o bem logo muda a natureza.

«E foi que, de doença crua e feia,

A mais que eu nunca vi, desempararam

Muitos a vida, e em terra estranha e alheia

Os ossos pera sempre sepultaram.

Quem haverá que, sem o ver, o creia,

Que tão disformemente ali lhe incharam

As gingivas na boca, que crecia

A carne e juntamente apodrecia?

«Apodrecia cum fétido e bruto

Cheiro, que o ar vizinho inficionava.

Não tínhamos ali médico astuto,

Cirurgião sutil menos se achava;

Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,

Pela carne já podre assi cortava

Como se fora morta, e bem convinha,

Pois que morto ficava quem a tinha.

«Enfim que nesta incógnita espessura

Deixámos pera sempre os companheiros

Que em tal caminho e em tanta desventura

Foram sempre connosco aventureiros.

Quão fácil é ao corpo a sepultura!

Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros

Estranhos, assi mesmo como aos nossos,

Receberão de todo o Ilustre os ossos.

«Assi que deste porto nos partimos

Com maior esperança e mor tristeza,

E pela costa abaixo o mar abrimos,

Buscando algum sinal de mais firmeza.

Na dura Moçambique, enfim, surgimos,

De cuja falsidade e má vileza

Já serás sabedor, e dos enganos

Dos povos de Mombaça, pouco humanos.

«Até que aqui, no teu seguro porto,

Cuja brandura e doce tratamento

Dará saúde a um vivo e vida a um morto,

Nos trouxe a piedade do alto Assento.

Aqui repouso, aqui doce conforto,

Nova quietação do pensamento,

Nos deste. E vês aqui, se atento ouviste,

Te contei tudo quanto me pediste.

«Julgas agora, Rei, se houve no mundo

Gentes que tais caminhos cometessem?

Crês tu que tanto Eneias e o facundo

Ulisses pelo mundo se estendessem?

Ousou algum a ver do mar profundo,

Por mais versos que dele se escrevessem,

Do que eu vi, a poder d’esforço e de arte,

E do que inda hei-de ver, a oitava parte?

«Esse que bebeu tanto da água Aónia,

Sobre quem têm contenda peregrina,

Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia,

Atenas, Ios, Argo e Salamina;

Essoutro que esclarece toda Ausónia,

A cuja voz, altíssona e divina,

Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece

Mas o Tibre co som se ensoberbece:

«Cantem, louvem e escrevam sempre extremos

Desses seus Semideuses e encareçam,

Fingindo magas Circes, Polifemos,

Sirenas que co canto os adormeçam;

Dêm-lhe mais navegar à vela e remos

Os Cícones e a terra onde se esqueçam

Os companheiros, em gostando o loto;

Dêm-lhe perder nas águas o piloto;

«Ventos soltos lhe finjam e imaginem

Dos odres, e Calipsos namoradas;

Harpias que o manjar lhe contaminem;

Decer às sombras nuas já passadas:

Que, por muito e por muito que se afinem

Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,

A verdade que eu conto, nua e pura,

Vence toda grandíloca escritura!»

Da boca do fecundo Capitão

Pendendo estavam todos, embebidos,

Quando deu fim à longa narração

Dos altos feitos, grandes e subidos.

Louva o Rei o sublime coração

Dos Reis em tantas guerras conhecidos;

Da gente louva a antiga fortaleza,

A lealdade d’ânimo e nobreza.

Vai recontando o povo, que se admira,

O caso cada qual que mais notou;

Nenhum deles da gente os olhos tira

Que tão longos caminhos rodeou.

Mas já o mancebo Délio as rédeas vira

Que o irmão de Lampécia mal guiou,

Por vir a descansar nos Tétios braços;

E el-Rei se vai do mar aos nobres paços.

Quão doce é o louvor e a justa glória

Dos próprios feitos, quando são soados!

Qualquer nobre trabalha que em memória

Vença ou iguale os grandes já passados.

As envejas da ilustre e alheia história

Fazem mil vezes feitos sublimados.

Quem valerosas obras exercita,

Louvor alheio muito o esperta e incita.

Não tinha em tanto os feitos gloriosos

De Aquiles, Alexandro, na peleja,

Quanto de quem o canta os numerosos

Versos: isso só louva, isso deseja.

Os troféus de Milcíades, famosos,

Temístocles despertam só de enveja;

E diz que nada tanto o deleitava.

Como a voz que seus feitos celebrava.

Trabalha por mostrar Vasco da Gama

Que essas navegações que o mundo canta

Não merecem tamanha glória e fama

Como a sua, que o Céu e a Terra espanta.

Si; mas aquele Herói que estima e ama

Com dões, mercês, favores e honra tanta

A lira Mantuana, faz que soe

Eneias, e a Romana glória voe.

Dá a terra Lusitana Cipiões, Césares,

Alexandros, e dá Augustos;

Mas não lhe dá contudo aqueles dões

Cuja falta os faz duros e robustos.

Octávio, entre as maiores opressões,

Compunha versos doutos e venustos

(Não dirá Fúlvia, certo, que é
mentira,

Quando a deixava António por Glafira).

Vai César sojugando toda França

E as armas não lhe impedem a ciência;

Mas, nüa mão a pena e noutra a lança,

Igualava de Cícero a eloquência.

O que de Cipião se sabe e alcança

É nas comédias grande experiência.

Lia Alexandro a Homero de maneira

Que sempre se lhe sabe à cabeceira.

Enfim, não houve forte Capitão

Que não fosse também douto e ciente,

Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,

Senão da Portuguesa tão somente.

Sem vergonha o não digo: que a razão

De algum não ser por versos excelente

É não se ver prezado o verso e rima,

Porque quem não sabe arte, não na estima.

Por isso, e não por falta de natura,

Não há também Virgílios nem Homeros;

Nem haverá, se este costume dura,

Pios Eneias nem Aquiles feros.

Mas o pior de tudo é que a ventura

Tão ásperos os fez e tão austeros,

Tão rudos e de engenho tão remisso,

Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.

Às Musas agardeça o nosso Gama

O muito amor da pátria, que as obriga

A dar aos seus, na lira, nome e fama

De toda a ilustre e bélica fadiga;

Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,

Calíope não tem por tão amiga

Nem as filhas do Tejo, que deixassem

As telas d’ouro fino e que o cantassem.

Porque o amor fraterno e puro gosto

De dar a todo o Lusitano feito

Seu louvor, é somente o pros[s]uposto

Das Tágides gentis, e seu respeito.

Porém não deixe, enfim, de ter disposto

Ninguém a grandes obras sempre o peito:

Que, por esta ou por outra qualquer via,

Não perderá seu preço e sua valia.

Canto VI

NÃO sabia em que modo festejasse

O Rei Pagão os fortes navegantes,

Pera que as amizades alcançasse

Do Rei Cristão, das gentes tão possantes.

Pesa-lhe que tão longe o apousentasse

Das Europeias terras abundantes

A ventura, que não no fez vizinho

Donde Hércules ao mar abriu o caminho.

Com jogos, danças e outras alegrias,

A segundo a polícia Melindana,

Com usadas e ledas pescarias,

Com que a Lageia António alegra e engana,

Este famoso Rei, todos os dias

Festeja a companhia Lusitana,

Com banquetes, manjares desusados,

Com frutas, aves, carnes e pescados.

Mas vendo o Capitão que se detinha

Já mais do que devia, e o fresco vento

O convida que parta e tome asinha

Os pilotos da terra e mantimento,

Não se quer mais deter, que ainda tinha

Muito pera cortar do salso argento.

Já do Pagão benigno se despede,

Que a todos amizade longa pede.

Pede-lhe mais que aquele porto seja

Sempre com suas frotas visitado,

Que nenhum outro bem maior deseja

Que dar a tais barões seu reino e estado;

E que, enquanto seu corpo o esprito reja,

Estará de contino aparelhado

A pôr a vida e reino totalmente

Por tão bom Rei, por tão sublime gente.

Outras palavras tais lhe respondia

O Capitão, e logo, as velas dando,

Pera as terras da Aurora se partia,

Que tanto tempo há já que vai buscando.

No piloto que leva não havia

Falsidade, mas antes vai mostrando

A navegação certa; e assi caminha

Já mais seguro do que dantes vinha.

As ondas navegavam do Oriente,

Já nos mares da Índia, e enxergavam

Os tálamos do Sol, que nace ardente;

Já quási seus desejos se acabavam;

Mas o mau de Tioneu, que na alma sente

As venturas que então se aparelhavam

À gente Lusitana, delas dina,

Arde, morre, blasfema e desatina.

Via estar todo o Céu determinado

De fazer de Lisboa nova Roma;

Não no pode estorvar, que destinado

Está doutro Poder que tudo doma.

Do Olimpo dece enfim, desesperado;

Novo remédio em terra busca e toma:

Entra no húmido reino e vai-se à corte

Daquele a quem o mar caiu em sorte.

No mais interno fundo das profundas

Cavernas altas, onde o mar se esconde,

Lá donde as ondas saem furibundas

Quando às iras do vento o mar responde,

Neptuno mora e moram as jocundas

Nereidas e outros Deuses do mar, onde

As águas campo deixam às cidades

Que habitam estas húmidas Deidades.

Descobre o fundo nunca descoberto

As areias ali de prata fina;

Torres altas se vêem, no campo aberto,

Da transparente massa cristalina;

Quanto se chegam mais os olhos perto

Tanto menos a vista determina

Se é cristal o que vê, se diamante,

Que assi se mostra claro e radiante.

As portas d’ouro fino, e marchetadas

Do rico aljôfar que nas conchas nace,

De escultura fermosa estão lavradas,

Na qual do irado Baco a vista pace;

E vê primeiro, em cores variadas,

Do velho Caos a tão confusa face;

Vêm-se os quatro Elementos trasladados,

Em diversos ofícios ocupados.

Ali, sublime, o Fogo estava em cima,

Que em nenhüa matéria se sustinha;

Daqui as cousas vivas sempre anima,

Despois que Prometeu furtado o tinha.

Logo após ele, leve se sublima

O invisíbil Ar, que mais asinha

Tomou lugar e, nem por quente ou frio,

Algum deixa no mundo estar vazio.

Estava a Terra em montes, revestida

De verdes ervas e árvores floridas,

Dando pasto diverso e dando vida

Às alimárias nela produzidas.

A clara forma ali estava esculpida

Das Águas, entre a terra desparzidas,

De pescados criando vários modos,

Com seu humor mantendo os corpos todos.

Noutra parte, esculpida estava a guerra

Que tiveram os Deuses cos Gigantes;

Está Tifeu debaixo da alta serra

De Etna, que as flamas lança crepitantes.

Esculpido se vê, ferindo a Terra,

Neptuno, quando as gentes, ignorantes,

Dele o cavalo houveram, e a primeira

De Minerva pacífica ouliveira.

Pouca tardança faz Lieu irado

Na vista destas cousas, mas entrando

Nos paços de Neptuno, que, avisado

Da vinda sua, o estava já aguardando,

Às portas o recebe, acompanhado

Das Ninfas, que se estão maravilhando

De ver que, cometendo tal caminho,

Entre no reino d’água o Rei do vinho

– «Ó Neptuno (lhe disse) não te espantes

De Baco nos teus reinos receberes,

Porque também cos grandes e possantes

Mostra a Fortuna injusta seus poderes.

Manda chamar os Deuses do mar, antes

Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres;

Verão da desventura grandes modos:

Ouçam todos o mal que toca a todos.»

Julgando já Neptuno que seria

Estranho caso aquele, logo manda

Tritão, que chame os Deuses da água fria

Que o mar habitam düa e doutra banda.

Tritão, que de ser filho se gloria

Do Rei e de Salácia veneranda,

Era mancebo grande, negro e feio,

Trombeta de seu pai e seu correio.

Os cabelos da barba e os que decem

Da cabeça nos ombros, todos eram

Uns limos prenhes d’água, e bem parecem

Que nunca brando pêntem conheceram.

Nas pontas pendurados não falecem

Os negros mexilhões, que ali se geram.

Na cabeça, por gorra, tinha posta

üa mui grande casca de lagosta.

O corpo nu, e os membros genitais,

Por não ter ao nadar impedimento,

Mas porém de pequenos animais

Do mar todos cobertos, cento e cento:

Camarões e cangrejos e outros mais,

Que recebem de Febe crecimento;

Ostras e birbigões, do musco sujos,

Às costas co a casca os caramujos.

Na mão a grande concha retorcida

Que trazia, com força já tocava;

A voz grande, canora, foi ouvida

Por todo o mar, que longe retumbava.

Já toda a companhia, apercebida,

Dos Deuses pera os paços caminhava

Do Deus que fez os muros de Dardânia,

Destruídos despois da Grega insânia.

Vinha o padre Oceano, acompanhado

Dos filhos e das filhas que gerara;

Vem Nereu, que com Dóris foi casado,

Que todo o mar de Ninfas povoara.

O profeta Proteu, deixando o gado

Marítimo pacer pela água amara,

Ali veio também, mas já sabia

O que o padre Lieu no mar queria.

Vinha por outra parte a linda esposa

De Neptuno, de Celo e Vesta filha,

Grave e leda no gesto, e tão fermosa

Que se amansava o mar, de maravilha.

Vestida üa camisa preciosa

Trazia, de delgada beatilha,

Que o corpo cristalino deixa ver-se,

Que tanto bem não é pera esconder-se.

Anfitrite, fermosa como as flores,

Neste caso não quis que falecesse;

O delfim traz consigo que aos amores

Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.

Cos olhos, que de tudo são senhores,

Qualquer parecerá que o Sol vencesse

Ambas vêm pela mão, igual partido,

Pois ambas são esposas dum marido.

Aquela que, das fúrias de Atamante

Fugindo, veio a ter divino estado,

Consigo traz o filho belo infante,

No número dos Deuses relatado;

Pela praia brincando vem, diante,

Com as lindas conchinhas, que o salgado

Mar sempre cria; e às vezes pela areia

No colo o toma a bela Panopeia.

E o Deus que foi num tempo corpo humano

E por virtude da erva poderosa,

Foi convertido em pexe, e deste dano

Lhe resultou Deidade gloriosa,

Inda vinha chorando o feio engano

Que Circes tinha usado co a fermosa

Scila, que ele ama, desta sendo amado,

Que a mais obriga amor mal empregado.

Já finalmente todos assentados

Na grande sala, nobre e divinal,

As Deusas em riquíssimos estrados,

Os Deuses em cadeiras de cristal,

Foram todos do Padre agasalhados,

Que co Tebano tinha assento igual;

De fumos enche a casa a rica massa

Que no mar nace e Arábia em cheiro passa.

Estando sossegado já o tumulto

Dos Deuses e de seus recebimentos,

Começa a descobrir do peito oculto

A causa o Tioneu de seus tormentos;

Um pouco carregando-se no vulto,

Dando mostra de grandes sentimentos,

Só por dar aos de Luso triste morte

Co ferro alheio, fala desta sorte:

– «Príncipe, que de juro senhoreias,

Dum Pólo ao outro Pólo, o mar irado,

Tu, que as gentes da Terra toda enfreias,

Que não passem o termo limitado;

E tu, padre Oceano, que rodeias

O Mundo universal e o tens cercado,

E com justo decreto assi permites

Que dentro vivam só de seus limites;

«E vós, Deuses do Mar, que não sofreis

Injúria algüa em vosso reino grande,

Que com castigo igual vos não vingueis

De quem quer que por ele corra e ande:

Que descuido foi este em que viveis?

Quem pode ser que tanto vos abrande

Os peitos, com razão endurecidos

Contra os humanos, fracos e atrevidos?

«Vistes que, com grandíssima ousadia,

Foram já cometer o Céu supremo;

Vistes aquela insana fantasia

De tentarem o mar com vela e remo;

Vistes, e ainda vemos cada dia,

Soberbas e insolências tais, que temo

Que do Mar e do Céu, em poucos anos,

Venham Deuses a ser, e nós, humanos.

«Vedes agora a fraca geração

Que dum vassalo meu o nome toma,

Com soberbo e altivo coração

A vós e a mi e o mundo todo doma.

Vedes, o vosso mar cortando vão,

Mais do que fez a gente alta de Roma;

Vedes, o vosso reino devassando,

Os vossos estatutos vão quebrando.

«Eu vi que contra os Mínias, que primeiro

No vosso reino este caminho abriram

Bóreas, injuriado, e o companheiro

Áquilo e os outros todos resistiram.

Pois se do ajuntamento aventureiro

Os ventos esta injúria assi sentiram,

Vós, a quem mais compete esta vingança,

Que esperais? Porque a pondes em tardança?

«E não consinto, Deuses, que cuideis

Que por amor de vós do Céu deci,

Nem da mágoa da injúria que sofreis,

Mas da que se me faz também a mi;

Que aquelas grandes honras que sabeis

Que no mundo ganhei, quando venci

As terras Indianas do Oriente,

Todas vejo abatidas desta gente.

«Que o grão Senhor e Fados, que destinam,

Como lhe bem parece, o baxo mundo,

Famas, mores que nunca, determinam

De dar a estes barões no mar profundo.

Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam

O mal também a Deuses; que, a segundo

Se vê, ninguém já tem menos valia

Que quem com mais razão valer devia.

«E por isso do Olimpo já fugi,

Buscando algum remédio a meus pesares,

Por ver o preço que no Céu perdi, e por

dita acharei nos vossos mares.»

Mais quis dizer, e não passou daqui,

Porque as lágrimas já, correndo a pares,

Lhe saltaram dos olhos, com que logo

Se acendem as Deidades d’água em fogo.

A ira com que súbito alterado

O coração dos Deuses foi num ponto,

Não sofreu mais conselho bem cuidado

Nem dilação nem outro algum desconto:

Ao grande Eolo mandam já recado,

Da parte de Neptuno, que sem conto

Solte as fúrias dos ventos repugnantes,

Que não haja no mar mais navegantes!

Bem quisera primeiro ali Proteu

Dizer, neste negócio, o que sentia;

E, segundo o que a todos pareceu,

Era algüa profunda profecia.

Porém tanto o tumulto se moveu,

Súbito, na divina companhia,

Que Tétis, indinada, lhe bradou:

– «Neptuno sabe bem o que mandou!»

Já lá o soberbo Hipótades soltava

Do cárcere fechado os furiosos

Ventos, que com palavras animava

Contra os varões audaces e animosos.

Súbito, o céu sereno se obumbrava,

Que os ventos, mais que nunca impetuosos,

Começam novas forças a ir tomando,

Torres, montes e casas derribando.

Enquanto este conselho se fazia

No fundo aquoso, a leda, lassa frota

Com vento sossegado prosseguia,

Pelo tranquilo mar, a longa rota.

Era no tempo quando a luz do dia

Do Eóo Hemispério está remota;

Os do quarto da prima se deitavam,

Pera o segundo os outros despertavam.

Vencidos vêm do sono e mal despertos;

Bocijando, a miúdo se encostavam

Pelas antenas, todos mal cobertos ontra os

agudos ares que assopravam;

Os olhos contra seu querer abertos;

Mas estregando, os membros estiravam.

Remédios contra o sono buscar querem,

Histórias contam, casos mil referem.

– «Com que milhor podemos (um dizia)

Este tempo passar, que é tão pesado,

Senão com algum conto de alegria,

Com que nos deixe o sono carregado?»

Responde Leonardo, que trazia

Pensamentos de firme namorado:

– «Que contos poderemos ter milhores,

Pera passar o tempo, que de amores?»

– «Não é (disse Veloso) cousa justa

Tratar branduras em tanta aspereza,

Que o trabalho do mar, que tanto custa,

Não sofre amores nem delicadeza;

Antes de guerra, férvida e robusta

A nossa história seja, pois dureza

Nossa vida há-de ser, segundo entendo,

Que o trabalho por vir mo está dizendo.»

Consentem nisto todos, e encomendam

A Veloso que conte isto que aprova.

– «Contarei (disse) sem que me aprendam

De contar cousa fabulosa ou nova;

E por que os que me ouvirem daqui reprendam ,

A fazer feitos grandes de alta prova,

Dos nacidos direi na nossa terra,

E estes sejam os Doze de Inglaterra.

«No tempo que do Reino a rédea leve,

João, filho de Pedro, moderava,

Despois que sossegado e livre o teve

Do vizinho poder, que o molestava,

Lá na grande Inglaterra, que da neve

Boreal sempre abunda, semeava

A fera Erínis dura e má cizânia,

Que lustre fosse a nossa Lusitânia.

«Entre as damas gentis da corte Inglesa

E nobres cortesãos, acaso um dia

Se levantou discórdia, em ira acesa

(Ou foi opinião, ou foi porfia).

Os cortesãos, a quem tão pouco pesa

Soltar palavras graves de ousadia,

Dizem que provarão que honras e famas

Em tais damas não há pera ser damas;

«E que se houver alguém, com lança e espada,

Que queira sustentar a parte sua,

Que eles, em campo raso ou estacada,

Lhe darão feia infâmia ou morte crua.

A feminil fraqueza, pouco usada,

Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua

De forças naturais convenientes,

Socorro pede a amigos e parentes.

«Mas, como fossem grandes e possantes

No reino os inimigos, não se atrevem

Nem parentes, nem férvidos amantes,

A sustentar as damas, como devem.

Com lágrimas fermosas, e bastantes

A fazer que em socorro os Deuses levem

De todo o Céu, por rostos de alabastro,

Se vão todas ao Duque de Alencastro.

«Era este Ingrês potente e militara

Cos Portugueses já contra Castela,

Onde as forças magnânimas provara

Dos companheiros, e benigna estrela.

Não menos nesta terra exprimentara

Namorados afeitos, quando nela

A filha viu, que tanto o peito doma

Do forte Rei que por mulher a toma.

«Este, que socorrer-lhe não queria

Por não causar discórdias intestinas,

Lhe diz: – «Quando o direito pretendia

Do Reino lá das terras Iberinas,

Nos Lusitanos vi tanta ousadia,

Tanto primor e partes tão divinas,

Que eles sós poderiam, se não erro,

Sustentar vossa parte a fogo e ferro;

«E se, agravadas damas, sois servidas,

Por vós lhe mandarei embaixadores,

Que, por cartas discretas e polidas,

De vosso agravo os façam sabedores;

Também, por vossa parte, encarecidas

Com palavras d~ afagos e d, amores

Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio

Que ali tereis socorro e forte esteio. »

«Destarte as aconselha o Duque experto

E logo lhe nomeia doze fortes;

E por que cada dama um tenha certo,

Lhe manda que sobre eles lancem sortes,

Que elas só doze são; e descoberto

Qual a qual tem caído das consortes,

Cad’~ ua escreve ao seu, por vários modos,

E todas a seu Rei, e o Duque a todos.

«Já chega a Portugal o mensageiro,

Toda a corte alvoroça a novidade;

Quisera o Rei sublime ser primeiro,

Mas não lho sofre a régia Majestade.

Qualquer dos cortesãos aventureiro

Deseja ser, com férvida vontade,

E só fica por bem-aventurado

Quem já vem pelo Duque nomeado.

«Lá na leal cidade donde teve

Origem (como é fama) o nome eterno

De Portugal, armar madeiro leve

Manda o que tem o leme do governo.

Apercebem-se os doze, em tempo breve,

D’armas e roupas de uso mais moderno,

De elmos, cimeiras, letras e primores,

Cavalos, e concertos de mil cores.

«Já do seu Rei tomado têm licença,

Pera partir do Douro celebrado,

Aqueles que escolhidos por sentença

Foram do Duque Inglês exprimentado.

Não há na companhia diferença

De cavaleiro, destro ou esforçado;

Mas um só, que Magriço se dizia,

Destarte fala à forte companhia:

– «Fortíssimos consócios, eu desejo

Há muito já de andar terras estranhas,

Por ver mais águas que as do Douro e Tejo,

Várias gentes e leis e várias manhas.

Agora que aparelho certo vejo,

(Pois que do mundo as cousas são tamanhos)

Quero, se me deixais, ir só por terra,

Porque eu serei convosco em Inglaterra.

«E quando caso for que eu, impedido

Por Quem das cousas é última linha,

Não for convosco ao prazo instituído,

Pouca falta vos faz a falta minha:

Todos por mi fareis o que é devido.

Mas, se a verdade o esprito me adivinha,

Rios, montes, Fortuna ou sua enveja

Não farão que eu convosco lá não
seja.»

«Assi diz e, abraçados os amigos

E tomada licença, enfim se parte.

Passa Lião, Castela, vendo antigos

Lugares que ganhara o pátrio Marte;

Navarra, cos altíssimos perigos

Do Perineu, que Espanha e Gália parte.

Vistas, enfim, de França as cousas grandes,

No grande empório foi parar de Frandes.

«Ali chegado, ou fosse caso ou manha,

Sem passar se deteve muitos dias.

Mas dos onze a ilustríssima companha

Cortam do Mar do Norte as ondas frias;

Chegados de Inglaterra à costa de estranha,

Pera de Londres já fazem todos vias;

Do Duque são com festas agasalhados

E das damas servidos e amimados.

«Chega-se o prazo e dia assinalado

De entrar em campo já cos doze Ingleses,

Que pelo Rei já tinham segurado;

Armam-se d’elmos, grevas e de arneses.

Já as damas têm por si, fulgente e armado,

O Mavorte feroz dos Portugueses;

Vestem-se elas de cores e de sedas,

De ouro e de jóias mil, ricas e ledas.

«Mas aquela a quem fora em sorte dado

Magriço, que não vinha, com tristeza

Se veste, por não ter quem nomeado

Seja seu cavaleiro nesta empresa;

Bem que os onze apregoam que acabado

Será o negócio assi na corte Inglesa,

Que as damas vencedoras se conheçam,

Posto que dous e três dos seus faleçam.

«Já num sublime e púbrico teatro

Se assenta o Rei Inglês com toda a corte:

Estavam três e três e quatro e quatro,

Bem como a cada qual coubera em sorte;

Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro,

De força, esforço e d’ânimo mais forte,

Outros doze sair, como os Ingleses,

No campo. contra os onze Portugueses.

«Mastigam os cavalos, escumando,

Os áureos freios, com feroz sembrante;

Estava o Sol nas armas rutilando,

Como em cristal ou rígido diamante;

Mas enxerga-se, num e noutro bando,

Partido desigual e dissonante

Dos onze contra os doze; quando a gente

Começa a alvoroçar-se geralmente.

«Viram todos o rosto aonde havia

A causa principal do reboliço:

Eis entra um cavaleiro, que trazia

Armas, cavalo, ao bélico serviço;

Ao Rei e às damas fala e logo se ia

Pera os onze, que este era o grão Magriço;

Abraça os companheiros, como amigos ,

A quem não falta, certo nos perigos.

«A dama, como ouviu que este era aquele

Que vinha a defender seu nome e fama,

Se alegra e veste ali do animal de Hele,

Que a gente bruta mais que virtude ama.

Já dão sinal, e o som da tuba impele

Os belicosos ânimos, que inflama;

Picam d’esporas, largam rédeas logo,

Abaxam lanças, fere a terra fogo;

«Dos cavalos o estrépito parece

Que faz que o chão debaixo todo treme;

O coração no peito que estremece

De quem os olha, se alvoroça e teme.

Qual do cavalo voa, que não dece;

Qual, co cavalo em terra dando, geme;

Qual vermelhas as armas faz de brancas;

Qual cos penachos do elmo açouta as ancas.

«Algum dali tomou perpétuo sono

E fez da vida ao fim breve intervalo;

Correndo, algum cavalo vai sem dono,

E noutra parte o dono sem cavalo.

Cai a soberba Inglesa de seu trono,

Que dous ou três já fora vão do valo.

Os que de espada vêm fazer batalha,

Mais acham já que arnês, escudo e malha.

«Gastar palavras em contar extremos

De golpes feros, cruas estocadas,

É desses gastadores, que sabemos,

Maus do tempo, com fábulas sonhadas.

Basta, por fim do caso, que entendemos

Que com finezas altas e afamadas,

Cos nossos fica a palma da vitória

E as damas vencedoras e com glória.

«Recolhe o Duque os doze vencedores

Nos seus paços, com festas e alegria;

Cozinheiros ocupa e caçadores,

Das damas e fermosa companhia,

Que querem dar aos seus libertadores

Banquetes mil, cada hora e cada dia,

Enquanto se detêm em Inglaterra,

Até tornar à doce e cara terra.

«Mas dizem que, contudo, o grão Magriço,

Desejoso de ver as cousas grandes,

Lá se deixou ficar, onde um serviço

Notável à Condessa fez de Frandes;

E, como quem não era já noviço

Em todo trance onde tu, Marte, mandes,

Um Francês mata em campo, que o destino

Lá teve de Torcato e de Corvino.

«Outro também dos doze em Alemanha

Se lança e teve um fero desafio

Cum Germano enganoso, que, com manha

Não devida, o quis pôr no extremo fio.»

Contando assi Veloso, já a companha

Lhe pede que não faça tal desvio

Do caso de Magriço e vencimento,

Nem deixe o de Alemanha em esquecimento.

Mas neste passo, assi prontos estando,

Eis o mestre, que olhando os ares anda,

O apito toca: acordam, despertando,

Os marinheiros düa e doutra banda.

E, porque o vento vinha refrescando,

Os traquetes das gáveas tomar manda.

– «Alerta (disse) estai, que o vento crece

Daquela nuvem negra que aparece! »

Não eram os traquetes bem tomados,

Quando dá a grande e súbita procela.

– «Amaina (disse o mestre a grandes brados),

Amaina (disse), amaina a grande vela!»

Não esperam os ventos indinados

Que amainassem, mas, juntos dando nela,

Em pedaços a fazem cum ruído

Que o Mundo pareceu ser destruído!

O céu fere com gritos nisto a gente,

Cum súbito temor e desacordo;

Que, no romper da vela, a nau pendente

Toma grão suma d’água pelo bordo.

– «Alija (disse o mestre rijamente),

Alija tudo ao mar, não falte acordo!

Vão outros dar à bomba, não cessando;

À bomba, que nos imos alagando!»

Correm logo os soldados animosos

A dar à bomba; e, tanto que chegaram,

Os balanços que os mares temerosos Deram à nau,
num bordo os derribaram.

Três marinheiros, duros e forçosos,

A menear o leme não bastaram;

Talhas lhe punham, düa e doutra parte,

Sem aproveitar dos homens força e arte.

Os ventos eram tais que não puderam

Mostrar mais força d’ímpeto cruel,

Se pera derribar então vieram fortíssima

Torre de Babel, os altíssimos mares, que creceram,

A pequena grandura dum batel

Mostra a possante nau, que move espanto,

Vendo que se sustém nas ondas tanto.

A nau grande, em que vai Paulo da Gama,

Quebrado leva o masto pelo meio,

Quási toda alagada; a gente chama

Aquele que a salvar o mundo veio.

Não menos gritos vãos ao ar derrama

Toda a nau de Coelho, com receio,

Conquanto teve o mestre tanto tento

Que primeiro amainou que desse o vento.

Agora sobre as nuvens os subiam

As ondas de Neptuno furibundo;

Agora a ver parece que deciam

As íntimas entranhas do Profundo.

Noto, Austro, Bóreas, Áquilo, queriam

Arruinar a máquina do Mundo;

A noite negra e feia se alumia

Cos raios em que o Pólo todo ardia!

As Alciónias aves triste canto

Junto da costa brava levantaram,

Lembrando-se de seu passado pranto,

Que as furiosas águas lhe causaram.

Os delfins namorados, entretanto,

Lá nas covas marítimas entraram,

Fugindo à tempestade e ventos duros,

Que nem no fundo os deixa estar seguros.

Nunca tão vivos raios fabricou

Contra a fera soberba dos Gigantes

O grão ferreiro sórdido que obrou

Do enteado as armas radiantes;

Nem tanto o grão Tonante arremessou

Relâmpados ao mundo, fulminantes,

No grão dilúvio donde sós viveram

Os dous que em gente as pedras converteram.

Quantos montes, então, que derribaram

As ondas que batiam denodadas!

Quantas árvores velhas arrancaram

Do vento bravo as fúrias indinadas!

As forçosas raízes não cuidaram

Que nunca pera o céu fossem viradas

Nem as fundas areias que pudessem

Tanto os mares que em cima as revolvessem.

Vendo Vasco da Gama que tão perto

Do fim de seu desejo se perdia,

Vendo ora o mar até o Inferno aberto,

Ora com nova fúria ao Céu subia,

Confuso de temor, da vida incerto,

Onde nenhum remédio lhe valia,

Chama aquele remédio santo e forte

Que o impossíbil pode, desta sorte:

– «Divina Guarda, angélica, celeste,

Que os céus, o mar e terra senhoreias:

Tu, que a todo Israel refúgio deste

Por metade das águas Eritreias;

Tu, que livraste Paulo e defendeste

Das Sirtes arenosas e ondas feias,

E, guardaste, cos filhos, o segundo

Povoador do alagado e vácuo mundo:

«Se tenho novos medos perigosos

Doutra Cila e Caríbdis já passados,

Outras Sirtes e baxos arenosos,

Outros Acroceráunios infamados;

No fim de tantos casos trabalhosos,

Porque somos de Ti desempatados,

Se este nosso trabalho não te ofende,

Mas antes teu serviço só pretende?

«Oh ditosos aqueles que puderam

Entre as agudas lanças Africanas

Morrer, enquanto fortes sustiveram

A santa Fé nas terras Mauritanas;

De quem feitos ilustres se souberam,

De quem ficam memórias soberanas,

De quem se ganha a vida com perdê-la,

Doce fazendo a morte as honras dela!»

Assi dizendo, os ventos, que lutam

Como touros indómitos, bramando,

Mais e mais a tormenta acrecentavam,

Pela miúda enxárcia assoviando.

Relâmpados medonhos não cessavam,

Feros trovões, que vêm representando

Cair o Céu dos eixos sobre a Terra,

Consigo os Elementos terem guerra.

Mas já a amorosa Estrela cintilava

Diante do Sol claro, no horizonte,

Mensageira do dia, e visitava

A terra e o largo mar, com leda fronte.

A Deusa que nos Céus a governava,

De quem foge o ensífero Orionte,

Tanto que o mar e a cara armada vira,

Tocada junto foi de medo e de ira.

– «Estas obras de Baco são, por certo

(Disse), mas não será que avante leve

Tão danada tenção, que descoberto

Me será sempre o mal a que se atreve.»

Isto dizendo, dece ao mar aberto,

No caminho gastando espaço breve,

Enquanto manda as Ninfas amorosas

Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.

Grinaldas manda pôr de várias cores

Sobre cabelos louros a porfia.

Quem não dirá que nacem roxas flores

Sobre ouro natural, que Amor enfia?

Abrandar determina, por amores,

Dos ventos a nojosa companhia,

Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,

Que mais fermosas vinham que as estrelas.

Assi foi; porque, tanto que chegaram

À vista delas, logo lhe falecem

As forças com que dantes pelejaram,

E já como rendidos lhe obedecem;

Os pés e mãos parece que lhe ataram

Os cabelos que os raios escurecem.

A Bóreas, que do peito mais queria,

Assi disse a belíssima Oritia:

– «Não creias, fero Bóreas, que te creio

Que me tiveste nunca amor constante,

Que brandura é de amor mais certo arreio

E não convém furor a firme amante.

Se já não pões a tanta insânia
freio,

Não esperes de mi, daqui em diante,

Que possa mais amar-te, mas temer-te;

Que amor, contigo, em medo se converte.»

Assi mesmo a fermosa Galateia Dizia ao fero Noto, que bem
sabe

Que dias há que em vê-la se recreia,

E bem crê que com ele tudo acabe.

Não sabe o bravo tanto bem se o creia,

Que o coração no peito lhe não cabe;

De contente de ver que a dama o manda,

Pouco cuida que faz, se logo abranda.

Desta maneira as outras amansavam

Subitamente os outros amadores;

E logo à linda Vénus se entregavam,

Amansadas as iras e os furores.

Ela lhe prometeu, vendo que amavam,

Sempiterno favor em seus amores,

Nas belas mãos tomando-lhe homenagem

De lhe serem leais esta viagem.

Já a manhã clara dava nos outeiros

Por onde o Ganges murmurando soa,

Quando da celsa gávea os marinheiros

Enxergaram terra alta, pela proa.

Já fora de tormenta e dos primeiros

Mares, o temor vão do peito voa.

Disse alegre o piloto Melindano:

– «Terra é de Calecu, se não me engano.

«Esta é, por certo, a terra que buscais

Da verdadeira Índia, que aparece;

E se do mundo mais não desejais,

Vosso trabalho longo aqui fenece.»

Sofrer aqui não pôde o Gama mais,

De ledo em ver que a terra se conhece;

Os giolhos no chão, as mãos ao Céu,

A mercê grande a Deus agardeceu.

As graças a Deus dava, e razão tinha,

Que não somente a terra lhe mostrava

Que, com tanto temor, buscando vinha,

Por quem tanto trabalho exprimentava,

Mas via-se livrado, tão asinha,

Da morte, que no mar lhe aparelhava

O vento duro, férvido e medonho,

Como quem despertou de horrendo sonho.

Por meio destes hórridos perigos,

Destes trabalhos graves e temores,

Alcançam os que são de fama amigos

As honras imortais e graus maiores;

Não encostados sempre nos antigos

Troncos nobres de seus antecessores;

Não nos leitos dourados, entre os finos

Animais de Moscóvia zibelinos;

Não cos manjares novos e esquisitos,

Não cos passeios moles e ouciosos,

Não cos vários deleites e infinitos,

Que afeminam os peitos generosos;

Não cos nunca vencidos apetitos,

Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,

Que não sofre a nenhum que o passo mude

Pera algüa obra heróica de virtude;

Mas com buscar, co seu forçoso braço,

As honras que ele chame próprias suas;

Vigiando e vestindo o forjado aço,

Sofrendo tempestades e ondas cruas,

Vencendo os torpes frios no regaço

Do Sul, e regiões de abrigo nuas,

Engolindo o corrupto mantimento

Temperado com um árduo sofrimento;

E com forçar o rosto, que se enfia,

A parecer seguro, ledo, inteiro,

Pera o pelouro ardente que assovia

E leva a perna ou braço ao companheiro.

Destarte o peito um calo honroso cria,

Desprezador das honras e dinheiro,

Das honras e dinheiro que a ventura

Forjou, e não virtude justa e dura.

Destarte se esclarece o entendimento,

Que experiências fazem repousado,

E fica vendo, como de alto assento,

O baxo trato humano embaraçado.

Este, onde tiver força o regimento

Direito e não de afeitos ocupado,

Subirá (como deve) a ilustre mando,

Contra vontade sua, e não rogando.

Canto VII

JÁ se viam chegados junto à terra

Que desejada já de tantos fora,

Que entre as correntes Indicas se encerra

E o Ganges, que no Céu terreno mora.

Ora sus, gente forte, que na guerra

Quereis levar a palma vencedora:

Já sois chegados, já tendes diante

A terra de riquezas abundante!

A vós, ó geração de Luso, digo,

Que tão pequena parte sois no mundo,

Não digo inda no mundo, mas no amigo

Curral de Quem governa o Céu rotundo;

Vós, a quem não somente algum perigo

Estorva conquistar o povo imundo,

Mas nem cobiça ou pouca obediência

Da Madre que nos Céus está em essência;

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,

Que o fraco poder vosso não pesais;

Vós, que, à custa de vossas várias mortes,

A lei da vida eterna dilatais:

Assi do Céu deitadas são as sortes

Que vós, por muito poucos que sejais,

Muito façais na santa Cristandade.

Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

Vede’los Alemães, soberbo gado,

Que por tão largos campos se apacenta;

Do sucessor de Pedro rebelado,

Novo pastor e nova seita inventa;

Vede’lo em feias guerras ocupado,

Que inda co cego error se não contenta,

Não contra o superbíssimo Otomano,

Mas por sair do jugo soberano.

Vede’lo duro Inglês, que se nomeia

Rei da velha e santíssima Cidade,

Que o torpe Ismaelita senhoreia

(Quem viu honra tão longe da verdade?),

Entre as Boreais neves se recreia,

Nova maneira faz de Cristandade:

Pera os de Cristo tem a espada nua,

Não por tomar a terra que era sua.

Guarda-lhe, por entanto, um falso Rei

A cidade Hierosólima terreste,

Enquanto ele não guarda a santa Lei

Da cidade Hierosólima celeste.

Pois de ti, Galo indino, que direi?

Que o nome «Cristianíssimo» quiseste,

Não pera defendê-lo nem guardá-lo,

Mas pera ser contra ele e derribá-lo!

Achas que tens direito em senhorios

De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto,

E não contra o Cinífio e Nilo rios,

Inimigos do antigo nome santo?

Ali se hão-de provar da espada os fios

Em quem quer reprovar da Igreja o canto.

De Carlos, de Luís, o nome e a terra

Herdaste, e as causas não da justa guerra?

Pois que direi daqueles que em delícias,

Que o vil ócio no mundo traz consigo,

Gastam as vidas, logram as divícias,

Esquecidos do seu valor antigo?

Nascem da tirania inimicícias,

Que o povo forte tem, de si inimigo.

Contigo, Itália, falo, já sumersa

Em vícios mil, e de ti mesma adversa.

Ó míseros Cristãos, pola ventura

Sois os dentes, de Cadmo desparzidos,

Que uns aos outros se dão à morte dura,

Sendo todos de um ventre produzidos?

Não vedes a divina Sepultura

Possuída de Cães, que, sempre unidos,

Vos vêm tomar a vossa antiga terra,

Fazendo-se famosos pela guerra?

Vedes que têm por uso e por decreto,

Do qual são tão inteiros observantes,

Ajuntarem o exército inquieto

Contra os povos que são de Cristo amantes;

Entre vós nunca deixa a fera Aleto

De samear cizânias repugnantes.

Olhai se estais seguros de perigos,

Que eles, e vós, sois vossos inimigos.

Se cobiça de grandes senhorios

Vos faz ir conquistar terras alheias,

Não vedes que Pactolo e Hermo rios

Ambos volvem auríferas areias?

Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios;

África esconde em si luzentes veias;

Mova-vos já, sequer, riqueza tanta,

Pois mover-vos não pode a Casa Santa.

Aquelas invenções, feras e novas,

De instrumentos mortais da artelharia

Já devem de fazer as duras provas

Nos muros de Bizâncio e de Turquia.

Fazei que torne lá às silvestres covas

Dos Cáspios montes e da Cítia fria

A Turca geração, que multiplica

Na polícia da vossa Europa rica.

Gregos, Traces, Arménios, Georgianos,

Bradando vos estão que o povo bruto

Lhe obriga os caros filhos aos profanos

Preceptos do Alcorão (duro tributo!).

Em castigar os feitos inumanos

Vos gloriai de peito forte e astuto,

E não queirais louvores arrogantes

De serdes contra os vossos mui possantes.

Mas, entanto que cegos e sedentos

Andais de vosso sangue, ó gente insana,

Não faltarão Cristãos atrevimentos

Nesta pequena casa Lusitana:

De Africa tem marítimos assentos;

É na Ásia mais que todas soberana;

Na quarta parte nova os campos ara;

E, se mais mundo houvera, lá chegara.

E vejamos, entanto, que acontece

Àqueles tão famosos navegantes,

Despois que a branda Vénus enfraquece

O furor vão dos ventos repugnantes;

Despois que a larga terra lhe aparece,

Fim de suas perfias tão constantes,

Onde vem samear de Cristo a lei

E dar novo costume e novo Rei.

Tanto que à nova terra se chegaram,

Leves embarcações de pescadores

Acharam, que o caminho lhe mostraram

De Calecu, onde eram moradores.

Pera lá logo as proas se inclicaram,

Porque esta era a cidade, das milhores

Do Malabar, milhor, onde vivia

O Rei que a terra toda possuía.

Além do Indo jaz e aquém do Gange

Um terreno mui grande e assaz famoso

Que pela parte Austral o mar abrange

E pera o Norte o Emódio cavernoso.

Jugo de Reis diversos o constrange

A várias leis: alguns o vicioso

Mahoma, alguns os Ídolos adoram,

Alguns os animais que entre eles moram.

Lá bem no grande monte que, cortando

Tão larga terra, toda Ásia discorre,

Que nomes tão diversos vai tomando Segundo as regiões
por onde corre, Do mar, com Ceilão ínsula confronta; De terra
e gente, são mais abundantes; Mais de ouro e pedras que de forte gente.
Do mar a natural ferocidade. As fontes saem donde vêm manando Os rios
cuja grão corrente morre No mar Índico, e cercam todo o peso
Do terreno, fazendo-o quersoneso. Entre um e o outro rio, em grande espaço
Sai da larga terra üa longa ponta, Quási piramidal, que, no regaço
E junto donde nasce o largo braço Gangético, o rumor antigo
conta Que os vizinhos, da terra moradores, Do cheiro se mantêm das finas
flores. Mas agora, de nomes e de usança Novos e vários são
os habitantes: Os Deliis, os Patanes, que em possança Decanis, Oriás,
que a esperança Têm de sua salvação nas ressonantes
Águas do Gange; e a terra de Bengala, Fértil de sorte que outra
não lhe iguala; O Reino de Cambaia belicoso (Dizem que foi de Poro,
Rei potente); O Reino de Narsinga, poderoso Aqui se enxerga, lá do
mar undoso, Um monte alto, que corre longamente, Servindo ao Malabar de forte
muro, Com que do Canará vive seguro. Da terra os naturais Ihe chamam
Gate, Do pé do qual, pequena quantidade, Se estende üa fralda
estreita, que combate

Aqui de outras cidades, sem debate,

Calecu tem a ilustre dignidade

De cabeça de Império, rica e bela;

Samorim se intitula o senhor dela.

Chegada a frota ao rico senhorio,

Um Português, mandado, logo parte

A fazer sabedor o Rei gentio

Da vinda sua a tão remota parte.

Entrando o mensageiro pelo rio

Que ali nas ondas entra, a não vista arte,

A cor, o gesto estranho, o trajo novo,

Fez concorrer a vê-lo todo o povo.

Entre a gente que a vê-lo concorria,

Se chega um Mahometa, que nascido

Fora na região da Berberia,

Lá onde fora Anteu obedecido.

(Ou, pela vezinhança, já teria

O Reino Lusitano conhecido,

Ou foi já assinalado de seu ferro;

Fortuna o trouxe a tão longo desterro).

Em vendo o mensageiro, com jocundo

Rosto, como quem sabe a língua Hispana,

Lhe disse: – « Quem te trouxe a estoutro mundo,

Tão longe da tua pátria Lusitana?»

– «Abrindo (lhe responde) o mar profundo

Por onde nunca veio gente humana;

Vimos buscar do Indo a grão corrente,

Por onde a Lei divina se acrecente.»

Espantado ficou da grão viagem

O Mouro, que Monçaide se chamava,

Ouvindo as opressões que na passagem

Do mar o Lusitano lhe contava.

Mas vendo, enfim, que a força da mensagem

Só pera o Rei da terra relevava,

Lhe diz que estava fora da cidade,

Mas de caminho pouca quantidade;

E que, entanto que a nova lhe chegasse

De sua estranha vinda, se queria,

Na sua pobre casa repousasse

E do manjar da terra comeria;

E despois que se um pouco recreasse,

Co ele pera a armada tornaria,

Que alegria não pode ser tamanha

Que achar gente vizinha em terra estranha.

O Português aceita de vontade

O que o ledo Monçaide lhe oferece;

Como se longa fora já a amizade,

Co ele come e bebe e lhe obedece.

Ambos se tornam logo da cidade

Pera a frota, que o Mouro bem conhece.

Sobem à capitaina, e toda a gente

Monçaide recebeu benignamente.

O Capitão o abraça, em cabo ledo,

Ouvindo clara a língua de Castela;

Junto de si o assenta e, pronto e quedo,

Pela terra pergunta e cousas dela.

Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo,

Só por ouvir o amante da donzela

Eurídice, tocando a lira de ouro,

Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro.

Ele começa: – «Ó gente, que a Natura

Vizinha fez de meu paterno ninho,

Que destino tão grande ou que ventura

Vos trouxe a cometerdes tal caminho?

Não é sem causa, não, oculta e escura,

Vir do longinco Tejo e ignoto Minho,

Por mares nunca doutro lenho arados,

A Reinos tão remotos e apartados.

«Deus, por certo, vos traz, porque pretende

Algum serviço seu por vós obrado;

Por isso só vos guia e vos defende

Dos imigos, do mar, do vento irado.

Sabei que estais na Índia, onde se estende

Diverso povo, rico e prosperado

De ouro luzente e fina pedraria

Cheiro suave, ardente especiaria.

«Esta província, cujo porto agora

Tomado tendes, Malabar se chama;

Do culto antigo os Ídolos adora,

Que cá por estas partes se derrama;

De diversos Reis é, mas dum só fora

Noutro tempo, segundo a antiga fama:

Saramá Perimal foi derradeiro

Rei que este Reino teve unido e inteiro.

«Porém, como a esta terra então viessem

De lá do seio Arábico outras gentes

Que o culto Mahomético trouxessem,

No qual me instituíram meus parentes,

Sucedeu que, pregando, convertessem

O Perimal; de sábios e eloquentes,

Fazem-lhe a Lei tomar com fervor tanto

Que pros[s]upôs de nela morrer santo.

«Naus arma e nelas mete, curioso,

Mercadoria que ofereça, rica,

Pera ir nelas a ser religioso

Onde o Profeta jaz que a Lei pubrica.

Antes que parta, o Reino poderoso

Cos seus reparte, porque não lhe fica

Herdeiro próprio; faz os mais aceitos

Ricos, de pobres; livres, de sujeitos.

«A um Cochim e a outro Cananor,

A qual Chale, a qual a Ilha da Pimenta,

A qual Coulão, a qual dá Cranganor,

E os mais, a quem o mais serve e contenta.

Um só moço, a quem tinha muito amor,

Despois que tudo deu, se lhe apresenta:

Pera este Calecu sòmente fica,

Cidade já por trato nobre e rica.

«Esta lhe dá, co título excelente

De Emperador, que sobre os outros mande.

Isto feito, se parte diligente

Pera onde em santa vida acabe e ande.

E daqui fica o nome de potente

Çamori, mais que todos dino e grande,

Ao moço e descendentes, donde vem

Este que agora o Império manda e tem.

«A Lei da gente toda, rica e pobre,

De fábulas composta se imagina.

Andam nus e somente um pano cobre

As partes que a cobrir Natura ensina.

Dous modos há de gente, porque a nobre

Naires chamados são, e a menos dina

Poleás tem por nome, a quem obriga

A lei não mesturar a casta antiga;

«Porque os que usaram sempre um mesmo ofício,

De outro não podem receber consorte;

Nem os filhos terão outro exercício

Senão o de seus passados, até morte.

Pera os Naires é, certo, grande vício

Destes serem tocados; de tal sorte

Que, quando algum se toca porventura,

Com cerimónias mil se alimpa e apura.

«Desta sorte o Judaico povo antigo

Não tocava na gente de Samária.

Mais estranhezas inda das que digo

Nesta terra vereis de usança vária.

Os Naires sós são dados ao perigo

Das armas; sós defendem da contrária

Banda o seu Rei, trazendo sempre usada

Na esquerda a adarga e na direita a espada.

«Brâmenes são os seus religiosos,

Nome antigo e de grande preminência;

Observam os preceitos tão famosos

Dum que primeiro pôs nome à ciência;

Não matam cousa viva e, temerosos,

Das carnes têm grandíssima abstinência.

Somente no Venéreo ajuntamento

Têm mais licença e menos regimento.

«Gerais são as mulheres, mas somente

Pera os da geração de seus maridos

(Ditosa condição, ditosa gente,

Que não são de ciúmes ofendidos!)

Estes e outros costumes vàriamente

São pelos Malabares admitidos.

A terra é grossa em trato, em tudo aquilo

Que as ondas podem dar, da China ao Nilo.»

Assi contava o Mouro; mas vagando

Andava a fama já pela cidade

Da vinda desta gente estranha, quando

O Rei saber mandava da verdade.

Já vinham pelas ruas caminhando,

Rodeados de todo sexo e idade,

Os principais que o Rei buscar mandara

O Capitão da armada que chegara.

Mas ele, que do Rei já tem licença

Pera desembarcar, acompanhado

Dos nobres Portugueses, sem detença

Parte, de ricos panos adornado

Das cores a fermosa diferença

A vista alegra ao povo alvoroçado;

O remo compassado fere frio

Agora o mar, despois o fresco rio.

Na prata um regedor do Reino estava

Que, na sua língua, «Catual» se chama,

Rodeado de Naires, que esperava

Com desusada festa o nobre Gama.

Já na terra, nos braços o levava

E num portátil leito üa rica cama

Lhe oferece em que vá (costume usado),

Que nos ombros dos homens é levado.

Destarte o Malabar, destarte o Luso,

Caminham lá pera onde o Rei o espera;

Os outros Portugueses vão ao uso

Que infantaria segue, esquadra fera.

O povo que concorre vai confuso

De ver a gente estranha, e bem quisera

Perguntar; mas, no tempo já passado,

Na Torre de Babel lhe foi vedado.

O Gama e o Catual iam falando

Nas cousas que lhe o tempo oferecia;

Monçaide, entr’eles, vai interpretando

As palavras que de ambos entendia.

Assi pela cidade caminhando,

Onde üa rica fábrica se erguia

De um sumptuoso templo já chegavam,

Pelas portas do qual juntos entravam.

Ali estão das Deidades as figuras,

Esculpidas em pau e em pedra fria,

Vários de gestos, vários de pinturas,

A segundo o Demónio lhe fingia;

Vêm-se as abomináveis esculturas,

Qual a Quimera em membros se varia;

Os cristãos olhos, a ver Deus usados

Em forma humana, estão maravilhados.

Um, na cabeça cornos esculpidos,

Qual Júpiter Amon em Líbia estava;

Outro, num corpo rostos tinha unidos,

Bem como o antigo Jano se pintava;

Outro, com muitos braços divididos,

A Briareu parece que imitava;

Outro, fronte canina tem de fora,

Qual Anúbis Menfítico se adora.

Aqui feita do bárbaro Gentio

A supersticiosa adoração,

Direitos vão, sem outro algum desvio,

Pera onde estava o Rei do povo vão.

Engrossando-se vai da gente o fio

Cos que vêm ver o estranho Capitão.

Estão pelos telhados e janelas

Velhos e moços, donas e donzelas.

Já chegam perto, e não [com] passos lentos,

Dos jardins odoríferos fermosos,

Que em si escondem os régios apousentos,

Altos de torres não, mas sumptuosos;

Edificam-se os nobres seus assentos

Por entre os arvoredos deleitosos:

Assi vivem os Reis daquela gente,

No campo e na cidade juntamente.

Pelos portais da cerca a sutileza

Se enxerga da Dedálea facultade,

Em figuras mostrando, por nobreza,

Da Índia a mais remota antiguidade.

Afiguradas vão com tal viveza

As histórias daquela antiga idade,

Que quem delas tiver notícia inteira,

Pela sombra conhece a verdadeira.

Estava um grande exército, que pisa

A terra Oriental que o Idaspe lava;

Rege-o um capitão de fronte lisa,

Que com frondentes tirsos pelejava

(Por ele edificada estava Nisa

Nas ribeiras do rio que manava),

Tão próprio que, se ali estiver Semele,

Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

Mais avante, bebendo, seca o rio

Mui grande multidão da Assíria gente,

sujeita a feminino senhorio

De üa tão bela como incontinente.

Ali tem, junto ao lado nunca frio,

Esculpido o feroz ginete ardente

Com quem teria o filho competência.

Amor nefando, bruta incontinência!

Daqui mais apartadas, tremulavam

As bandeiras de Grécia gloriosas

(Terceira Monarquia), e sojugavam

Até as águas Gangéticas undosas.

Dum capitão mancebo se guiavam,

De palmas rodeado valerosas,

Que já não de Filipo, mas, sem falta

De progénie de Júpiter se exalta.

Os Portugueses vendo estas memórias,

Dizia o Catual ao Capitão:

– «Tempo cedo virá que outras vitórias

Estas que agora olhais abaterão;

Aqui se escreverão novas histórias

Por gentes estrangeiras que virão;

Que os nossos sábios magos o alcançaram

Quando o tempo futuro especularam.

«E diz-lhe mais a mágica ciência

Que, pera se evitar força tamanho,

Não valerá dos homens resistência,

Que contra o Céu não val da gente manha;

Mas também diz que a bélica excelência,

Nas armas e na paz, da gente estranha

Será tal, que será no mundo ouvido

O vencedor por glória do vencido».

Assi falando, entravam já na sala

Onde aquele potente Emperador

Nüa camilha jaz, que não se iguala

De outra algüa no preço e no lavor.

No recostado gesto se assinala

Um venerando e próspero senhor;

Um pano de ouro cinge, e na cabeça

De preciosas gemas se adereça.

Bem junto dele, um velho reverente,

Cos giolhos no chão, de quando em quando

Lhe dava a verde folha da erva ardente,

Que a seu costume estava ruminando.

Um Brâmene, pessoa preminente,

Pera o Gama vem com passo brando,

Pera que ao grande Príncipe o apresente,

Que diante lhe acena que se assente.

Sentado o Gama junto ao rico leito,

Os seus mais afastados, pronto em vista

Estava o Samori no trajo e jeito

Da gente, nunca de antes dele vista.

Lançando a grave voz do sábio peito,

Que grande autoridade logo aquista

Na opinião do Rei e do povo todo,

O Capitão lhe fala deste modo:

– «Um grande Rei, de lá das partes onde

O Céu volúbil, com perpétua roda,

Da terra a luz solar co a Terra esconde,

Tingindo, a que deixou, de escura noda,

Ouvindo do rumor que lá responde

O eco, como em ti da Índia toda

O principado está e a majestade,

Vínculo quer contigo de amizade.

«E por longos rodeios a ti manda

Por te fazer saber que tudo aquilo

Que sobre o mar, que sobre as terras anda,

De riquezas, de lá do Tejo ao Nilo,

E desd’a fria plaga de Gelanda

Até bem donde o Sol não muda o estilo

Nos dias, sobre a gente de Etiópia,

Tudo tem no seu Reino em grande cópia.

«E se queres, com pactos e lianças

De paz e de amizade, sacra e nua,

Comércio consentir das abondanças

Das fazendas da terra sua e tua,

Por que creçam as rendas e abastanças

(Por quem a gente mais trabalha e sua)

De vossos Reinos, será certamente

De ti proveito, e dele glória ingente.

«E sendo assi que o nó desta amizade Entre vós
firmemente permaneça, A quem o Rei gentio respondia Estará pronto
a toda adversidade

Que por guerra a teu Reino se ofereça,

Com gente, armas e naus, de qualidade

Que por irmão te tenha e te conheça;

E da vontade em ti sobr’isto posta

Me dês a mi certíssima resposta.»

Tal embaxada dava o Capitão,

Que, em ver embaxadores de nação

Tão remota, grão glória recebia;

Mas neste caso a última tenção

Com os de seu conselho tomaria,

Informando-se certo de quem era

O Rei e a gente e terra que dissera;

E que, entanto, podia do trabalho

Passado ir repousar; e em tempo breve O Gama e Portugueses
no apousento Mancebo Délio viu, que a luz renova, Daria a seu despacho
um justo talho, Com que a seu Rei reposta alegre leve. Já nisto punha
a noite o usado atalho Ás humanas canseiras, por que ceve De doce sono
os membros trabalhados, Os olhos ocupando, ao ócio dados. Agasalhados
foram juntamente Do nobre Regedor da Indica gente, Com festas e geral contentamento.
O Catual, no cargo diligente De seu Rei, tinha já por regimento Saber
da gente estranha donde vinha, Que costumes, que lei, que terra tinha. Tanto
que os ígneos carros do fermoso

Manda chamar Monçaide, desejoso

De poder-se informar da gente nova.

Já lhe pergunta, pronto e curioso,

Se tem notícia inteira e certa prova

Dos estranhos, quem são; que ouvido tinha

Que é gente de sua pátria mui vizinha;

Que particularmente ali lhe desse

Informação mui larga, pois fazia

Nisso serviço ao Rei, por que soubesse

O que neste negócio se faria

Monçaide torna: – «posto que eu quisesse

Dizer-te disto mais, não saberia;

Sòmente sei que é gente lá de Espanha,

Onde o meu ninho e o Sol no mar se banha.

«Tem a lei dum Profeta que gerado

Foi sem fazer na carne detrimento

Da mãe, tal que por bafo está aprovado

Do Deus que tem do Mundo o regimento.

O que entre meus antigos é vulgado

Deles, é que o valor sanguinolento

Das armas no seu braço resplandece,

O que em nossos passados se parece.

«Porque eles, com virtude sobre-humana,

Os deitaram dos campos abundosos

Do rico Tejo e fresca Guadiana,

Com feitos memoráveis e famosos;

E não contentes inda, e na Africana

Parte, cortando os mares procelosos,

Nos não querem deixar viver seguros,

Tomando-nos cidades e altos muros.

«Não menos têm mostrado esforço
e manha

Em quaisquer outras guerras que aconteçam,

Ou das gentes belígeras de Espanha,

Ou lá dalguns que do Pirene deçam.

Assi que nunca, enfim, com lança estranha

Se tem que por vencidos se conheçam;

Nem se sabe inda, não, te afirmo e asselo

Pera estes Anibais nenhum Marcelo.

«E s’esta informação não for inteira

Tanto quanto convém, deles pretende

Informar-te, que é gente verdadeira,

A quem mais falsidade enoja e ofende;

Vai ver-lhe a frota, as armas e a maneira

Do fundido metal que tudo rende

E folgarás de veres a polícia

Portuguesa, na paz e na milícia.»

Já com desejos o Idolátra ardia

De ver isto que o Mouro lhe contava;

Manda esquipar batéis, que ir ver queria

Os lenhos em que o Gama navegava.

Ambos partem da praia, a quem seguia

A Naira geração, que o mar coalhava;

À capitaina sobem, forte e bela,

Onde Paulo os recebe a bordo dela.

Purpúreos são os toldos, e as bandeiras

Do rico fio são que o bicho gera;

Nelas estão pintadas as guerreiras

Obras que o forte braço já fizera;

Batalhas têm campais aventureiras,

Desafios cruéis, pintura fera,

Que, tanto que ao Gentio se apresenta,

A tento nela os olhos apacenta.

Pelo que vê pergunta; mas o Gama

Lhe pedia primeiro que se assente

E que aquele deleite que tanto ama

A seita Epicureia experimente.

Dos espumantes vasos se derrama

O licor que Noé mostrara à gente;

Mas comer o Gentio não pretende,

Que a seita que seguia lho defende.

A trombeta, que, em paz, no pensamento

Imagem faz de guerra, rompe os ares;

Co fogo o diabólico instrumento

se faz ouvir no fundo lá dos mares.

Tudo o Gentio nota; mas o intento

Mostrava sempre ter nos singulares

Feitos dos homens que, em retrato breve

A muda poesia ali descreve.

Alça-se em pé, co ele o Gama junto,

Coelho de outra parte e o Mauritano; Os olhos põe no
bélico trasunto

De um velho branco, aspeito venerando,

Cujo nome não pode ser defunto

Enquanto houver no mundo trato humano:

No trajo a Grega usança está perfeita;

Um ramo, por insígnia, na direita.

Um ramo na mão tinha… Mas, ó cego,

Eu, que cometo, insano e temerário,

Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,

Por caminho tão árduo, longo e vário!

Vosso favor invoco, que navego

Por alto mar, com vento tão contrário

Que, se não me ajudais, hei grande medo

Que o meu fraco batel se alague cedo.

Olhai que há tanto tempo que, cantando

O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,

A Fortuna me traz peregrinando, Novos trabalhos vendo e novos
danos: De novo mais que nunca derribado; Tal prémio de meus versos
me tornassem: A quem os faz, cantando, gloriosos! Onde feitos diversos engrandeça:
Agora o mar, agora experimentando Os perigos Mavórcios inumanos, Qual
Cánace, que à morte se condena, Nüa mão sempre a
espada e noutra a pena; Agora, com pobreza avorrecida, Por hospícios
alheios degradado; Agora, da esperança já adquirida, Agora às
costas escapando a vida, Que dum fio pendia tão delgado Que não
menos milagre foi salvar-se Que pera o Rei Judaico acrecentar-se. E ainda,
Ninfas minhas, não bastava Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava A troco dos descansos que
esperava, Das capelas de louro que me honrassem, Trabalhos nunca usados me
inventaram, Com que em tão duro estado me deitaram. Vede, Ninfas, que
engenhos de senhores O vosso Tejo cria valerosos, Que assi sabem prezar, com
tais favores, Que exemplos a futuros escritores, Pera espertar engenhos curiosos,
Pera porem as cousas em memória Que merecerem ter eterna glória!
Pois logo, em tantos males, é forçado Que só vosso favor
me não faleça, Principalmente aqui, que sou chegado

Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado

Que não no empregue em quem o não mereça,

Nem por lisonja louve algum subido,

Sob pena de não ser agradecido.

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse

A quem ao bem comum e do seu Rei

Antepuser seu próprio interesse,

Imigo da divina e humana Lei.

Nenhum ambicioso que quisesse

Subir a grandes cargos, cantarei,

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus vícios;

Nenhum que use de seu poder bastante

Pera servir a seu desejo feio,

E que, por comprazer ao vulgo errante,

Se muda em mais figuras que Proteio.

Nem, Camenas, também cuideis que cante

Quem, com hábito honesto e grave, veio,

Por contentar o Rei, no ofício novo,

A despir e roubar o pobre povo!

Nem quem acha que é justo e que é direito

Guardar-se a lei do Rei severamente,

E não acha que é justo e bom respeito

Que se pague o suor da servil gente;

Nem quem sempre, com pouco experto peito,

Razões aprende, e cuida que é prudente,

Pera taxar, com mão rapace e escassa,

Os trabalhos alheios que não passa.

Aqueles sós direi que aventuraram

Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,

Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,

Tão bem de suas obras merecida.

Apolo e as Musas, que me acompanharam,

Me dobrarão a fúria concedida,

Enquanto eu tomo alento, descansado,

Por tornar ao trabalho, mais folgado.

Canto VIII

Na primeira figura se detinha

O Catual que vira estar pintada,

Que por divisa um ramo na mão tinha,

A barba branca, longa e penteada.

Quem era e por que causa lhe convinha

A divisa que tem na mão tomada?

Paulo responde, cuja voz discreta

O Mauritano sábio lhe interpreta:

– «Estas figuras todas que aparecem,

Bravos em vista e feros nos aspeitos,

Mais bravos e mais feros se conhecem,

Pela fama, nas obras e nos feitos.

Antigos são, mas inda resplandecem

Co nome, entre os engenhos mais perfeitos.

Este que vês, é Luso, donde a Fama

O nosso Reino «Lusitânia» chama.

«Foi filho e companheiro do Tebano

Que tão diversas partes conquistou;

Parece vindo ter ao ninho Hispano

Seguindo as armas, que contino usou.

Do Douro, Guadiana o campo ufano,

Já dito EIísio, tanto o contentou

Que ali quis dar aos já cansados ossos

Eterna sepultura, e nome aos nossos.

«O ramo que lhe vês, pera divisa,

O verde tirso foi, de Baco usado;

O qual à nossa idade amostra e avisa

Que foi seu companheiro e filho amado.

Vês outro, que do Tejo a terra pisa,

Despois de ter tão longo mar arado,

Onde muros perpétuos edifica,

E templo a Palas, que em memória fica?

«Ulisses é, o que faz a santa casa

À Deusa que lhe dá língua facunda;

Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,

Cá na Europa Lisboa ingente funda.»

– «Quem será estoutro cá, que o campo
arrasa

De mortos, com presença furibunda?

Grandes batalhas tem desbaratadas,

Que as Águias nas bandeiras tem pintadas!»

Assi o Gentio diz. Responde o Gama:

– «Este que vês, pastor já foi de gado;

Viriato sabemos que se chama,

Destro na lança mais que no cajado;

Injuriada tem de Roma a fama,

Vencedor invencíbil, afamado.

Não tem com ele, não, nem ter puderam,

O primor que com Pirro já tiveram.

«Com força, não; com manha vergonhosa

A vida lhe tiraram, que os espanta;

Que o grande aperto, em gente inda que honrosa,

As vezes leis magnânimas quebranta.

Outro está aqui que, contra a pátria irosa,

Degradado, connosco se alevanta;

Escolheu bem com quem se alevantasse

Pera que eternamente se ilustrasse.

Vês, connosco também vence as bandeiras

Dessas aves de Júpiter validas;

Que já naquele tempo as mais guerreiras

Gentes de nós souberam ser vencidas.

Olha tão sutis artes e maneiras

Pera adquirir os povos, tão fingidas:

A fatídica cerva que o avisa.

Ele é Sertório, e ela a sua divisa.

«OIha estoutra bandeira, e vê pintado

O grão progenitor dos Reis primeiros:

Nós Húngaro o fazemos, porém nado

Crêm ser em Lotaríngia os estrangeiros.

Despois de ter, cos Mouros, superado

Galegos e Lioneses cavaleiros,

À Casa Santa passa o santo Henrique,

Por que o tronco dos Reis se santifique.»

– «Quem é, me dize, estoutro que me espanta

(Pergunta o Malabar maravilhado),

Que tantos esquadrões, que gente tanta,

Com tão pouca, tem roto e destroçado?

Tantos muros aspérrimos quebranta,

Tantas batalhas dá, nunca cansado,

Tantas coroas tem, por tantas partes,

A seus pés derribadas, e estandartes?»

– «Este é o primeiro Afonso (disse o Gama),

Que todo Portugal aos Mouros toma;

Por quem no Estígio lago jura a Fama

De mais não celebrar nenhum de Roma.

Este é aquele zeloso a quem Deus ama,

Com cujo braço o Mouro imigo doma,

Pera quem de seu Reino abaxa os muros,

Nada deixando já pera os futuros.

«Se César, se Alexandre Rei, tiveram

Tão pequeno poder, tão pouca gente,

Contra tantos imigos quantos eram

Os que desbaratava este excelente,

Não creias que seus nomes se estenderam

Com glórias imortais tão largamente;

Mas deixa os feitos seus inexplicáveis,

Vê que os de seus vassalos são notáveis.

«Este que vês olhar, com gesto irado,

Pera o rompido aluno mal sofrido,

Dizendo-lhe que o exército espalhado

Recolha, e torne ao campo defendido;

Torna o Moço, do velho acompanhado,

Que vencedor o torna de vencido:

Egas Moniz se chama o forte velho,

Pera leais vassalos claro espelho.

«Vê-lo cá vai cos filhos a entregar-se,

A corda ao colo, nu de seda e pano,

Porque não quis o Moço sujeitar-se,

Como ele prometera, ao Castelhano.

Fez com siso e promessas levantar-se

O cerco, que já estava soberano.

Os filhos e mulher obriga à pena:

Pera que o senhor salve, a si condena.

«Não fez o Cônsul tanto que cercado

Foi nas Forcas Caudinas, de ignorante,

Quando a passar por baxo foi forçado

Do Samnítico jugo triunfante.

Este, pelo seu povo injuriado,

A si se entrega só, firme e constante;

Estoutro a si e os filhos naturais

E a consorte sem culpa, que dói mais.

«Vês este que, saindo da cilada,

Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?

Já o Rei tem preso e a vila descercada;

Ilustre feito, dino de Mavorte!

Vê-lo cá vai pintado nesta armada,

No mar também aos Mouros dando a morte,

Tomando-lhe as galés, levando a glória

Da primeira marítima vitória:

É Dom Fuas Roupinho, que na terra

E no mar resplandece juntamente,

Co fogo que acendeu junto da serra

De Ábila, nas galés da Maura gente.

Olha como, em tão justa e santa guerra,

De acabar pelejando está contente.

Das mãos dos Mouros entra a felice alma,

Triunfando, nos Céus, com justa palma.

«Não vês um ajuntamento, de estrangeiro

Trajo, sair da grande armada nova,

Que ajuda a combater o Rei primeiro

Lisboa, de si dando santa prova?

Olha Heurique, famoso cavaleiro,

A palma que lhe nasce junto à cova.

Por eles mostra Deus milagre visto;

Germanos são os Mártires de Cristo.

«Um Sacerdote vê, brandindo a espada

Contra Arronches, que toma, por vingança.

De Leiria, que de antes foi tomada

Por quem por Mafamede enresta a lança:

É Teotónio Prior. Mas vê cercada

Santarém, e verás a segurança

Da figura nos muros que, primeira

Subindo, ergueu das Quinas a bandeira.

Vê-lo cá, donde Sancho desbarata

Os Mouros de Vandália em fera guerra;

Os imigos rompendo, o alferes mata

E Hispálico pendão derriba em terra:

Mem Moniz é, que em si o valor retrata

Que o sepulcro do pai cos ossos corra.

Dino destas bandeiras, pois sem falta

A contrária derriba e a sua exalta.

«Olha aquele que dece pela lança,

Com as duas cabeças dos vigias,

Ande a cilada esconde, com que alcança

A cidade, por manhas e ousadias.

Ela por armas toma a semelhança

Do cavaleiro que as cabeças frias

Na mão levava (feito nunca feito!):

Giraldo Sem Pavor é o forte peito.

«Não vês um Castelhano, que, agravado

De Afonso nono, Rei, pelo ódio antigo

Dos de Lara, cos Mouros é deitado,

De Portugal fazendo-se inimigo?

Abrantes vila toma, acompanhado

Dos duros Infiéis que traz consigo;

Mas vê que um Português com pouca gente

O desbarata e o prende ousadamente.

. «Martim Lopes se chama o cavaleiro

que destes levar pode a palma e o louro.

Mas olha um Eclesiástico guerreiro,

Que em lança de aço torna o bago de ouro.

Vê-lo, entre os duvidosos, tão inteiro

Em não negar batalha ao bravo Mouro;

Olha o sinal no Céu, que lhe aparece,

Com que nos poucos seus o esforço crece

. «Vês, vão os Reis de Córdova e
Sevilha

Rotos, cos outros dous, e não de espaço;

Rotos? Mas antes mortos: maravilha

Feita de Deus, que não de humano braço.

Vês? Já a vila de Alcácere se humilha,

Sem lhe valer defesa ou muro de aço,

A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,

Que a coroa de palma ali coroa.

«Olha um Mestre que dece de Castela,

Português de nação, como conquista

A terra dos Algarves, e já nela

Não acha que por armas lhe resista.

Com manha, esforço e com benigna estrela,

Vilas, castelos, toma à escala vista.

Vês Tavila tomada aos moradores,

Em vingança dos sete caçadores?

«Vês, com bélica astúcia ao Mouro
ganha

Silves, que ele ganhou com força ingente:

É Dom Paio Correia, cuja manha

E grande esforço faz enveja à gente.

Mas não passes os três que em França e
Espanha

Se fazem conhecer perpètuamente

Em desafios, justas e tornéus,

Nelas deixando públicos troféus.

«Vê-los co nome vêm de aventureiros

A Castela, onde o preço sós levaram

Dos jogos de Belona verdadeiros,

Que com dano de alguns se exercitaram.

Vê mortos os soberbos cavaleiros

Que o principal dos três desafiaram,

Que Gonçalo Ribeiro se nomeia,

Que pode não temer a lei Leteia.

«Atenta num que a fama tanto estende

Que de nenhum passado se contenta;

Que a Pátria, que de um fraco fio pende,

Sobre seus duros ombros a sustenta.

Não no vês tinto de ira, que reprende

A vil desconfiança, inerte e lenta,

Do povo, e faz que tome o doce freio

De Rei seu natural, e não de alheio?

«Olha: por seu conselho e ousadia,

De Deus guiada só e de santa estrela,

Só, pode o que impossíbil parecia:

Vencer o povo ingente de Castela.

Vês, por indústria, esforço e valentia,

Outro estrago e vitória, clara e bela,

Na gente, assi feroz como infinita,

Que entre o Tarteso e Guadiana habita?

«Mas não vês quási já desbaratado

O poder Lusitano, pela ausência

Do Capitão devoto, que, apartado,

Orando invoca a suma e trina Essência?

Vê-lo com pressa já dos seus achado,

Que lhe dizem que falta resistência

Contra poder tamanho, e que viesse

Por que consigo esforço aos fracos desse.

«Mas olha com que santa confiança,

Que «inda não era tempo» respondia,

Como quem tinha em Deus a segurança

Da vitória que logo lhe daria.

Assi Pompílio, ouvindo que a possança

Dos imigos a terra lhe corria,

A quem lhe a dura nova estava dando,

«Pois eu (responde) estou sacrificando.»

«Se quem com tanto esforço em Deus se atreve

Ouvir quiseres como se nomeia,

«Português Cipião» chamar-se deve;

Mas mais de «Dom Nuno Álvares» se arreia.

Ditosa pátria que tal filho teve!

Mas antes, pai! que, enquanto o Sol rodeia

Este globo de Ceres e Neptuno,

Sempre suspirará por tal aluno.

«Na mesma guerra vê que presas ganha

Estoutro Capitão de pouca gente;

Comendadores vence e o gado apanha

Que levavam roubado ousadamente;

Outra vez vê que a lança em sangue banha

Destes, só por livrar, co amor ardente,

O preso amigo, preso por leal:

Pero Rodrigues é do Landroal.

«Olha este desleal e como paga

O perjúrio que fez e vil engano;

Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga

E faz vir a passar o último dano:

De Xerez rouba o campo e quási alaga

Co sangue de seus donos Castelhano.

Mas olha Rui Pereira, que co rosto

Faz escudo às galés, diante posto.

«Olha que dezessete Lusitanos,

Neste outeiro subidos, se defendem

Fortes, de quatrocentos Castelhanos,

Que em derredor, pelos tomar, se estendem;

Porém logo sentiram, com seus danos,

Que não só se defendem, mas ofendem.

Dino feito de ser, no mundo, eterno,

Grande no tempo antigo e no moderno!

«Sabe-se antigamente que trezentos

Já contra mil Romanos pelejaram,

No tempo que os viris atrevimentos

De Viriato tanto se ilustraram,

E deles alcançando vencimentos

Memoráveis, de herança nos deixaram

Que os muitos, por ser poucos, não temamos;

Que despois mil vezes amostramos.

«Olha cá dons Infantes, Pedro e Henrique,

Progénie generosa de Joane;

Aquele faz que fama ilustre fique

Dele em Germânia, com que a morte engane;

Este, que ela nos mares o pubrique

Por seu descobridor, e desengane

De Ceita a Maura túmida vaidade,

Primeiro entrando as portas da cidade.

«Vês o Conde Dom Pedro, que sustenta

Dous cercos contra toda a Barbaria.

Vês, outro Conde está, que representa

Em terra Marte, em forças e ousadia;

De poder defender se não contenta

Alcácere, da ingente companhia;

Mas do seu Rei defende a cara vida,

Pondo por muro a sua, ali perdida.

«Outros muitos verias, que os pintores

Aqui também por certo pintariam;

Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores:

Honra, prémio, favor, que as artes criam.

Culpa dos viciosos sucessores,

Que degeneram, certo, e se desviam

Do lustre e do valor dos seus passados,

Em gostos e vaidades atolados.

«Aqueles pais ilustres que já deram

Princípio à geração que deles
pende,

Pela virtude muito antão fizeram

E por deixar a casa que descende.

Cegos, que, dos trabalhos que tiveram,

Se alta fama e rumor deles se estende,

Escuros deixam sempre seus menores,

Com lhe deixar descansos corrutores!

«Outros também há grandes e abastados,

Sem nenhum tronco ilustre donde venham:

Culpa de Reis, que às vezes a privados

Dão mais que a mil que esforço e saber tenham.

Estes os seus não querem ver pintados,

Crendo que cores vãs lhe não convenham,

E, como a seu contrairo natural,

A pintura que fala querem mal.

«Não nego que há, contudo, descendentes

Do generoso tronco e casa rica,

Que, com costumes altos e excelentes,

Sustentam a nobreza que lhe fica;

E se a luz dos antigos seus parentes

Neles mais o valor não clarifica,

Não falta, ao menos, nem se faz escura;

Mas destes acha poucos a pintura.»

Assi está declarando os grandes feitos

O Gama, que ali mostra a vária tinta

Que a douta mão tão claros, tão perfeitos.

Do singular artífice ali pinta.

Os olhos tinha prontos e direitos

O Catual na história bem distinta;

Mil vezes perguntava e mil ouvia

As gostosas batalhas que ali via.

Mas já a luz se mostrava duvidosa,

Porque a alâmpada grande se escondia

Debaxo do Horizonte e, luminosa,

Levava aos Antípodas o dia,

Quando o Gentio e a gente generosa

Dos Naires da nau forte se partia,

A buscar o repouso que descansa

Os lassos animais, na noite mansa.

Entretanto, os arúspices famosos

Na falsa opinião, que em sacrifícios

Antevêm sempre os casos duvidosos

Por sinais diabólicos e indícios,

Mandados do Rei próprio, estudiosos,

Exercitavam a arte e seus ofícios,

Sobre esta vinda desta gente estranha,

Que às suas terras vem da ignota Espanha.

Sinal lhe mostra o Demo, verdadeiro,

De como a nova gente lhe seria

Jugo perpétuo, eterno cativeiro,

Destruição de gente e de valia.

Vai-se espantado o atónito agoureiro

Dizer ao Rei (segundo o que entendia)

Os sinais temerosos que alcançara

Nas entranhas das vítimas que oulhara.

A isto mais se ajunta que um devoto

Sacerdote da lei de Mafamede,

Dos ódios concebidos não remoto

Contra a divina Fé, que tudo excede,

Em forma do Profeta falso e noto

Que do filho da escrava Agar procede,

Baco odioso em sonhos lhe aparece,

Que de seus ódios inda se não dece.

E diz-lhe assi: – «Guardai-vos, gente minha,

Do mal que se aparelha pelo imigo

Que pelas águas húmidas caminha,

Antes que esteis mais perto do perigo!»

Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,

Espantado do sonho; mas consigo

Cuida que não é mais que sonho usado;

Torna a dormir, quieto e sossegado.

Torna Baco dizendo: – «Não conheces

O grão legislador que a teus passados

Tem mostrado o preceito a que obedeces,

Sem o qual fôreis muitos baptizados?

Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces?

Pois saberás que aqueles que chegados

De novo são, serão mui grande dano

Da Lei que eu dei ao néscio povo humano.

«Enquanto é fraca a força desta gente,

ordena como em tudo se resista;

Porque, quando o Sol sai, fàcilmente

Se pode nele pôr a aguda vista;

Porém, despois que sobe claro e ardente.

Se agudeza dos olhos o conquista,

Tão cega fica, quanto ficareis

Se raízes criar lhe não tolheis.»

Isto dito, ele e o sono se despede

Tremendo fica o atónito Agareno;

Salta da cama, lume aos servos pede,

Lavrando nele o férvido veneno.

Tanto que a nova luz que ao Sol precede

Mostrara rosto angélico e sereno,

Convoca os principais da torpe seita,

Aos quais do que sonhou dá conta estreita.

Diversos pareceres e contrários

Ali se dão, segundo o que entendiam;

Astutas traições, enganos vários,

Perfídias, inventavam e teciam;

Mas, deixando conselhos temerários,

Destruição da gente pretendiam,

Por manhas mais sutis e ardis milhores,

Com peitas adquirindo os regedores.

Com peitas, ouro e dádivas secretas

Conciliam da terra os principais;

E com razões notáveis e discretas

Mostram ser perdição dos naturais,

Dizendo que são gentes inquietas,

Que, os mares discorrendo Ocidentais,

Vivem só de piráticas rapinas,

Sem Rei, sem leis humanas ou divinas.

Oh, quanto deve o Rei que bem governa

De olhar que os conselheiros ou privados

De consciência e de virtude interna

E de sincero amor sejam dotados!

Porque, como estê posto na superna

Cadeira, pode mal dos apartados

Negócios ter notícia mais inteira

Do que lhe der a língua conselheira.

Nem tão-pouco direi que tome tanto

Em grosso a consciência limpa e certa,

Que se enleve num pobre e humilde manto,

Onde ambição acaso ande encoberta.

E, quando um bom em tudo é justo e santo,

E em negócios do mundo pouco acerta;

Que mal co eles poderá ter conta

A quieta inocência, em só Deus pronta.

Mas aqueles avaros Catuais

Que o Gentílico povo governavam,

Induzidos das gentes infernais,

O Português despacho dilatavam.

Mas o Gama, que não pretende mais,

De tudo quanto os Mouros ordenavam,

Que levar a seu Rei um sinal certo

Do mundo que deixava descoberto,

Nisto trabalha só; que bem sabia

Que despois, que levasse esta certeza,

Armas e naus e gentes mandaria

Manuel, que exercita a suma alteza,

Com que a seu jugo e Lei someteria

Das terras e do mar a redondeza;

Que ele não era mais que um diligente

Descobridor das terras do Oriente.

Falar ao Rei gentio determina,

Por que com seu despacho se tornasse,

Que já sentia em tudo da malina

Gente impedir-se quanto desejasse.

O Rei, que da notícia falsa e indina

São era de espantar se s’espantasse,

Que tão crédulo era em seus agouros,

E mais sendo afirmados pelos Mouros,

Este temor lhe esfria o baixo peito.

Por outra parte, a força da cobiça,

A quem por natureza está sujeito,

Um desejo imortal lhe acende e atiça:

Que bem vê que grandíssimo proveito

Fará, se, com verdade e com justiça,

O contrato fizer, por longos anos,

Que lhe comete o Rei dos Lusitanos.

Sobre isto, nos conselhos que tomava,

Achava mui contrários pareceres;

Que naqueles com quem se aconselhava

Executa o dinheiro seus poderes.

O grande Capitão chamar mandava,

A quem chegado disse:- «Se quiseres

Confessar-me a verdade limpa e nua,

Perdão alcançarás da culpa tua.

Ó poderoso Rei, da torpe seita,

Não conceberas tu tão má suspeita.

«Mas, porque nenhum grande bem se alcança

Sem grandes opressões, e em todo o feito

Segue o temor os passos da esperança,

Que em suor vive sempre de seu peito,

Me mostras tu tão pouca confiança

Desta minha verdade, sem respeito

Das razões em contrário que acharias

Se não cresses a quem não crer devias.

«Porque, se eu de rapinas só vivesse,

Undívago ou da pátria desterrado,

Como crês que tão longe me viesse

Buscar assento incógnito e apartado?

Por que esperanças, ou por que interesse

Viria exprimentando o mar irado,

Os Antárticos frios e os ardores

Que sofrem do Carneiro os moradores?

Não causaram que o vaso da nequícia,

Açoute tão cruel da Cristandade,

Viera pôr perpétua inimicícia

Na geração de Adão, co a falsidade,

«Eu sou bem informado que a embaxada

Que de teu Rei me deste, que é fingida;

Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,

Mas vagabundo vás passando a vida.

Que quem da Hespéria última alongada,

Rei ou senhor de insânia desmedida,

Há-de vir cometer, com naus e frotas,

Tão incertas viagens e remotas?

«E se de grandes Reinos poderosos

O teu Rei tem a Régia majestade,

Que presentes me trazes valerosos,

Sinais de tua incógnita verdade?

Com peças e dões altos, sumptuosos,

Se lia dos Reis altos a amizade;

Que sinal nem penhor não é bastante

As palavras dum vago navegante.

«Se porventura vindes desterrados,

Como já foram homens d’alta sorte,

Em meu Reino sereis agasalhados,

Que toda a terra é pátria pera o forte;

Ou se piratas sois, ao mar usados,

Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte,

Que, por se sustentar, em toda idade

Tudo faz a vital necessidade.»

Isto assi dito, o Gama, que já tinha

Suspeitas das insídias que ordenava

O Mahomético ódio, donde vinha

Aquilo que tão mal o Rei cuidava,

Cüa alta confiança, que convinha,

Com que seguro crédito alcançava,

Que Vénus Acidália lhe influía,

Pais palavras do sábio peito abria:

– «Se os antigos delitos que a malícia

Humana cometeu na prisca idade

«Se com grandes presentes d’alta estima

O crédito me pedes do que digo,

Eu não vim mais que a achar o estranho clima

Onde a Natura pôs teu Reino antigo;

Mas, se a Fortuna tanto me sublima, Que eu torne à
minha pátria e Reino amigo,

Então verás o dom soberbo e rico

Com que minha tornada certifico.

«Se te parece inopinado feito

Que Rei da última Hespéria a ti me mande,

O coração sublime, o régio peito,

Nenhum caso possíbil tem por grande.

Bem parece que o nobre e grão conceito

Do Lusitano espírito demande

Maior crédito e fé de mais alteza,

Que creia dele tanta fortaleza

«Sabe que há muitos anos que os antigos

Reis nossos firmemente propuseram

De vencer os trabalhos e perigos

Que sempre às grandes cousas se opuseram;

E, descobrindo os mares inimigos

Do quieto descanso, pretenderam

De saber que fim tinham e onde estavam

As derradeiras praias que lavavam.

«Conceito dino foi do ramo claro

Do venturoso Rei que arou primeiro

O mar, por ir deitar do ninho caro

O morador de Abila derradeiro;

Este, por sua indústria e engenho raro,

Num madeiro ajuntando outro madeiro,

Descobrir pôde a parte que faz clara

De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.

«Crescendo cos sucessos bons primeiros

No peito as ousadias, descobriram,

Pouco e pouco, caminhos estrangeiros,

Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram.

De África os moradores derradeiros

Austrais, que nunca as Sete Flamas viram,

Foram vistos de nós, atrás deixando

Quantos estão os Trópicos queimando.

«Assi, com firme peito e com tamanho

Propósito vencemos a Fortuna,

Até que nós no teu terreno estranho

Viemos pôr a última coluna.

Rompendo a força do líquido estanho,

Da tempestade horrífica e importuna,

A ti chegámos, de quem só queremos

Sinal que ao nosso Rei de ti levemos.

«Esta é a verdade, Rei; que não faria

Por tão incerto bem, tão fraco prémio,

Qual, não sendo isto assi, esperar podia,

Tão longo, tão fingido e vão proémio;

Mas antes descansar me deixaria

No nunca descansado e fero grémio

Da madre Tétis, qual pirata inico,

Dos trabalhos alheios feito rico.

«Assi que, ó Rei, se minha grão verdade

Tens por qual é, sincera e não dobrada,

Ajunta-me ao despacho brevidade,

Não me impidas o gosto da tornada;

E, se inda te parece falsidade,

Cuida bem na razão que está provada,

Que com claro juízo pode ver-se,

Que fácil é a verdade d’entender-se.»

A tento estava o Rei na segurança

Com que provava o Gama o que dizia;

Concebe dele certa confiança,

Crédito firme, em quanto proferia;

Pondera das palavras a abastança,

Julga na autoridade grão valia,

Começa de julgar por enganados

Os Catuais corrutos, mal julgados.

Juntamente, a cobiça do proveito

Que espera do contrato Lusitano

O faz obedecer e ter respeito.

Co Capitão, e não co Mauro engano.

Enfim ao Gama manda que direito

As naus se vá e, seguro dalgum dano,

Possa a terra mandar qualquer fazenda

Que pela especiaria troque e venda.

Que mande da fazenda, enfim, lhe manda

Que nos Reinos Gangéticos faleça,

S’algüa traz idónea lá da banda

Donde a terra se acaba e o mar começa.

Já da real presença veneranda

Se parte o Capitão, pera onde peça

Ao Catual que dele tinha cargo,

Embarcação, que a sua está de largo.

Embarcação que o leve às naus lhe pede,

Mas o mau Regedor, que novos laços

Lhe maquinava, nada lhe concede,

Interpondo tardanças e embaraços.

Co ele parte ao cais, por que o arrede

Longe quanto puder dos régios paços,

Onde, sem que seu Rei tenha notícia

Faça o que lhe ensinar sua malícia.

Lá bem longe lhe diz que lhe daria

Embarcação bastante em que partisse,

Ou que pera a luz crástina do dia

Futuro, sua partida diferisse.

Já com tantas tardanças entendia

O Gama que o Gentio consentisse

Na má tenção dos Mouros, torpe e fera,

O que dele até’li não entendera.

Era este Catual um dos que estavam

Corrutos pela Maumetana gente,

O principal por quem se governavam

As cidades do Samorim potente.

Dele sòmente os Mouros esperavam

Efeito a seus enganos torpemente;

Ele, que no concerto vil conspira,

De suas esperanças não delira.

O Gama com instância lhe requer

Que o mande pôr nas naus, e não lhe val;

E que assi lho mandara, lhe refere,

O nobre sucessor de Perimal.

Por que razão lhe impede e lhe difere

A fazenda trazer de Portugal?

Pois aquilo que os Reis já têm mandado

Não pode ser por outrem derrogado.

Pouco obedece o Catual corruto

A tais palavras; antes, revolvendo

Na fantasia algum sutil e astuto

Engano diabólico e estupendo,

Ou como banhar possa o ferro bruto

No sangue avorrecido, estava vendo,

Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,

Por que nenhüa à pátria mais tornasse.

Que nenhum torne à pátria só pretende

O conselho infernal dos Maumetanos,

Por que não saiba nunca onde se estende

A terra Eoa o Rei dos Lusitanos.

Não parte o Gama, enfim, que lho defende

O Regedor dos Bárbaros profanos;

Nem sem licença sua ir-se podia,

Que as almadias todas lhe tolhia.

Aos brados e razões do Capitão

Responde o Idolátra, que mandasse

Chegar à terra as naus, que longe estão,

Por que milhor dali fosse e tornasse.

– «Sinal é de inimigo e de ladrão

Que lá tão longe a frota se alargasse,

(Lhe diz), porque do certo e fido amigo

É não temer do seu nenhum perigo.»

Nestas palavras o discreto Gama

Enxerga bem que as naus deseja perto

O Catual, por que com ferro e flama

Lhas assalte, por ódio descoberto.

Em vários pensamentos se derrama;

Fantasiando está remédio certo

Que desse a quanto mal se lhe ordenava;

Tudo temia, tudo, enfim, cuidava.

Qual o reflexo lume do polido

Espelho de aço ou de cristal fermoso,

Que, do raio solar sendo ferido,

Vai ferir noutra parte, luminoso,

E, sendo da ouciosa mão movido,

Pela casa, do moço curioso,

Anda pelas paredes e telhado

Trémulo, aqui e ali, e dessossegado:

Tal o vago juizo fluctuava

Do Gama preso, quando lhe lembrara

Coelho, se por acaso o esperava

Na praia cos batéis, como ordenara.

Logo secretamente lhe mandava

Que se tornasse à frota, que deixara,

Não fosse salteado dos enganos

Que esperava dos feros Maumetanos.

Tal há-de ser quem quer, co dom de Marte,

Imitar os Ilustres e igualá-los:

Voar co pensamento a toda parte,

Adivinhar perigos e evitá-los,

Com militar engenho e sutil arte,

Entender os imigos e enganá-los,

Crer tudo, enfim; que nunca louvarei

O capitão que diga: «Não cuidei.»

Insiste o Malabar em tê-lo preso

Se neo manda chegar a terra a armada;

Ele, constante e de ira nobre aceso,

Os ameaços seus não teme nada;

Que antes quer sobre si tomar o peso

De quanto mal a vil malícia ousada

Lhe andar armando, que pôr em ventura

A frota de seu Rei, que tem segura.

Aquela noite esteve ali detido

E parte do outro dia, quando ordena

De se tornar ao Rei; mas impedido

Foi da guarda que tinha, não pequena.

Comete-lhe o Gentio outro partido,

Temendo de seu Rei castigo ou pena

Se sabe esta malícia, a qual asinha

Saberá, se mais tempo ali o detinha.

Diz-lhe que mande vir toda a fazenda

Vendíbil que trazia, pera a terra,

Pera que, devagar, se troque e venda;

Que, quem não quer comércio, busca guerra.

Posto que os maus propósitos entenda

O Gama, que o danado peito encerra,

Consente, porque sabe por verdade

Que compra co a fazenda a liberdade.

Concertam-se que o Negro mande dar

Embarcações idóneas com que venha;

Que os seus batéis não quer aventurar

Onde lhos tome o imigo, ou lhos detenha.

Partem as almadias a buscar

Mercadoria Hispana que convenha;

Escreve a seu irmão que lhe mandasse

A fazenda com que se resgatasse.

Vem a fazenda a terra, aonde logo

A agasalhou o infame Catual;

Co ela ficam Álvaro e Diogo,

Que a pudessem vender pelo que val.

Se mais que obrigação, que mando e rogo,

No peito vil o prémio pode e val,

Bem o mostra o Gentio a quem o entenda,

Pois o Gama soltou pela fazenda.

Por ela o solta, crendo que ali tinha

Penhor bastante, donde recebesse

Interesse maior do que lhe vinha

Se o Capitão mais tempo detivesse.

Ele, vendo que já lhe não convinha

Tornar a terra, por que não pudesse

Ser mais retido, sendo às naus chegado

Nelas estar se deixa descansado.

Nas naus estar se deixa, vagaroso,

Até ver o que o tempo lhe descobre;

Que não se fia já do cobiçoso

Regedor, corrompido e pouco nobre.

Veja agora o juízo curioso

Quanto no rico, assi como no pobre,

Pode o vil interesse e sede imiga

Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

A Polidoro mata o Rei Treício,

Só por ficar senhor do grão tesouro;

Entra, pelo fortíssimo edifício,

Com a filha de Acriso a chuva d’ouro;

Pode tanto em Tarpeia avaro vício

Que, a troco do metal luzente e louro,

Entrega aos inimigos a alta torre,

Do qual quási afogada em pago morre.

Este rende munidas fortalezas;

Faz trédoros e falsos os amigos;

Este a mais nobres faz fazer vilezas,

E entrega Capitães aos inimigos;

Este corrompe virginais purezas,

Sem temer de honra ou fama alguns perigos;

Este deprava às vezes as ciências,

Os juízos cegando e as consciências.

Este interpreta mais que sutilmente

Os textos; este faz e desfaz leis;

Este causa os perjúrios entre a gente

E mil vezes tiranos torna os Reis.

Até os que só a Deus omnipotente

Se dedicam, mil vezes ouvireis

Que corrompe este encantador, e ilude;

Mas não sem cor, contudo, de virtude!

Canto IX

Tiveram longamente na cidade,

Sem vender-se, a fazenda os dous feitores,

Que os Infiéis, por manha e falsidade,

Fazem que não lha comprem mercadores;

Que todo seu propósito e vontade

Era deter ali os descobridores

Da Índia tanto tempo que viessem

De Meca as naus, que as suas desfizessem.

Lá no seio Eritreu, onde fundada

Arsínoe foi do Egípcio Ptolomeu

(Do nome da irmã sua assi chamada,

Que despois em Suez se converteu),

Não longe o porto jaz da nomeada

Cidade Meca, que se engrandeceu

Com a superstição falsa e profana

Da religiosa água Maumetana.

Gidá se chama o porto aonde o trato

De todo o Roxo Mar mais florecia,

De que tinha proveito grande e grato

O Soldão que esse Reino possuía.

Daqui aos Malabares, por contrato

Dos Infiéis, fermosa companhia

De grandes naus, pelo Índico Oceano,

Especiaria vem buscar cada ano.

Por estas naus os Mouros esperavam,

Que, como fossem grandes e possantes,

Aquelas que o comércio lhe tomavam,

Com flamas abrasassem crepitantes.

Neste socorro tanto confiavam

Que já não querem mais dos navegantes

Senão que tanto tempo ali tardassem

Que da famosa Meca as naus chegassem.

Mas o Governador dos Céus e gentes,

Que, pera quanto tem determinado,

De longe os meios dá convenientes

Por onde vem a efeito o fim fadado,

Influiu piadosos acidentes

De afeição em Monçaide, que guardado

Estava pera dar ao Gama aviso

E merecer por isso o Paraíso.

Este, de quem se os Mouros não guardavam

Por ser Mouro como eles (antes era

Participante em quanto maquinavam),

A tenção lhe descobre torpe e fera.

Muitas vezes as naus que longe estavam

Visita, e com piedade considera

O dano sem razão que se lhe ordena

Pela maligna gente Sarracena.

Informa o cauto Gama das armadas

Que de Arábica Meca vem cad’ano,

Que agora são dos seus tão desejadas,

Pera ser instrumento deste dano;

Diz-lhe que vêm de gente carregadas

E dos trovões horrendos de Vulcano,

E que pode ser delas oprimido,

Segundo estava mal apercebido.

O Gama, que também considerava

O tempo que pera a partida o chama,

E que despacho já não esperava

Milhor do Rei, que os Maumetanos ama,

Aos feitores que em terra estão, mandava

Que se tornem às naus; e, por que a fama

Desta súbita vinda os não impida,

Lhe manda que a fizessem escondida.

Porém não tardou muito que, voando,

Um rumor não soasse, com verdade:

Que foram presos os feitores, quando

Foram sentidos vir-se da cidade.

Esta fama as orelhas penetrando

Do sábio Capitão, com brevidade

Faz represária nuns que às naus vieram

A vender pedraria que trouxeram.

Eram estes antigos mercadores

Ricos em Calecu e conhecidos;

Da falta deles, logo entre os milhores

Sentido foi que estão no mar retidos.

Mas já nas naus os bons trabalhadores

Volvem o cabrestante e, repartidos

Pelo trabalho, uns puxam pela amarra,

Outros quebram co peito duro a barra,

Outros pendem da verga e já desatam

A vela, que com grita se soltava,

Quando, com maior grita, ao Rei relatam

A pressa com que a armada se levava.

As mulheres e filhos, que se matam,

Daqueles que vão presos, onde estava

O Samorim se aqueixam que perdidos

Uns têm os pais, as outras os maridos.

Manda logo os feitores Lusitanos

Com toda sua fazenda, livremente,

Apesar dos imigos Maumetanos,

Por que lhe torne a sua presa gente.

Desculpas manda o Rei de seus enganos;

Recebe o Capitão de melhormente

Os presos que as desculpas e, tornando

Alguns negros, se parte, as velas dando.

Parte-se costa abaxo, porque entende

Que em vão co Rei gentio trabalhava

Em querer dele paz, a qual pretende

Por firmar o comércio que tratava;

Mas como aquela terra, que se estende

Pela Aurora, sabida já deixava,

Com estas novas torna à pátria cara,

Certos sinais levando do que achara.

Leva alguns Malabares, que tomou

Per força, dos que o Samorim mandara

Quando os presos feitores lhe tornou;

Leva pimenta ardente, que comprara;

A seca flor de Banda não ficou;

A noz e o negro cravo, que faz clara

A nova ilha Maluco, co a canela

Com que Ceilão é rica, ilustre e bela.

Isto tudo lhe houvera a diligência

De Monçaide fiel, que também leva,

Que, inspirado de Angélica influência,

Quer no livro de Cristo que se escreva.

Oh, ditoso Africano, que a clemência

Divina assi tirou de escura treva,

E tão longe da pátria achou maneira

Pera subir à pátria verdadeira!

Apartadas assi da ardente costa

As venturosas naus, levando a proa

Pera onde a Natureza tinha posta

A meta Austrina da Esperança Boa,

Levando alegres novas e reposta

Da parte Oriental pera Lisboa,

Outra vez cometendo os duros medos

Do mar incerto, tímidos e ledos.

O prazer de chegar à pátria cara,

A seus penates caros e parentes,

Pera contar a peregrina e rara

Navegação, os vários céus e gentes;

Vir a lograr o prémio que ganhara,

Por tão longos trabalhos e acidentes:

Cada um tem por gosto tão perfeito,

Que o coração para ele é vaso estreito.

Porém a Deusa Cípria, que ordenada

Era, pera favor dos Lusitanos,

Do Padre Eterno, e por bom génio dada,

Que sempre os guia já de longos anos,

A glória por trabalhos alcançada,

Satisfação de bem sofridos danos,

Lhe andava já ordenando, e pretendia

Dar-lhe nos mares tristes, alegria.

Despois de ter um pouco revolvido

Na mente o largo mar que navegaram,

Os trabalhos que pelo Deus nascido

Nas Anfiónias Tebas se causaram,

Já trazia de longe no sentido,

Pera prémio de quanto mal passaram,

Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,

No Reino de cristal, líquido e manso;

Algum repouso, enfim, com que pudesse

Refocilar a lassa humanidade

Dos navegantes seus, como interesse

Do trabalho que encurta a breve idade.

Parece-lhe razão que conta desse

A seu filho, por cuja potestade

Os Deuses faz decer ao vil terreno

E os humanos subir ao Céu sereno.

Isto bem revolvido, determina

De ter-lhe aparelhada, lá no meio

Das águas, algüa ínsula divina,

Ornada d’esmaltado e verde arreio;

Que muitas tem no reino que confina

Da primeira co terreno seio,

Afora as que possui soberanas

Pera dentro das portas Herculanas.

Ali quer que as aquáticas donzelas

Esperem os fortíssimos barões

(Todas as que têm título de belas,

Glória dos olhos, dor dos corações)

Com danças e coreias, porque nelas

Influirá secretas afeições,

Pera com mais vontade trabalharem

De contentar a quem se afeiçoarem.

Tal manha buscou já pera que aquele

Que de Anquises pariu, bem recebido

Fosse no campo que a bovina pele

Tomou de espaço, por sutil partido.

Seu filho vai buscar, porque só nele

Tem todo seu poder, fero Cupido,

Que, assi como naquela empresa antiga

A ajudou já, nestoutra a ajude e siga.

No carro ajunta as aves que na vida

Vão da morte as exéquias celebrando,

E aquelas em que já foi convertida

Perístera, as boninas apanhando;

Em derredor da Deusa, já partida,

No ar lascivos beijos se vão dando;

Ela, por onde passa, o ar e o vento

Sereno faz. com brando movimento

Já sobre os Idálios montes pende,

Onde o filho frecheiro estava então,

Ajuntando outros muitos, que pretende

Fazer üa famosa expedição

Contra o mundo revelde, por que emende

Erros grandes que há dias nele estão,

Amando cousas que nos foram dadas,

Não pera ser amadas, mas usadas.

Via Actéon na caça tão austero,

De cego na alegria bruta, insana,

Que, por seguir um feio animal fero,

Foge da gente e bela forma humana;

E por castigo quer, doce e severo,

Mostrar-lhe a fermosura de Diana.

(E guarde-se não seja inda comido

Desses cães que agora ama, e consumido).

E vê do mundo todo os principais

Que nenhum no bem púbrico imagina;

Vê neles que não têm amor a mais

Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;

Vê que esses que frequentam os reais

Paços, por verdadeira e sã doutrina

Vendem adulação, que mal consente

Mondar-se o novo trigo florecente.

Vê que aqueles que devem à pobreza

Amor divino, e ao povo caridade,

Amam somente mandos e riqueza,

Simulando justiça e integridade;

Da feia tirania e de aspereza

Fazem direito e vã severidade;

Leis em favor do Rei se estabelecem,

As em favor do povo só perecem.

Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,

Senão o que somente mal deseja.

Não quer que tanto tempo se releve

O castigo que duro e justo seja.

Seus ministros ajunta, por que leve

Exércitos conformes à peleja

Que espera ter co a mal regida gente

Que lhe não for agora obediente.

Muitos destes mininos voadores

Estão em várias obras trabalhando:

Uns amolando ferros passadores,

Outros hásteas de setas delgaçando.

Trabalhando, cantando estão de amores,

Vários casos em verso modulando;

Melodia sonora e concertada,

Suave a letra, angélica a soada.

Nas fráguas imortais onde forjavam

Pera as setas as pontas penetrantes,

Por lenha corações ardendo estavam,

Vivas entranhas inda palpitantes;

As águas onde os ferros temperavam,

Lágrimas são de míseros amantes;

A viva flama, o nunca morto lume,

Desejo é só que queima e não consume.

Alguns exercitando a mão andavam

Nos duros corações da plebe ruda;

Crebros suspiros pelo ar soavam

Dos que feridos vão da seta aguda.

Fermosas Ninfas são as que curavam

As chagas recebidas, cuja ajuda

Não somente dá vida aos mal feridos,

Mas põe em vida os inda não nascidos.

Fermosas são algüas e outras feias,

Segundo a qualidade for das chagas,

Que o veneno espalhado pelas veias

Curam-no às vezes ásperas triagas.

Alguns ficam ligados em cadeias

Por palavras sutis de sábias magas;

Isto acontece às vezes, quando as setas

Acertam de levar ervas secretas.

Destes tiros assi desordenados,

Que estes moços mal destros vão tirando,

Nascem amores mil desconcertados

Entre o povo ferido miserando;

E também nos heróis de altos estados

Exemplos mil se vêm de amor nefando.

Qual o das moças Bíbli e Cinireia,

Um mancebo de Assíria, um de Judeia.

E vós, ó poderosos, por pastoras

Muitas vezes ferido o peito vedes;

E por baixos e rudos, vós, senhoras,

Também vos tomam nas Vulcâneas redes.

Uns esperando andais nocturnas horas,

Outros subis telhados e paredes;

Mas eu creio que deste amor indino

É mais culpa a da mãe que a do minino.

Mas já no verde prado o carro leve

Punham os brancos cisnes mansamente;

E Dione, que as rosas entre a neve

No rosto traz, decia diligente.

O frecheiro que contra o Céu se atreve

A recebê-la vem, ledo e contente;

Vêm todos os Cupidos servidores

Beijar a mão à Deusa dos amores.

Ela, por que não gaste o tempo em vão

Nos braços tendo o filho, confiada

Lhe diz: – «Amado filho, em cuja mão

Toda minha potência está fundada;

Filho, em quem minhas forças sempre estão,

Tu, que as armas Tifeias tens em nada,

A socorrer-me a tua potestade

Me traz especial necessidade.

«Bem vês as Lusitânicas fadigas,

Que eu já de muito longe favoreço,

Porque das Parcas sei, minhas amigas,

Que me hão-de venerar e ter em preço.

E porque tanto imitam as antigas

Obras de meus Romanos, me ofereço

A lhe dar tanta ajuda, em quanto posso,

A quanto se estender o poder nosso.

«E porque das insídias do odioso

Baco foram na India molestados,

E das injúrias sós do mar undoso

Puderam mais ser mortos que cansados,

No mesmo mar, que sempre temeroso

Lhe foi, quero que sejam repousados,

Tomando aquele prémio e doce glória

Do trabalho que faz clara a memória.

«E pera isso queria que, feridas

As filhas de Nereu no ponto fundo,

D’amor dos Lusitanos incendidas

Que vêm de descobrir o novo mundo,

Todas nüa ilha juntas e subidas,

(Ilha que nas entranhas do profundo

Oceano terei aparelhada,

De dões de Flora e Zéfiro adornada);

«Ali, com mil refrescos e manjares,

Com vinhos odoríferos e rosas,

Em cristalinos paços singulares,

Fermosos leitos, e elas mais fermosas;

Enfim, com mil deleites não vulgares,

Os esperem as Ninfas amorosas,

D’amor feridas, pera lhe entregarem

Quanto delas os olhos cobiçarem.

«Quero que haja no reino Neptunino,

Onde eu nasci, progénie forte e bela;

E tome exemplo o mundo vil, malino,

Que contra tua potência se rebela,

Por que entendam que muro Adamantino

Nem triste hipocrisia val contra ela;

Mal haverá na terra quem se guarde

Se teu fogo imortal nas águas arde.»

Assi Vénus propôs; e o filho inico,

Pera lhe obedecer, já se apercebe:

Manda trazer o arco ebúrneo rico,

Onde as setas de ponta de ouro embebe.

Com gesto ledo a Cípria, e impudico,

Dentro no carro o filho seu recebe;

A rédea larga às aves cujo canto

A Faetonteia morte chorou tanto.

Mas diz Cupido que era necessária

üa famosa e célebre terceira,

Que, posto que mil vezes lhe é contrária,

Outras muitas a tem por companheira:

A Deusa Giganteia, temerária,

Jactante, mentirosa e verdadeira,

Que com cem olhos vê, e, por onde voa,

O que vê, com mil bocas apregoa.

Vão-a buscar e mandam-a diante,

Que celebrando vá com tuba clara

Os louvores da gente navegante,

Mais do que nunca os d’outrem celebrara.

Já, murmurando, a Fama penetrante

Pelas fundas cavernas se espalhara;

Fala verdade, havida por verdade,

Que junto a Deusa traz Credulidade.

O louvor grande, o rumor excelente,

No coração dos Deuses que indinados

Foram por Baco contra a ilustre gente,

Mudando, os fez um pouco afeiçoados.

O peito feminil, que levemente

Muda quaisquer propósitos tomados,

Já julga por mau zelo e por crueza

Desejar mal a tanta fortaleza.

Despede nisto o fero moço as setas,

üa após outra: geme o mar cos tiros;

Direitas pelas ondas inquietas

Algüas vão, e algüas fazem giros;

Caem as Ninfas, lançam das secretas

Entranhas ardentíssimos suspiros;

Cai qualquer, sem ver o vulto que ama,

Que tanto como a vista pode a fama.

Os cornos ajuntou da ebúrnea Lüa,

Com força, o moço indómito, excessiva,

Que Tétis quer ferir mais que nenhüa,

Porque mais que nenhüa lhe era esquiva.

Já não fica na aljava seta algüa,

Nem nos equóreos campos Ninfa viva;

E se, feridas, inda estão vivendo,

Será pera sentir que vão morrendo.

Dai lugar, altas e cerúleas ondas,

Que, vedes, Vénus traz a medicina,

Mostrando as brancas velas e redondas,

Que vêm por cima da água Neptunina.

Pera que tu recíproco respondas,

Ardente Amor, à flama feminina,

É forçado que a pudicícia honesta

Faça quanto lhe Vénus amoesta.

Já todo o belo coro se aparelha

Das Nereidas, e junto caminhava

Em coreias gentis, usança velha,

Pera a ilha a que Vénus as guiava.

Ali a fermosa Deusa lhe aconselha

O que ela fez mil vezes, quando amava;

Elas, que vão do doce amor vencidas,

Estão a seu conselho oferecidas.

Cortando vão as naus a larga via

Do mar ingente pera a pátria amada,

Desejando prover-se de água fria

Pera a grande viagem prolongada,

Quando, juntas, com súbita alegria,

Houveram vista da Ilha namorada,

Rompendo pelo céu a mãe fermosa

De Menónio, suave e deleitosa.

De longe a Ilha viram, fresca e bela,

Que Vénus pelas ondas lha levava

(Bem como o vento leva branca vela)

Pera onde a forte armada se enxergava;

Que, por que não passassem, sem que nela

Tomassem porto, como desejava,

Pera onde as naus navegam a movia

A Acidália, que tudo, enfim, podia.

Mas firme a fez e imóbil, como viu

Que era dos Nautas vista e demandada,

Qual ficou Delos, tanto que pariu

Latona Febo e a Deusa à caça usada.

Pera lá logo a proa o mar abriu,

Onde a costa fazia üa enseada

Curva e quieta, cuja branca areia

Pintou de ruivas conchas Citereia.

Três fermosos outeiros se mostravam,

Erguidos com soberba graciosa,

Que de gramíneo esmalte se adornavam,

Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.

Claras fontes e límpidas manavam

Do cume, que a verdura tem viçosa;

Por entre pedras alvas se deriva

A sonorosa linfa fugitiva.

Num vale ameno, que os outeiros fende.

Vinham as claras águas ajuntar-se,

Onde üa mesa fazem, que se estende

Tão bela quanto pode imaginar-se.

Arvoredo gentil sobre ela pende,

Como que pronto está pera afeitar-se,

Vendo-se no cristal resplandecente,

Que em si o está pintando pròpriamente.

Mil árvores estão ao céu subindo,

Com pomos odoríferos e belos;

A laranjeira tem no fruito lindo

A cor que tinha Dafne nos cabelos.

Encosta-se no chão, que está caindo,

A cidreira cos pesos amarelos;

Os fermosos limões ali cheirando,

Estão virgíneas tetas imitando.

As árvores agrestes, que os outeiros

Têm com frondente coma ennobrecidos,

Álemos são de Alcides, e os loureiros

Do louro Deus amados e queridos;

Mirtos de Citereia, cos pinheiros

De Cibele, por outro amor vencidos;

Está apontando o agudo cipariso

Pera onde é posto o etéreo Paraíso.

Os dões que dá Pomona ali Natura

Produze, diferentes nos sabores,

Sem ter necessidade de cultura,

Que sem ela se dão muito milhores:

As cereijas, purpúreas na pintura,

As amoras, que o nome têm de amores,

O pomo que da pátria Pérsia veio,

Milhor tornado no terreno alheio;

Abre a romã, mostrando a rubicunda

Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes,

Entre os braços do ulmeiro está a jocunda

Vide, cuns cachos roxos e outros verdes;

E vós, se na vossa árvore fecunda,

Peras piramidais, viver quiserdes,

Entregai-vos ao dano que cos bicos

Em vós fazem os pássaros inicos.

Pois a tapeçaria bela e fina

Com que se cobre o rústico terreno,

Faz ser a de Aqueménia menos dina,

Mas o sombrio vale mais ameno.

Ali a cabeça a flor Cifísia inclina

Sôbolo tanque lúcido e sereno;

Florece o filho e neto de Ciniras,

Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.

Pera julgar, difícil cousa fora,

No céu vendo e na terra as mesmas cores,

Se dava às flores cor a bela Aurora,

Ou se lha dão a ela as belas flores.

Pintando estava ali Zéfiro e Flora

As violas da cor dos amadores,

O lírio roxo, a fresca rosa bela,

Qual reluze nas faces da donzela;

A cândida cecém, das matutinas

Lágrimas rociada, e a manjerona; Vêm-se as letras
nas flores Hiacintinas,

Tão queridas do filho de Latona.

Bem se enxerga nos pomos e boninas

Que competia Clóris com Pomona.

Pois, se as aves no ar cantando voam,

Alegres animais o chão povoam.

Ao longo da água o níveo cisne canta;

Responde-lhe do ramo filomela;

Da sombra de seus cornos não se espanta

Acteon n’água cristalina e bela.

Aqui a fugace lebre se levanta

Da espessa mata, ou tímida gazela;

Ali no bico traz ao caro ninho

O mantimento o leve passarinho.

Nesta frescura tal desembarcavam

Já das naus os segundos Argonautas,

Onde pela floresta se deixavam

Andar as belas Deusas, como incautas.

Algüas, doces cítaras tocavam;

Algüas, harpas e sonoras frautas;

Outras, cos arcos de ouro, se fingiam

Seguir os animais, que não seguiam.

Assi lho aconselhara a mestra experta:

Que andassem pelos campos espalhadas;

Que, vista dos barões a presa incerta,

Se fizessem primeiro desejadas.

Algüas, que na forma descoberta

Do belo corpo estavam confiadas,

Posta a artificiosa fermosura,

Nuas lavar se deixam na água pura.

Mas os fortes mancebos, que na praia

Punham os pés, de terra cobiçosos

(Que não há nenhum deles que não saia),

De acharem caça agreste desejosos,

Não cuidam que, sem laço ou redes, caia

Caça naqueles montes deleitosos,

Tão suave, doméstica e benina,

Qual ferida lha tinha já Ericina.

Alguns, que em espingardas e nas bestas

Pera ferir os cervos, se fiavam,

Pelos sombrios matos e florestas

Determinadamente se lançavam;

Outros, nas sombras, que de as altas sestas

Defendem a verdura, passeavam

Ao longo da água, que, suave e queda,

Por alvas pedras corre à praia leda.

Começam de enxergar sùbitamente,

Por entre verdes ramos, várias cores,

Cores de quem a vista julga e sente

Que não eram das rosas ou das flores,

Mas da lã fina e seda diferente,

Que mais incita a força dos amores,

De que se vestem as humanas rosas,

Fazendo-se por arte mais fermosas.

Dá Veloso, espantado, um grande grito:

– «Senhores, caça estranha (disse) é esta!

Se inda dura o Gentio antigo rito,

A Deu sas é sagrada esta floresta.

Mais descobrimos do que humano esprito

Desejou nunca, e bem se manifesta

Que são grandes as cousas e excelentes

Que o mundo encobre aos homens imprudentes.

«Sigamos estas Deusas e vejamos

Se fantásticas são, se verdadeiras.»

Isto dito, veloces mais que gamos,

Se lançam a correr pelas ribeiras.

Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,

Mas, mais industriosas que ligeiras,

Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,

Se deixam ir dos galgos alcançando

De üa os cabelos de ouro o vento leva,

Correndo, e da outra as fraldas delicadas;

Acende-se o desejo, que se ceva

Nas alves carnes, súbito mostradas.

üa de indústria cai, e já releva,

Com mostras mais macias que indinadas,

Que sobre ela, empecendo, também caia

Quem a seguiu pela arenosa praia.

Outros, por outra parte, vão topar

Com as Deusas despidas, que se lavam;

Elas começam súbito a gritar,

Como que assalto tal não esperavam;

üas, fingindo menos estimar

A vergonha que a força, se lançavam

Nuas por entre o mato, aos olhos dando

O que às mãos cobiçosas vão negando;

Outra, como acudindo mais depressa

À vergonha da Deusa caçadora,

Esconde o corpo n’água; outra se apressa

Por tomar os vestidos que tem fora.

Tal dos mancebos há que se arremessa,

Vestido assi e calçado (que, co a mora

De se despir, há medo que inda tarde)

A matar na água o fogo que nele arde.

Qual cão de caçador, sagaz e ardido,

Usado a tomar na água a ave ferida,

Vendo [ò] rosto o férreo cano erguido

Pera a garcenha ou pata conhecida,

Antes que soe o estouro, mal sofrido Salta

n’água e da presa não duvida,

Nadando vai e latindo: assi o mancebo

Remete à que não era irmã de Febo.

Leonardo, soldado bem disposto,

Manhoso, cavaleiro e namorado,

A quem Amor não dera um só desgosto

Mas sempre fora dele mal tratado,

E tinha já por firme pros[s]uposto

Ser com amores mal afortunado,

Porém não que perdesse a esperança

De inda poder seu fado ter mudança,

Quis aqui sua ventura que corria

Após Efire, exemplo de beleza,

Que mais caro que as outras dar queria

O que deu, pera dar-se, a natureza.

Já cansado, correndo, lhe dizia:

– «Ó fermosura indina de aspereza,

Pois desta vida te concedo a palma,

Espera um corpo de quem levas a alma!

«Todas de correr cansam, Ninfa pura.

Rendendo-se à vontade do inimigo;

Tu só de mi só foges na espessura?

Quem te disse que eu era o que te sigo?

Se to tem dito já aquela ventura

Que em toda a parte sempre anda comigo,

Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,

Mil vezes cada hora me mentia.

«Não canses, que me cansas! E se queres

Fugir-me, por que não possa tocar-te,

Minha ventura é tal que, inda que esperes,

Ela fará que não possa alcançar-te.

Espera; quero ver, se tu quiseres,

Que sutil modo busca de escapar-te;

E notarás, no fim deste sucesso,

‘Tra la spica e la man qual muro he messo.’

«Oh! Não me fujas! Assi nunca o breve

Tempo fuja de tua fermosura;

Que, só com refrear o passo leve,

Vencerás da fortuna a força dura.

Que Emperador, que exército se atreve

A quebrantar a fúria da ventura

Que, em quanto desejei, me vai seguindo,

O que tu só farás não me fugindo?

«Pões-te da parte da desdita minha?

Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.

Levas-me um coração que livre tinha?

Solta-mo e correrás mais levemente.

Não te carrega essa alma tão mesquinha

Que nesses fios de ouro reluzente

Atada levas? Ou, despois de presa,

Lhe mudaste a ventura e menos pesa?

«Nesta esperança só te vou seguindo:

Que ou tu não sofrerás o peso dela,

Ou na virtude de teu gesto lindo

Lhe mudarás a triste e dura estrela.

E se se lhe mudar, não vás fugindo,

Que Amor te ferirá, gentil donzela,

E tu me esperarás, se Amor te fere;

E se me esperas, não há mais que espere.»

Já não fugia a bela Ninfa tanto,

Por se dar cara ao triste que a seguia,

Como por ir ouvindo o doce canto,

As namoradas mágoas que dizia.

Volvendo o rosto, já sereno e santo,

Toda banhada em riso e alegria,

Cair se deixa aos pés do vencedor,

Que todo se desfaz em puro amor.

Oh, que famintos beijos na floresta,

E que mimoso choro que soava!

Que afagos tão suaves! Que ira honesta,

Que em risinhos alegres se tornava!

O que mais passam na manhã e na sesta,

Que Vénus com prazeres inflamava,

Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo;

Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

Destarte, enfim, conformes já as fermosas

Ninfas cos seus amados navegantes,

Os ornam de capelas deleitosas

De louro e de ouro e flores abundantes.

As mãos alvas lhe davam como esposas;

Com palavras formais e estipulantes

Se prometem eterna companhia,

Em vida e morte, de honra e alegria.

üa delas, maior, a quem se humilha

Todo o coro das Ninfas e obedece,

Que dizem ser de Celo e Vesta Filha,

O que no gesto belo se parece,

Enchendo a terra e o mar de maravilha,

O capitão ilustre, que o merece,

Recebe ali com pompa honesta e régia,

Mostrando-se senhora grande e egrégia.

Que, despois de lhe ter dito quem era,

Cum alto exórdio, de alta graça ornado,

Dando-lhe a entender que ali viera

Por alta influïção do imóbil fado,

Pera lhe descobrir da unida esfera

Da terra imensa e mar não navegado

Os segredos, por alta profecia,

O que esta sua nação só merecia,

Tomando-o pela mão, o leva e guia

Pera o cume dum monte alto e divino,

No qual üa rica fábrica se erguia,

De cristal toda e de ouro puro e fino.

A maior parte aqui passam do dia,

Em doces jogos e em prazer contino.

Ela nos paços logra seus amores,

As outras pelas sombras, entre as flores.

Assi a fermosa e a forte companhia

O dia quási todo estão passando

Nüa alma, doce, incógnita alegria,

Os trabalhos tão longos compensando.

Porque dos feitos grandes, da ousadia

Forte e famosa, o mundo está guardando

O prémio lá no fim, bem merecido,

Com fama grande e nome alto e subido.

Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,

Tétis e a Ilha angélica pintada,

Outra cousa não é que as deleitosas

Honras que a vida fazem sublimada.

Aquelas preminências gloriosas,

Os triunfos, a fronte coroada

De palma e louro, a glória e maravilha,

Estes são os deleites desta Ilha.

Que as imortalidades que fingia

A antiguidade, que os Ilustres ama,

Lá no estelante Olimpo, a quem subia

Sobre as asas ínclitas da Fama,

Por obras valorosas que fazia,

Pelo trabalho imenso que se chama

Caminho da virtude, alto e fragoso,

Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso,

Não eram senão prémios que reparte,

Por feitos imortais e soberanos,

O mundo cos varões que esforço e arte

Divinos os fizeram, sendo humanos.

Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,

Eneas e Quirino e os dous Tebanos,

Ceres, Palas e Juno com Diana,

Todos foram de fraca carne humana.

Mas a Fama, trombeta de obras tais,

Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos

De Deuses, Semideuses, Imortais,

Indígetes, Heróicos e de Magnos.

Por isso, ó vós que as famas estimais,

Se quiserdes no mundo ser tamanhos,

Despertai já do sono do ócio ignavo,

Que o ânimo, de livre, faz escravo.

E ponde na cobiça um freio duro,

E na ambição também, que indignamente

Tomais mil vezes, e no torpe e escuro

Vício da tirania infame e urgente;

Porque essas honras vãs, esse ouro puro,

Verdadeiro valor não dão à gente:

Milhor é merecê-los sem os ter,

Que possuí-los sem os merecer.

Ou dai na paz as leis iguais, constantes,

Que aos grandes não dêem o dos pequenos,

Ou vos vesti nas armas rutilantes,

Contra a lei dos imigos Sarracenos:

Fareis os Reinos grandes e possantes,

E todos tereis mais e nenhum menos:

Possuireis riquezas merecidas,

Com as honras que ilustram tanto as vidas.

E fareis claro o Rei que tanto amais,

Agora cos conselhos bem cuidados,

Agora co as espadas, que imortais

Vos farão, como os vossos já passados.

Impossibilidades não façais,

Que quem quis, sempre pôde; e numerados

Sereis entre os Heróis esclarecidos

E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.

Canto X

Mas já o claro amador da Larisseia

Adúltera inclinava os animais

Lá pera o grande lago que rodeia

Temistitão, nos fins Ocidentais;

O grande ardor do Sol Favónio enfreia

Co sopro que nos tanques naturais

Encrespa a água serena e despertava

Os lírios e jasmins, que a calma agrava,

Quando as fermosas Ninfas, cos amantes

Pela mão, já conformes e contentes,

Subiam pera os paços radiantes

E de metais ornados reluzentes,

Mandados da Rainha, que abundantes

Mesas d’altos manjares excelentes

Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza

Restaurem da cansada natureza.

Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,

Se assentam dous e dous, amante e dama;

Noutras, à cabeceira, d’ouro finas,

Está co a bela Deusa o claro Gama.

De iguarias suaves e divinas,

A quem não chega a Egípcia antiga fama ,

Se acumulam os pratos de fulvo ouro,

Trazidos lá do Atlântico tesouro.

Os vinhos odoríferos, que acima

Estão não só do Itálico Falerno

Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima

Com todo o ajuntamento sempiterno,

Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,

Crespas escumas erguem, que no interno

Coração movem súbita alegria,

Saltando co a mistura d’água fria.

Mil práticas alegres se tocavam;

Risos doces, sutis e argutos ditos,

Que entre um e outro manjar se ale vantavam,

Despertando os alegres apetitos;

Músicos instrumentos não faltavam

(Quais, no profundo Reino, os nus espritos

Fizeram descansar da eterna pena)

Cüa voz düa angélica Sirena.

Cantava a bela Ninfa, e cos acentos,

Que pelos altos paços vão soando,

Em consonância igual, os instumentos

Suaves vêm a um tempo conformando.

Um súbito silêncio enfreia os ventos

E faz ir docemente murmurando

As águas, e nas casas naturais

Adormecer os brutos animais.

Com doce voz está subindo ao Céu

Altos varões que estão por vir ao mundo,

Cujas claras Ideias viu Proteu

Num globo vão, diáfano, rotundo,

Que Júpiter em dom lho concedeu

Em sonhos, e despois no Reino fundo,

Vaticinando, o disse, e na memória

Recolheu logo a Ninfa a clara história.

Matéeacute;ria é de coturno, e não de soco,

A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;

Qual Iopas não soube, ou Demodoco,

Entre os Feaces um, outro em Cartago.

Aqui, minha Calíope, te invoco

Neste trabalho extremo, por que em pago

Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,

O gosto de escrever, que vou perdendo.

Vão os anos decendo, e já do Estio

Há pouco que passar até o Outono;

A Fortuna me faz o engenho frio,

Do qual já não me jacto nem me abono;

Os desgostos me vão levando ao rio

Do negro esquecimento e eterno sono.

Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha

Das Musas, co que quero à nação minha!

Cantava a bela Deusa que viriam

Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,

Armadas que as ribeiras venceriam

Por onde o Oceano Índico suspira;

E que os Gentios Reis que não dariam

A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira

Provariam do braço duro e forte,

Até render-se a ele ou logo à morte.

Cantava dum que tem nos Malabares

Do sumo sacerdócio a dignidade,

Que, só por não quebrar cos singulares

Barões os nós que dera d’amizade,

Sofrerá suas cidades e lugares,

Com ferro, incêndios, ira e crueldade,

Ver destruir do Samorim potente,

Que tais ódios terá co a nova gente.

E canta como lá se embarcaria Mas, já chegado
aos fins Orientais Chamará o Samorim mais gente nova; E todos outra
vez desbaratando, Em Belém o remédio deste dano, Sem saber o
que em si ao mar traria, O grão Pacheco, Aquiles Lusitano. O peso sentirão,
quando entraria, O curvo lenho e o férvido Oceano,

Quando mais n’água os troncos que gemerem

Contra sua natureza se meterem.

E deixado em ajuda do gentio Rei de

Cochim, com poucos naturais,

Nos braços do salgado e curvo rio

Desbaratará os Naires infernais

No passo Cambalão, tornando frio

D’espanto o ardor imenso do Oriente,

Que verá tanto obrar tão pouca gente.

Virão Reis [de] Bipur e de Tanor,

Das serras de Narsinga, que alta prova

Estarão prometendo a seu senhor;

Fará que todo o Naire, enfim, se mova

Que entre Calecu jaz e Cananor,

D’ambas as Leis imigas pera a guerra:

Mouros por mar, Gentios pola terra.

Por terra e mar, o grão Pacheco ousado,

A grande multidão que irá matando

A todo o Malabar terá admirado.

Cometerá outra vez, não dilatando,

O Gentio os combates, apressado,

Injuriando os seus, fazendo votos

Em vão aos Deuses vãos, surdos e imotos.

Já não defenderá somente os passos,

Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas;

Aceso de ira, o Cão, não vendo lassos

Aqueles que as cidades fazem rasas,

Fará que os seus, de vida pouco escassos,

Cometam o Pacheco, que tem asas,

Por dous passos num tempo; mas voando

Dum noutro, tudo irá desbaratando.

Virá ali o Samorim, por que em pessoa

Veja a batalha e os seus esforce e anime;

Mas um tiro, que com zunido voa,

De sangue o tingirá no andor sublime.

Já não verá remédio ou manha boa

Nem força que o Pacheco muito estime;

Inventará traições e vãos venenos,

Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.

Que tornará a vez sétima (cantava)

Pelejar co invicto e forte Luso,

A quem nenhum trabalho pesa e agrava;

Mas, contudo, este só o fará confuso.

Trará pera a batalha, horrenda e brava,

Máquinas de madeiros fora de uso,

Pera lhe abalroar as caravelas,

Que até’li vão lhe fora cometê-las.

Pela água levará serras de fogo

Pera abrasar-lhe quanta armada tenha;

Mas a militar arte e engenho logo

Fará ser vã a braveza com que venha.

– «Nenhum claro barão no Márcio jogo,

Que nas asas da Fama se sustenha,

Chega a este, que a palma a todos toma.

E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.

«Porque tantas batalhas, sustentadas

Com muito pouco mais de cem soldados,

Com tantas manhas e artes inventadas,

Tantos Cães não imbeles profligados,

Ou parecerão fábulas sonhadas,

Ou que os celestes Coros, invocados,

Decerão a ajudá-lo e lhe darão

Esforço, força, ardil e coração.

«Aquele que nos campos Maratónios

O grão poder de Dário estrui e rende,

Ou quem, com quatro mil Lacedemónios,

O passo de Termópilas defende,

Nem o mancebo Cocles dos Ausónios,

Que com todo o poder Tusco contende

Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio,

Foi como este na guerra forte e sábio.»

Mas neste passo a Ninfa, o som canoro

Abaxando, fez ronco e entristecido,

Cantando em baxa voz, envolta em choro,

O grande esforço mal agardecido.

– «Ó Belisário (disse) que no coro

Das Musas serás sempre engrandecido,

Se em ti viste abatido o bravo Marte,

Aqui tens com quem podes consolar-te!

«Aqui tens companheiro, assi nos feitos

Como no galardão injusto e duro;

Em ti e nele veremos altos peitos

A baxo estado vir, humilde e escuro.

Morrer nos hospitais, em pobres leitos,

Os que ao Rei e à Lei servem de muro!

Isto fazem os Reis cuja vontade

Manda mais que a justiça e que a verdade.

«Isto fazem os Reis quando embebidos

Nüa aparência branda que os contenta

Dão os prémios, de Aiace merecidos,

À língua vã de Ulisses, fraudulenta.

Mas vingo-me: que os bens mal repartidos

Por quem só doces sombras apresenta,

Se não os dão a sábios cavaleiros,

Dão-os logo a avarentos lisonjeiros.

«Mas tu, de quem ficou tão mal pagado

Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,

Se não és pera dar-lhe honroso estado,

É ele pera dar-te um Reino rico.

Enquanto for o mundo rodeado

Dos Apolíneos raios, eu te fico

Que ele seja entre a gente ilustre e claro,

E tu nisto culpado por avaro.

«Mas eis outro (cantava) intitulado

Vem com nome real e traz consigo

O filho, que no mar será ilustrado,

Tanto como qualquer Romano antigo.

Ambos darão com braço forte, armado,

A Quíloa fértil, áspero castigo,

Fazendo nela Rei leal e humano,

Deitado fora o pérfido tirano.

«Também farão Mombaça, que se arreia

De casas sumptuosas e edifícios,

Co ferro e fogo seu queimada e feia,

Em pago dos passados malefícios.

Despois, na costa da Índia, andando cheia

De lenhos inimigos e artifícios

Contra os Lusos, com velas e com remos

O mancebo Lourenço fará extremos.

«Das grandes naus do Samorim potente,

Que encherão todo o mar, co a férrea pela,

Que sai com trovão do cobre ardente,

Fará pedaços leme, masto, vela.

Despois, lançando arpéus ousadamente

Na capitaina imiga, dentro nela

Saltando o fará só com lança e espada

De quatrocentos Mouros despejada.

«Mas de Deus a escondida providência

(Que ela só sabe o bem de que se serve)

O porá onde esforço nem prudência

Poderá haver que a vida lhe reserve.

Em Chaúl, onde em sangue e resistência

O mar todo com fogo e ferro ferve,

Lhe farão que com vida se não saia

As armadas de Egipto e de Cambaia.

«Ali o poder de muitos inimigos

(Que o grande esforço só com força rende),

Os ventos que faltaram, e os perigos

Do mar, que sobejaram, tudo o ofende.

Aqui ressurjam todos os Antigos,

A ver o nobre ardor que aqui se aprende:

Outro Ceva verão, que, espedaçado,

Não sabe ser rendido nem domado.

«Com toda üa coxa fora, que em pedaços

Lhe leva um cego tiro que passara,

Se serve inda dos animosos braços

E do grão coração que lhe ficara.

Até que outro pelouro quebra os laços

Com que co alma o corpo se liara:

Ela, solta, voou da prisão fora

Onde súbito se acha vencedora.

«Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta,

Na qual tu mereceste paz serena!

Que o corpo, que em pedaços se apresenta,

Quem o gerou, vingança já lhe ordena:

Que eu ouço retumbar a grão tormenta,

Que vem já dar a dura e eterna pena,

De esperas, basiliscos e trabucos,

A Cambaicos cruéis e Mamelucos.

«Eis vem o pai, com ânimo estupendo,

Trazendo fúria e mágoa por antolhos,

Com que o paterno amor lhe está movendo

Fogo no coração, água nos olhos.

A nobre ira lhe vinha prometendo

Que o sangue fará dar pelos giolhos

Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,

Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo.

«Qual o touro cioso, que se ensaia

Pera a crua peleja, os cornos tenta

No tronco dum carvalho ou alta faia

E, o ar ferindo, as forças experimenta:

Tal, antes que no seio de Cambaia

Entre Francisco irado, na opulenta

Cidade de Dabul a espada afia,

Abaxando-lhe a túmida ousadia.

«E logo, entrando fero na enseada

De Dio, ilustre em cercos e batalhas,

Fará espalhar a fraca e grande armada

De Calecu, que remos tem por malhas.

A de Melique Iaz, acautelada,

Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas,

Fará ir ver o frio e fundo assento,

Secreto leito do húmido elemento.

«Mas a de Mir Hocém, que, abalroando,

A fúria esperará dos vingadores,

Verá braços e pernas ir nadando

Sem corpos, pelo mar, de seus senhores.

Raios de fogo irão representando,

No cego ardor, os bravos domadores.

Quanto ali sentirão olhos e ouvidos

É fumo, ferro, flamas e alaridos.

«Mas ah, que desta próspera vitória,

Com que despois virá ao pátrio Tejo,

Quási lhe roubará a famosa glória

Um sucesso, que triste e negro vejo!

O Cabo Tormentório, que a memória

Cos ossos guardará, não terá pejo

De tirar deste mundo aquele esprito,

Que não tiraram toda a Índia e Egipto.

«Ali, Cafres selvagens poderão

O que destros imigos não puderam;

E rudos paus tostados sós farão

O que arcos e pelouros não fizeram.

Ocultos os juízos de Deus são;

As gentes vãs, que não nos entenderam,

Chamam-lhe fado mau, fortuna escura,

Sendo só providência de Deus pura.

«Mas oh, que luz tamanha que abrir sinto

(Dizia a Ninfa, e a voz alevantava)

Lá no mar de Melinde, em sangue tinto

Das cidades de Lamo, de Oja e Brava,

Pelo Cunha também, que nunca extinto

Será seu nome em todo o mar que lava

As ilhas do Austro, e praias que se chamam

De São Lourenço, e em todo o Sul se afamam!

«Esta luz é do fogo e das luzentes

Armas com que Albuquerque irá amansando

De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,

Que refusam o jugo honroso e brando.

Ali verão as setas estridentes

Reciprocar-se, a ponta no ar virando

Contra quem as tirou; que Deus peleja

Por quem estende a fé da Madre Igreja.

«Ali do sal os montes não defendem

De corrupção os corpos no combate,

Que mortos pela praia e mar se estendem

De Gerum, de Mazcate e Calaiate;

Até que à força só de braço
aprendem

A abaxar a cerviz, onde se lhe ate

Obrigação de dar o reino inico

Das perlas de Barém tributo rico.

«Que gloriosas palmas tecer vejo

Com que Vitória a fronte lhe coroa,

Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,

Toma a ilha ilustríssima de Goa!

Despois, obedecendo ao duro ensejo,

A deixa, e ocasião espera boa

Com que a torne a tomar, que esforço e arte

Vencerão a Fortuna e o próprio Marte.

«Eis já sobr’ela torna e vai rompendo

Por muros, fogo, lanças e pelouros,

Abrindo com a espada o espesso e horrendo

Esquadrão de Gentios e de Mouros.

Irão soldados ínclitos fazendo

Mais que liões famélicos e touros,

Na luz que sempre celebrada e dina

Será da Egípcia Santa Caterina.

«Nem tu menos fugir poderás deste,

Posto que rica e posto que assentada

Lá no grémio da Aurora, onde naceste,

Opulenta Malaca nomeada.

As setas venenosas que fizeste,

Os crises com que já te vejo armada,

Malaios namorados, Jaus valentes,

Todos farás ao Luso obedientes.»

Mais estanças cantara esta Sirena

Em louvor do ilustríssimo Albuquerque,

Mas alembrou-lhe üa ira que o condena,

Posto que a fama sua o mundo cerque.

O grande Capitão, que o fado ordena

Que com trabalhos glória eterna merque,

Mais há-de ser um brando companheiro

Pera os seus, que juiz cruel e inteiro.

Mas em tempo que fomes e asperezas,

Doenças, frechas e trovões ardentes,

A sazão e o lugar, fazem cruezas

Nos soldados a tudo obedientes,

Parece de selváticas brutezas,

De peitos inumanos e insolentes,

Dar extremo suplício pela culpa

Que a fraca humanidade e Amor desculpa.

Não será a culpa abominoso incesto

Nem violento estupro em virgem pura,

Nem menos adultério desonesto,

Mas cüa escrava vil, lasciva e escura.

Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,

Ou de usado a crueza fera e dura,

Cos seus üa ira insana não refreia,

Põe na fama alva noda negra e feia.

Viu Alexandre Apeles namorado

Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente,

Não sendo seu soldado exprimentado,

Nem vendo-se num cerco duro e urgente.

Sentiu Ciro que andava já abrasado

Araspas, de Panteia, em fogo ardente,

Que ele tomara em guarda, e prometia

Que nenhum mau desejo o venceria;

Mas, vendo o ilustre Persa que vencido

Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa,

Levemente o perdoa, e foi servido

Dele num caso grande, em recompensa.

Per força, de Judita foi marido

O férreo Balduíno; mas dispensa

Carlos, pai dela, posto em causas grandes,

Que viva e povoador seja de Frandes.

Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto,

De Soares cantava, que as bandeiras

Faria tremular e pôr espanto

Pelas roxas Arábicas ribeiras:

– «Medina abominábil teme tanto,

Quanto Meca e Gidá, co as derradeiras

Praias de Abássia; Barborá se teme

Do mal de que o empório Zeila geme.

«A nobre ilha também de Taprobana,

Já pelo nome antigo tão famosa

Quanto agora soberba e soberana

Pela cortiça cálida, cheirosa,

Dela dará tributo à Lusitana

Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,

Vencendo se erguerá na torre erguida,

Em Columbo, dos próprios tão temida.

«Também Sequeira, as ondas Eritreias

Dividindo, abrirá novo caminho

Pera ti, grande Império, que te arreias

De seres de Candace e Sabá ninho.

Maçuá, com cisternas de água cheias

Verá, e o porto Arquico, ali vizinho;

E fará descobir remotas Ilhas,

Que dão ao mundo novas maravilhas.

«Virá despois Meneses, cujo ferro

Mais na Africa, que cá, terá provado;

Castigará de Ormuz soberba o erro,

Com lhe fazer tributo dar dobrado.

Também tu, Gama, em pago do desterro

Em que estás e serás inda tornado,

Cos títulos de Conde e d’honras nobres

Virás mandar a terra que descobres.

«Mas aquela fatal necessidade

De quem ninguém se exime dos humanos,

Ilustrado co a Régia dignidade,

Te tirará do mundo e seus enganos.

Outro Meneses logo, cuja idade

É maior na prudência que nos anos,

Governará; e fará o ditoso Henrique

Que perpétua memória dele fique.

«Não vencerá somente os Malabares,

Destruindo Panane com Coulete,

Cometendo as bombardas, que, nos ares,

Se vingam só do peito que as comete;

Mas com virtudes, certo, singulares,

Vence os imigos d’alma todos sete;

De cobiça triunfa e incontinência,

Que em tal idade é suma de excelência.

«Mas, despois que as Estrelas o chamarem, Sucederás,
ó forte Mascarenhas; Terá a Malaca muito tempo feitos, Que claramente
põem aberto o rosto Será, no esforço, ilustre e assinalado,
Que Chaúl temerá, de grande e ousada, E, se injustos o mando
te tomarem, Prometo-te que fama eterna tenhas. Pera teus inimigos confessarem
Teu valor alto, o fado quer que venhas A mandar, mais de palmas coroado, Que
de fortuna justa acompanhado. «No reino de Bintão, que tantos
danos Num só dia as injúrias de mil anos Vingarás, co
valor de ilustres peitos. Trabalhos e perigos inumanos, Abrolhos férreos
mil, passos estreitos, Tranqueiras, baluartes, lanças, setas: Tudo
fico que rompas e sometas. «Mas na Índia, cobiça e ambição,
Contra Deus e Justiça, te farão Vitupério nenhum, mas
só desgosto. Quem faz injúria vil e sem razão, Com forças
e poder em que está posto, Não vence; que a vitória verdadeira
É saber ter justiça nua e inteira. «Mas, contudo, não
nego que Sampaio Mostrando-se no mar um fero raio, Que de inimigos mil verá
coalhado. Em Bacanor fará cruel ensaio No Malabar, pera que, amedrontado,
Despois a ser vencido dele venha Cutiale, com quanta armada tenha. «E
não menos de Dio a fera frota,

Fará, co a vista só, perdida e rota,

Por Heitor da Silveira e destroçada;

Por Heitor Português, de quem se nota

Que na costa Cambaica, sempre armada,

Será aos Guzarates tanto dano,

Quanto já foi aos Gregos o Troiano.

«A Sampaio feroz sucederá

Cunha, que longo tempo tem o leme:

De Chale as torres altas erguerá,

Enquanto Dio ilustre dele treme;

O forte Baçaim se lhe dará,

Não sem sangue, porém, que nele geme

Melique, porque à força só de espada

A tranqueira soberba vê tomada.

«Trás este vem Noronha, cujo auspício

De Dio os Rumes feros afugenta;

Dio, que o peito e bélico exercício

De António da Silveira bem sustenta.

Fará em Noronha a morte o usado ofício,

Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimenta

No governo do Império, cujo zelo

Com medo o Roxo Mar fará amarelo.

«Das mãos do teu Estêvão vem tomar

As rédeas um, que já será ilustrado

No Brasil, com vencer e castigar

O pirata Francês, ao mar usado.

Despois, Capitão-mor do Índico mar,

O muro de Damão, soberbo e armado,

Escala e primeiro entra a porta aberta,

Que fogo e frechas mil terão coberta.

«A este o Rei Cambaico soberbíssimo

Fortaleza dará na rica Dio,

Por que contra o Mogor poderosíssimo

Lhe ajude a defender o senhorio.

Despois irá com peito esforçadíssimo

A tolher que não passe o Rei gentio

De Calecu, que assi com quantos veio

O fará retirar, de sangue cheio.

«Destruirá a cidade Repelim,

Pondo o seu Rei, com muitos, em fugida;

E despois, junto ao Cabo Comorim,

üa façanha faz esclarecida:

A frota principal do Samorim,

Que destruir o mundo não duvida,

Vencerá co furor do ferro e fogo;

Em si verá Beadala o Márcio jogo.

«Tendo assi limpa a Índia dos imigos,

Virá despois com ceptro a governá-Ia

Sem que ache resistência nem perigos,

Que todos tremem dele e nenhum fala.

Só quis provar os ásperos castigos

Baticalá, que vira já Beadala.

De sangue e corpos mortos ficou cheia

E de fogo e trovões desfeita e feia.

«Este será Martinho, que de Marte

O nome tem co as obras derivado;

Tanto em armas ilustre em toda parte,

Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado.

Suceder-lhe-á ali Castro, que o estandarte

Português terá sempre levantado,

Conforme sucessor ao sucedido,

Que um ergue Dio, outro o defende erguido.

«Persas feroces, Abassis e Rumes,

Que trazido de Roma o nome têm,

Vários de gestos, vários de costumes

(Que mil nações ao cerco feras vêm),

Farão dos Céus ao mundo vãos queixumes

Porque uns poucos a terra lhe detêm.

Em sangue Português, juram, descridos,

De banhar os bigodes retorcidos.

«Basiliscos medonhos e liões,

Trabucos feros, minas encobertas,

Sustenta Mascarenhas cos barões

Que tão ledos as mortes têm por certas;

Até que, nas maiores opressões,

Castro libertador, fazendo ofertas

Das vidas de seus filhos, quer que fiquem

Com fama eterna e a Deus se sacrifiquem.

«Fernando, um deles, ramo da alta pranta,

Onde o violento fogo, com ruido,

Em pedaços os muros no ar levanta,

Será ali arrebatado e ao Céu subido.

Álvaro, quando o Inverno o mundo espanta E tem o caminho
húmido impedido, Que castigando vai Dabul na costa; E acharão
estas Ninfas e estas mesas,

Abrindo-o, vence as ondas e os perigos,

Os ventos e despois os inimigos.

«Eis vem despois o pai, que as ondas corta

Co restante da gente Lusitana,

E com força e saber, que mais importa,

Batalha dá felice e soberana.

Uns, paredes subindo, escusam porta;

Outros a abrem na fera esquadra insana.

Feitos farão tão dinos de memória

Que não caibam em verso ou larga história.

«Este, despois, em campo se apresenta,

Vencedor forte e intrépido, ao possante

Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta

Da fera multidão quadrupedante.

Não menos suas terras mal sustenta

O Hidalcão, do braço triunfante

Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.

«Estes e outros Barões, por várias partes,

Dinos todos de fama e maravilha,

Fazendo-se na terra bravos Martes,

Virão lograr os gostos desta Ilha,

Varrendo triunfantes estandartes

Pelas ondas que corta a aguda quilha;

Que glórias e honras são de árduas empresas.»

Assi cantava a Ninfa; e as outras todas,

Com sonoroso aplauso, vozes davam,

Com que festejam as alegres vodas

Que com tanto prazer se celebravam.

– «Por mais que da Fortuna andem as rodas

(Nüa cônsona voz todas soavam), Não vos
hão-de faltar, gente famosa, As festas deste alegre e claro dia, Assi
lhe diz e o guia por um mato Honra, valor e fama gloriosa.» Despois
que a corporal necessidade Se satisfez do mantimento nobre, E na harmonia
e doce suavidade Viram os altos feitos que descobre, Tétis, de graça
ornada e gravidade, Pera que com mais alta glória dobre Pera o felice
Gama assi dizia: – «Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais, Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.

Sigue-me firme e forte, com prudência,

Por este monte espesso, tu cos mais.»

Árduo, difícil, duro a humano trato.

Não andam muito que no erguido cume

Se acharam, onde um campo se esmaltava

De esmeraldas, rubis, tais que presume

A vista que divino chão pisava.

Aqui um globo vêm no ar, que o lume

Claríssimo por ele penetrava,

De modo que o seu centro está evidente,

Como a sua superfícia, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,

Mas enxerga-se bem que está composto

De vários orbes, que a Divina verga

Compôs, e um centro a todos só tem posto.

Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,

Nunca s’ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto

Por toda a parte tem; e em toda a parte

Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,

Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.

Vendo o Gama este globo, comovido

De espanto e de desejo ali ficou.

Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido

Em pequeno volume, aqui te dou

Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas

Por onde vás e irás e o que desejas.

«Vês aqui a grande máquina do Mundo,

Etérea e elemental, que fabricada

Assi foi do Saber, alto e profundo,

Que é sem princípio e meta limitada.

Quem cerca em derredor este rotundo

Globo e sua superfícia tão limada,

É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,

Que a tanto o engenho humano não se estende.

«Este orbe que, primeiro, vai cercando

Os outros mais pequenos que em si tem,

Que está com luz tão clara radiando

Que a vista cega e a mente vil também,

Empíreo se nomeia, onde logrando

Puras almas estão daquele Bem

Tamanho, que ele só se entende e alcança,

De quem não há no mundo semelhança.

«Aqui, só verdadeiros, gloriosos

Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,

Júpiter, Juno, fomos fabulosos,

Fingidos de mortal e cego engano.

Só pera fazer versos deleitosos

Servimos; e, se mais o trato humano

Nos pode dar, é só que o nome nosso

Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

«E também, porque a santa Providência,

Que em Júpiter aqui se representa,

Por espíritos mil que têm prudência

Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,

Em muitos dos exemplos que apresenta);

Os que são bons, guiando, favorecem,

Os maus, em quanto podem, nos empecem;

«Quer logo aqui a pintura que varia

Agora deleitando, ora ensinando,

Dar-lhe nomes que a antiga Poesia

A seus Deuses já dera, fabulando;

Que os Anjos de celeste companhia

Deuses o sacro verso está chamando,

Nem nega que esse nome preminente

Também aos maus se dá, mas falsamente.

«Enfim que o Sumo Deus, que por segundas

Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas

Obras da Mão Divina veneranda,

Debaxo deste círculo onde as mundas

Almas divinas gozam, que não anda,

Outro corre, tão leve e tão ligeiro

Que não se enxerga: é o Móbile primeiro.

«Com este rapto e grande movimento

Vão todos os que dentro tem no seio;

Por obra deste, o Sol, andando a tento,

O dia e noite faz, com curso alheio.

Debaxo deste leve, anda outro lento,

Tão lento e sojugado a duro freio,

Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,

Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

«Olha estoutro debaxo, que esmaltado

De corpos lisos anda e radiantes,

Que também nele tem curso ordenado

E nos seus axes correm cintilantes.

Bem vês como se veste e faz ornado

Co largo Cinto d, ouro, que estelantes

Animais doze traz afigurados,

Apousentos de Febo limitados.

«Olha por outras partes a pintura

Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:

Olha a Carreta, atenta a Cinosura,

Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;

Vê de Cassiopeia a fermosura

E do Orionte o gesto turbulento;

Olha o Cisne morrendo que suspira,

A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.

«Debaxo deste grande Firmamento,

Vês o céu de Saturno, Deus antigo;

Júpiter logo faz o movimento,

E Marte abaxo, bélico inimigo;

O claro Olho do céu, no quarto assento,

E Vénus, que os amores traz consigo;

Mercúrio, de eloquência soberana;

Com três rostos, debaxo vai Diana.

«Em todos estes orbes, diferente

Curso verás, nuns grave e noutros leve;

Ora fogem do Centro longamente,

Ora da Terra estão caminho breve,

Bem como quis o Padre omnipotente,

Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,

Os quais verás que jazem mais a dentro

E tem co Mar a Terra por seu centro.

«Neste centro, pousada dos humanos,

Que não somente, ousados, se contentam

De sofrerem da terra firme os danos,

Mas inda o mar instábil exprimentam,

Verás as várias partes, que os insanos

Mares dividem, onde se apousentam

Várias nações que mandam vários
Reis,

Vários costumes seus e várias leis.

«Vês Europa Cristã, mais alta e clara

Que as outras em polícia e fortaleza.

Vês África, dos bens do mundo avara,

Inculta e toda cheia de bruteza;

Co Cabo que até’aqui se vos negara,

Que assentou pera o Austro a Natureza.

Olha essa terra toda, que se habita

Dessa gente sem Lei, quási infinita.

«Vê do Benomotapa o grande império,

De selvática gente, negra e nua,

Onde Gonçalo morte e vitupério

Padecerá, pola Fé santa sua.

Nace por este incógnito Hemispério

O metal por que mais a gente sua.

Vê que do lago donde se derrama

O Nilo, também vindo está Cuama.

«Olha as casas dos negros, como estão

Sem portas, confiados, em seus ninhos,

Na justiça real e defensão

E na fidelidade dos vizinhos;

Olha deles a bruta multidão,

Qual bando espesso e negro de estorninhos,

Combaterá em Sofala a fortaleza, Que

defenderá Nhaia com destreza.

«Olha lá as alagoas donde o Nilo

Nace, que não souberam os antigos;

Vê-lo rega, gerando o crocodilo,

Os povos Abassis, de Crista amigos;

Olha como sem muros (novo estilo)

Se defendem milhor dos inimigos;

Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama,

Que ora dos naturais Nobá se chama.

«Nesta remota terra um filho teu

Nas armas contra os Turcos será claro;

Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu;

Mas contra o fim fatal não há reparo.

Vê cá a costa do mar, onde te deu

Melinde hospício gasalhoso e caro;

O Rapto rio nota, que o romance

Da terra chama Obi; entra em Quilmance.

«O Cabo vê já Arómata chamado,

E agora Guardafú, dos moradores,

Onde começa a boca do afamado

Mar Roxo, que do fundo toma as cores;

Este como limite está lançado

Que divide Asia de Africa; e as milhores

Povoações que a parte Africa tem

Maçuá são, Arquico e Suaquém.

«Vês o extremo Suez, que antigamente

Dizem que foi dos Héroas a cidade

(Outros dizem que Arsínoe), e ao presente

Tem das frotas do Egipto a potestade.

Olha as águas nas quais abriu patente

Estrada o grão Mousés na antiga idade.

Ásia começa aqui, que se apresenta

Em terras grande, em reinos opulenta.

«Olha o monte Sinai, que se ennobrece

Co sepulcro de Santa Caterina;

Olha Toro e Gidá, que lhe falece

Água das fontes, doce e cristalina;

Olha as portas do Estreito, que fenece

No reino da seca Ádem, que confina

Com a serra d’Arzira, pedra viva,

Onde chuva dos céus se não deriva.

«Olha as Arábias três, que tanta terra

Tomam, todas da gente vaga e baça,

Donde vêm os cavalos pera a guerra,

Ligeiros e feroces, de alta raça;

Olha a costa que corrre, até que cera

Outro Estreito de Pérsia, e faz a traça

O Cabo que co nome se apelida

Da cidade Fartaque, ali sabida.

«Olha Dófar, insigne porque manda

O mais cheiroso incenso pera as aras;

Mas atenta: já cá destoutra banda

De Roçalgate, e praias sempre avaras,

Começa o reino Ormuz, que todo se anda

Pelas ribeiras que inda serão claras

Quando as galés do Turco e fera armada

Virem de Castelbranco nua a espada.

«Olha o Cabo Asaboro, que chamado

Agora é Moçandão, dos navegantes;

Por aqui entra o lago que é fechado

De Arábia e Pérsias terras abundantes.

Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado

Tem das suas perlas ricas, e imitantes

A cor da Aurora; e vê na água salgada

Ter o Tígris e Eufrates üa entrada.

«Olha da grande Pérsia o império nobre,

Sempre posto no campo e nos cavalos,

Que se injuria de usar fundido cobre

E de não ter das armas sempre os calos.

Mas vê a ilha Gerum, como descobre

O que fazem do tempo os intervalos,

Que da cidade Armuza, que ali esteve,

Ela o nome despois e a glória teve.

«Aqui de Dom Filipe de Meneses

Se mostrará a virtude, em armas clara,

Quando, com muito poucos Portugueses,

Os muitos Párseos vencerá de Lara.

Virão provar os golpes e reveses

De Dom Pedro de Sousa, que provara

Já seu braço em Ampaza, que deixada

Terá por terra, à força só de
espada.

«Mas deixemos o Estreito e o conhecido

Cabo de Jasque, dito já Carpela,

Com todo o seu terreno mal querido

Da Natura e dos dões usados dela;

Carmânia teve já por apelido.

Mas vês o fermoso Indo, que daquela

Altura nace, junto à qual, também

Doutra altura correndo o Gange vem?

«OIha a terra de Ulcinde, fertilíssima,

E de Jáquete a íntima enseada;

Do mar a enchente súbita, grandíssima,

E a vazante, que foge apressurada.

A terra de Cambaia vê, riquíssima,

Onde do mar o seio faz entrada;

Cidades outras mil, que vou passando,

A vós outros aqui se estão guardando.

«Vês corre a costa célebre Indiana

Pera o Sul, até o Cabo Comori,

Já chamado Cori, que Taprobana

(Que ora é Ceilão) defronte tem de si.

Por este mar a gente Lusitana,

Que com armas virá despois de ti,

Terá vitórias, terras e cidades,

Nas quais hão-de viver muitas idades.

«As províncias que entre um e o outro rio

Vês, com várias nações, são
infinitas:

Um reino Mahometa, outro Gentio,

A quem tem o Demónio leis escritas.

Olha que de Narsinga o senhorio

Tem as relíquias santas e benditas

Do corpo de Tomé, barão sagrado,

Que a Jesu Cristo teve a mão no lado.

«Aqui a cidade foi que se chamava

Meliapor, fermosa, grande e rica;

Os Ídolos antigos adorava

Como inda agora faz a gente inica.

Longe do mar naquele tempo estava,

Quando a Fé, que no mundo se pubrica,

Tomé vinha prègando, e já passara

Províncias mil do mundo, que ensinara.

«Chegado aqui, pregando e junto dando

A doentes saúde, a mortos vida,

Acaso traz um dia o mar, vagando,

Um lenho de grandeza desmedida.

Deseja o Rei, que andava edificando,

Fazer dele madeira; e não duvida

Poder tirá-lo a terra, com possantes

Forças d’ homens, de engenhos, de alifantes.

«Era tão grande o peso do madeiro

Que, só pera abalar-se, nada abasta;

Mas o núncio de Cristo verdadeiro

Menos trabalho em tal negócio gasta:

Ata o cordão que traz, por derradeiro,

No tronco, e fàcilmente o leva e arrasta

Pera onde faça um sumptuoso templo

Que ficasse aos futuros por exemplo.

«Sabia bem que se com fé formada

Mandar a um monte surdo que se mova,

Que obedecerá logo à voz sagrada,

Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.

A gente ficou disto alvoraçada;

Os Brâmenes o têm por cousa nova;

Vendo os milagres, vendo a santidade,

Hão medo de perder autoridade.

«São estes sacerdotes dos Gentios

Em quem mais penetrado tinha enveja;

Buscam maneiras mil, buscam desvios,

Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.

O principal, que ao peito traz os fios,

Um caso horrendo faz, que o mundo veja

Que inimiga não há, tão dura e fera,

Como a virtude falsa, da sincera.

«Um filho próprio mata, e logo acusa

De homicídio Tomé, que era inocente;

Dá falsas testemunhas, como se usa;

Condenaram-no a morte brevemente.

O Santo, que não vê milhor escusa

Que apelar pera o Padre omnipotente,

Quer, diante do Rei e dos senhores,

Que se faça um milagre dos maiores.

«O corpo morto manda ser trazido,

Que res[s]ucite e seja perguntado

Quem foi seu matador, e será crido

Por testemunho, o seu, mais aprovado.

Viram todos o moço vivo, erguido,

Em nome de Jesu crucificado:

Dá graças a Tomé, que lhe deu vida,

E descobre seu pai ser homicida.

«Este milagre fez tamanho espanto

Que o Rei se banha logo na água santa,

E muitos após ele; um beija o manto,

Outro louvor do Deus de Tomé canta.

Os Brâmenes se encheram de ódio tanto,

Com seu veneno os morde enveja tanta,

Que, persuadindo a isso o povo rudo,

Determinam matá-lo, em fim de tudo.

«Um dia que pregando ao povo estava,

Fingiram entre a gente um arruído.

(Já Cristo neste tempo lhe ordenava

Que, padecendo, fosse ao Céu subido);

A multidão das pedras que voava

No Santo dá, já a tudo oferecido;

Um dos maus, por fartar-se mais depressa,

Com crua lança o peito lhe atravessa.

«Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo;

Chorou-te toda a terra que pisaste;

Mais te choram as almas que vestindo

Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.

Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,

Te recebem na glória que ganhaste.

Pedimos-te que a Deus ajuda peças

Com que os teus Lusitanos favoreças.

«E vós outros que os nomes usurpais

De mandados de Deus, como Tomé,

Dizei: se sois mandados, como estais

Sem irdes a pregar a santa Fé?

Olhai que, se sois Sal e vos danais

Na pátria, onde profeta ninguém é,

Com que se salgarão em nossos dias

(Infiéis deixo) tantas heresias?

«Mas passo esta matéria perigosa

E tornemos à costa debuxada.

Já com esta cidade tão famosa

Se faz curva a Gangética enseada;

Corre Narsinga, rica e poderosa;

Corre Orixa, de roupas abastada;

No fundo da enseada, o ilustre rio

Ganges vem ao salgado senhorio;

«Ganges, no qual os seus habitadores

Morrem banhados, tendo por certeza

Que, inda que sejam grandes pecadores,

Esta água santa os lava e dá pureza.

Vê Catigão, cidade das milhores

De Bengala província, que se preza

De abundante. Mas olha que está posta

Pera o Austro, daqui virada, a costa.

«Olha o reino Arracão; olha o assento

De Pegu, que já monstros povoaram,

Monstros filhos do feio ajuntamento

Düa mulher e um cão, que sós se acharam.

Aqui soante arame no instrumento

Da geração costumam, o que usaram

Por manha da Rainha que, inventando

Tal uso, deitou fora o error nefando.

«Olha Tavai cidade, onde começa

De Sião largo o império tão comprido;

Tenassari, Quedá, que é só cabeça

Das que pimenta ali têm produzido.

Mais avante fareis que se conheça

Malaca por empório ennobrecido,

Onde toda a província do mar grande

Suas mercadorias ricas mande.

«Dizem que desta terra co as possantes

Ondas o mar, entrando, dividiu

A nobre ilha Samatra, que já d’antes

Juntas ambas a gente antiga viu.

Quersoneso foi dita; e das prestantes

Veias d’ouro que a terra produziu,

‘Aurea’, por epitéto lhe ajuntaram;

Alguns que fosse Ofir imaginaram.

«Mas, na ponta da terra, Cingapura

Verás, onde o caminho às naus se estreita;

Daqui tornando a costa à Cinosura,

Se encurva e pera a Aurora se endireita.

Vês Pam, Patane, reinos, e a longura

De Sião, que estes e outros mais sujeita;

Olha o rio Menão, que se derrama

Do grande lago que Chiamai se chama.

Vês neste grão terreno os diferentes

Nomes de mil nações, nunca sabidas:

Os Laos, em terra e número potentes;

Avás, Bramás, por serras tão compridas;

Vê nos remotos montes outras gentes,

Que Gueos se chamam, de selvages vidas;

Humana carne comem, mas a sua

Pintam com ferro ardente, usança crua.

«Vês, passa por Camboja Mecom rio,

Que capitão das águas se interpreta;

Tantas recebe d’ outro só no Estio,

Que alaga os campos largos e inquieta;

Tem as enchentes quais o Nilo frio;

A gente dele crê, como indiscreta,

Que pena e glória têm, despois de morte,

Os brutos animais de toda sorte.

«Este receberá, plácido e brando,

No seu regaço os Cantos que molhados

Vêm do naufrágio triste e miserando,

Dos procelosos baxos escapados,

Das fomes, dos perigos grandes, quando

Será o injusto mando executado

Naquele cuja Lira sonorosa

Será mais afamada que ditosa.

«Vês, corre a costa que Champá se chama,

Cuja mata é do pau cheiroso ornada;

Vês Cauchichina está, de escura fama,

E de Ainão vê a incógnita enseada;

Aqui o soberbo Império, que se afama

Com terras e riqueza não cuidada,

Da China corre, e ocupa o senhorio

Desde o Trópico ardente ao Cinto frio.

«Olha o muro e edifício nunca crido,

Que entre um império e o outro se edifica,

Certíssimo sinal, e conhecido,

Da potência real, soberba e rica.

Estes, o Rei que têm, não foi nacido

Príncipe, nem dos pais aos filhos fica,

Mas elegem aquele que é famoso

Por cavaleiro, sábio e virtuoso.

«Inda outra muita terra se te esconde

Até que venha o tempo de mostrar-se;

Mas não deixes no mar as Ilhas onde

A Natureza quis mais afamar-se:

Esta, meia escondida, que responde

De longe à China, donde vem buscar-se,

É Japão, onde nace a prata fina,

Que ilustrada será co a Lei divina.

«Olha cá pelos mares do Oriente

Ás infinitas Ilhas espalhadas:

Vê Tidore e Ternate, co fervente

Cume, que lança as flamas ondeadas.

As árvores verás do cravo ardente,

Co sangue Português inda compradas.

Aqui há as áureas aves, que não decem

Nunca à terra e só mortas aparecem.

«Olha de Banda as Ilhas, que se esmaltam

Da vária cor que pinta o roxo fruto;

Às aves variadas, que ali saltam,

Da verde noz tomando seu tributo.

Olha também Bornéu, onde não faltam

Lágrimas no licor coalhado e enxuto

Das árvores, que cânfora é chamado,

Com que da Ilha o nome é celebrado.

«Ali também Timor, que o lenho manda

Sândalo, salutífero e cheiroso;

Olha a Sunda, tão larga que üa banda

Esconde pera o Sul dificultoso;

A gente do Sertão, que as terras anda,

Um rio diz que tem miraculoso,

Que, por onde ele só, sem outro, vai,

Converte em pedra o pau que nele cai.

«Vê naquela que o tempo tornou Ilha,

Que também flamas trémulas vapora,

A fonte que óleo mana, e a maravilha

Do cheiroso licor que o tronco chora,

– Cheiroso, mais que quanto estila a filha

De Ciniras na Arábia, onde ela mora;

E vê que, tendo quanto as outras têm,

Branda seda e fino ouro dá também.

«Olha, em Ceilão, que o monte se alevanta

Tanto que as nuvens passa ou a vista engana;

Os naturais o têm por cousa santa,

Pola pedra onde está a pegada humana.

Nas ilhas de Maldiva nace a pranta

No profundo das águas, soberana,

Cujo pomo contra o veneno urgente

É tido por antídoto excelente.

«Verás defronte estar do Roxo Estreito

Socotorá, co amaro aloé famosa;

Outras ilhas, no mar também sujeito

A vós, na costa de África arenosa,

Onde sai do cheiro mais perfeito

A massa, ao mundo oculta e preciosa.

De São Lourenço vê a Ilha afamada,

Que Madagáscar é dalguns chamada.

«Eis aqui as novas partes do Oriente

Que vós outros agora ao mundo dais,

Abrindo a porta ao vasto mar patente,

Que com tão forte peito navegais.

Mas é também razão que, no Ponente,

Dum Lusitano um feito inda vejais,

Que, de seu Rei mostrando-se agravado,

Caminho há-de fazer nunca cuidado.

«Vedes a grande terra que contina

Vai de Calisto ao seu contrário Pólo,

Que soberba a fará a luzente mina

Do metal que a cor tem do louro Apolo.

Castela, vossa amiga, será dina

De lançar-lhe o colar ao rudo colo.

Varias províncias tem de várias gentes,

Em ritos e costumes, diferentes.

«Mas cá onde mais se alarga, ali tereis

Parte também, co pau vermelho nota;

De Santa Cruz o nome lhe poreis;

Descobri-la-á a primeira vossa frota.

Ao longo desta costa, que tereis,

Irá buscando a parte mais remota

O Magalhães, no feito, com verdade,

Português, porém não na lealdade.

«Dês que passar a via mais que meia

Que ao Antártico Pólo vai da Linha,

Düa estatura quási giganteia

Homens verá, da terra ali vizinha;

E mais avante o Estreito que se arreia

Co nome dele agora, o qual caminha

Pera outro mar e terra que fica onde

Com suas frias asas o Austro a esconde.

«Até’aqui Portugueses concedido

Vos é saberdes os futuros feitos

Que, pelo mar que já deixais sabido,

Virão fazer barões de fortes peitos.

Agora, pois que tendes aprendido

Trabalhos que vos façam ser aceitos

As eternas esposas e fermosas,

Que coroas vos tecem gloriosas,

«Podeis-vos embarcar, que tendes vento

E mar tranquilo, pera a pátria amada.»

Assi lhe disse; e logo movimento

Fazem da Ilha alegre e namorada.

Levam refresco e nobre mantimento;

Levam a companhia desejada

Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,

Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

Assi foram cortando o mar sereno,

Com vento sempre manso e nunca irado,

Até que houveram vista do terreno

Em que naceram, sempre desejado.

Entraram pela foz do Tejo ameno,

E à sua pátria e Rei temido e amado

O prémio e glória dão por que mandou,

E com títulos novos se ilustrou.

Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está
metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Düa austera, apagada e vil tristeza.

E não sei por que influxo de Destino

Não tem um ledo orgulho e geral gosto,

Que os ânimos levanta de contino

A ter pera trabalhos ledo o rosto.

Por isso vós, ó Rei, que por divino

Conselho estais no régio sólio posto,

Olhai que sois (e vede as outras gentes)

Senhor só de vassalos excelentes.

Olhai que ledos vão, por várias vias,

Quais rompentes liões e bravos touros,

Dando os corpos a fomes e vigias,

A ferro, a fogo, a setas e pelouros,

A quentes regiões, a plagas frias,

A golpes de Idolátras e de Mouros,

A perigos incógnitos do mundo,

A naufrágios, a pexes, ao profundo.

Por vos servir, a tudo aparelhados;

De vós tão longe, sempre obedientes;

A quaisquer vossos ásperos mandados,

Sem dar reposta, prontos e contentes.

Só com saber que são de vós olhados,

Demónios infernais, negros e ardentes,

Cometerão convosco, e não duvido

Que vencedor vos façam, não vencido.

Favorecei-os logo, e alegrai-os

Com a presença e leda humanidade;

De rigorosas leis desalivai-os,

Que assi se abre o caminho à santidade.

Os mais exprimentados levantai-os,

Se, com a experiência, têm bondade

Pera vosso conselho, pois que sabem O como, o quando, e onde
as cousas cabem.

Todos favorecei em seus ofícios,

Segundo têm das vidas o talento;

Tenham Religiosos exercícios

De rogarem, por vosso regimento,

Com jejuns, disciplina, pelos vícios

Comuns; toda ambição terão por vento,

Que o bom Religioso verdadeiro

Glória vã não pretende nem dinheiro.

Os Cavaleiros tende em muita estima,

Pois com seu sangue intrépido e fervente

Estendem não sòmente a Lei de cima,

Mas inda vosso Império preminente.

Pois aqueles que a tão remoto clima

Vos vão servir, com passo diligente,

Dous inimigos vencem: uns, os vivos,

E (o que é mais) os trabalhos excessivos.

Fazei, Senhor, que nunca os admirados

Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,

Possam dizer que são pera mandados,

Mais que pera mandar, os Portugueses.

Tomai conselho só d’exprimentados

Que viram largos anos, largos meses,

Que, posto que em cientes muito cabe.

Mais em particular o experto sabe.

De Formião, filósofo elegante,

Vereis como Anibal escarnecia,

Quando das artes bélicas, diante

Dele, com larga voz tratava e lia.

A disciplina militar prestante

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Senão vendo, tratando e pelejando.

Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,

De vós não conhecido nem sonhado?

Da boca dos pequenos sei, contudo,

Que o louvor sai às vezes acabado.

Tem me falta na vida honesto estudo,

Com longa experiência misturado,

Nem engenho, que aqui vereis presente,

Cousas que juntas se acham raramente.

Pera servir-vos, braço às armas feito,

Pera cantar-vos, mente às Musas dada;

Só me falece ser a vós aceito,

De quem virtude deve ser prezada.

Se me isto o Céu concede, e o vosso peito

Dina empresa tomar de ser cantada,

Como a pres[s]aga mente vaticina

Olhando a vossa inclinação divina,

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,

A vista vossa tema o monte Atlante,

Ou rompendo nos campos de Ampelusa

Os muros de Marrocos e Trudante,

A minha já estimada e leda Musa

Fico que em todo o mundo de vós cante,

De sorte que Alexandro em vós se veja,

Sem à dita de Aquiles ter enveja.

FIM

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