Sôbolos rios que vôo (1595)

Redondilhas de Luís Vaz de Camões

SUPER FLUMINA …

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Sôbolos rios que vão

por Babilónia, m’achei,

onde sentado chorei

as lembranças de Sião

e quanto nela passei.

Ali o rio corrente

de meus olhos foi manado,

e tudo bem comparado,

Babilónia ao mal presente,

Sião ao tempo passado.

Ali, lembranças contentes

n’alma se representaram,

e minhas cousas ausentes

se fizeram tão presentes

como se nunca passaram.

Ali, despois de acordado,

co rosto banhado em água,

deste sonho imaginado,

vi que todo o bem passado

não é gosto, mas é mágoa.

E vi que todos os danos

se causavam das mudanças

e as mudanças dos anos;

onde vi quantos enganos

faz o tempo às esperanças.

Ali vi o maior bem

quão pouco espaço que dura,

o mal quão depressa vem,

e quão triste estado tem

quem se fia da ventura.

Vi aquilo que mais val,

que então se entende milhor

quanto mais perdido for;

vi o bem suceder mal,

e o mal, muito pior.

E vi com muito trabalho

comprar arrependimento;

vi nenhum contentamento,

e vejo-me a mim, que espalho

tristes palavras ao vento.

Bem são rios estas águas,

com que banho este papel;

bem parece ser cruel

variedade de mágoas

e confusão de Babel.

Como homem que, por exemplo

dos transes em que se achou,

despois que a guerra deixou,

pelas paredes do templo

suas armas pendurou:

Assi, despois que assentei

que tudo o tempo gastava,

da tristeza que tomei nos

salgueiros pendurei os órgãos

com que cantava.

Aquele instrumento ledo

deixei da vida passada,

dizendo:-Música amada,

deixo-vos neste arvoredo

à memória consagrada.

Frauta minha que, tangendo,

os montes fazíeis vir

para onde estáveis, correndo;

e as águas, que iam decendo,

tornavam logo a subir:

jamais vos não ouvirão

os tigres, que se amansavam,

e as ovelhas, que pastavam,

das ervas se fartarão

que por vos ouvir deixavam.

Já não fareis docemente

em rosas tornar abrolhos

na ribeira florecente;

nem poreis freio à corrente,

e mais, se for dos meus olhos.

Não movereis a espessura,

nem podereis já trazer

atrás vós a fonte pura,

pois não pudestes mover

desconcertos da ventura

Ficareis oferecida

à Fama, que sempre vela,

frauta de mim tão querida;

porque, mudando-se a vida,

se mudam os gostos dela.

Acha a tenta mocidade

prazeres acomodados,

e logo a maior idade

já sente por pouquidade

aqueles gostos passados.

Um gosto que hoje se alcança,

amanhã já o não vejo;

assi nos traz a mudança

de esperança em esperança,

e de desejo em desejo.

Mas em vida tão escassa

que esperança será forte?

Fraqueza da humana sorte,

que, quanto da vida passa

está receitando a morte!

Mas deixar nesta espessura

o canto da mocidade,

não cuide a gente futura

que será obra da idade

o que é força da ventura.

Que idade, tempo, o espanto

de ver quão ligeiro passe,

nunca em mim puderam tanto

que, posto que deixe o canto,

a causa dele deixasse.

Mas, em tristezas e enojas

em gosto e contentamento,

por sol, por neve, por vento,

terné presente a los ojos

por quien muero tan contento.

Orgãos e frauta deixava,

despojo meu tão querido,

no salgueiro que ali estava

que para troféu ficava

de quem me tinha vencido.

Mas lembranças da afeição

que ali cativo me tinha,

me perguntaram então:

que era da música minha

que eu cantava em Sião?

Que foi daquele cantar

das gentes tão celebrado?

Porque o deixava de usar?

Pois sempre ajuda a passar

qualquer trabalho passado.

Canta o caminhante ledo

no caminho trabalhoso.

por antr’o espesso arvoredo

e, de noite, o temeroso

cantando, refreia o medo.

Canta o preso documente

os duros grilhões tocando;

canta o segador contente;

e o trabalhador, cantando,

o trabalho menos sente.

Eu, qu’estas cousas senti

n’alma, de mágoas tão cheia

Como dirá, respondi,

quem tão alheio está de si

doce canto em terra alheia?

Como poderá cantar

quem em choro banh’o peito?

Porque se quem trabalhar

canta por menos cansar,

eu só descansos enjeito.

Que não parece razão

nem seria cousa idónea,

por abrandar a paixão,

que cantasse em Babilónia

as cantigas de Sião.

Que, quando a muita graveza

de saudade quebrante

esta vital fortaleza,

antes moura de tristeza

que, por abrandá-la, cante.

Que se o fino pensamento

só na tristeza consiste,

não tenho medo ao tormento

que morrer de puro triste,

que maior contentamento?

Nem na frauta cantarei

O que passo, e passei já,

nem menos o escreverei,

porque a pena cansará,

e eu não descansarei.

Que, se vida tão pequena

se acrecenta em terra estranha,

e se amor assi o ordena,

razão é que canse a pena

de escrever pena tamanha.

Porém se, para assentar

o que sente o coração,

a pena já me cansar

não canse para voar

a memória em Sião.

Terra bem-aventurada,

se, por algum movimento,

d’alma me fores mudada,

minha pena seja dada

a perpétuo esquecimento.

A pena deste desterro,

que eu mais desejo esculpida

em pedra, ou em duro ferro,

essa nunca sela ouvida,

em castigo de meu erro.

E se eu cantar quiser,

em Babilónia sujeito,

Hierusalém, sem te ver,

a voz, quando a mover,

se me congele no peito.

A minha língua se apegue

às fauces, pois te perdi,

se, enquanto viver assi,

houver tempo em que te negue

ou que me esqueça de ti.

Mas ó tu, terra de Glória,

se eu nunca vi tua essência,

como me lembras na ausência?

Não me lembras na memória,

senão na reminiscência.

Que a alma é tábua rasa,

que, com a escrita doutrina

celeste, tanto imagina,

que voa da própria casa

e sobe à pátria divina.

Não é, logo, a saudade

das terras onde naceu

a carne, mas é do Céu,

daquela santa cidade,

donde esta alma descendeu.

E aquela humana figura,

que cá me pôde alterar,

não é quem se há-de buscar:

é raio de fermosura,

que só se deve de amar.

Que os olhos e a luz que ateia

o fogo que cá sujeita,

não do sol, mas da candeia,

é sombra daquela Ideia

que em Deus está mais perfeita.

E os que cá me cativaram

são poderosos afeitos

que os corações têm sujeitos;

sofistas que me ensinaram

maus caminhos por direitos.

Destes, o mando tirano

me obriga, com desatino,

a cantar ao som do dano

cantares d’amor profano

por versos d’amor divino.

Mas eu, lustrado co santo

Raio, na terra de dor,

de confusão e de espanto,

como hei-de cantar o canto

que só se deve ao Senhor?

Tanto pode o beneficio

da Graça, que dá saúde,

que ordena que a vida mude;

e o que tomei por vício

me faz grau para a virtude;

e faz que este natural

amor, que tanto se preza,

suba da sombra ao Real,

da particular beleza

para a Beleza geral.

Pique logo pendurada

a frauta com que tangi,

ó Hierusalém sagrada,

e tome a lira dourada,

para só cantar de ti.

Não cativo e ferrolhado

na Babilónia infernal,

mas dos vícias desatado,

e cá desta a ti levado,

Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz

a mundanos acidentes,

duros, tiranos e urgentes,

risque-se quanto já fiz

do grão livro dos viventes.

E tomando já na mão

a lira santa, e capaz

doutra mais alta invenção,

cale-se esta confusão,

cante-se a visão da paz.

Ouça-me o pastor e o Rei,

retumbe este acento santo,

mova-se no mundo espanto,

que do que já mal cantei

a palinódia já canto.

A vós só me quero ir,

Senhor e grão Capitão

da alta torre de Sião,

à qual não posso subir

se me vós não dais a mão.

No grão dia singular

que na lira o douto som

Hierusalém celebrar,

lembrai-vos de castigar

os ruins filhos de Edom.

Aqueles que tintos vão

no pobre sangue inocente,

soberbos co poder vão,

arrasai-os igualmente,

conheçam que humanos são.

E aquele poder tão duro

dos afeitos com que venho,

que encendem alma e engenho,

que já me entraram o muro

do livre alvídrio que tenho;

estes, que tão furiosos

gritando vêm a escalar-me,

maus espíritos danosos,

que querem como forçosos

do alicerce derrubar-me;

Derrubui-os, fiquem sós,

de forças fracos, imbeles,

porque não podemos nós

nem com eles ir a Vós,

nem sem Vós tirar-nos deles.

Não basta minha fraqueza,

para me dar defensão,

se vós, santo Capitão,

nesta minha fortaleza

não puserdes guarnição.

E tu, ó carne que encantas,

filha de Babel tão feia,

toda de misérias cheia,

que mil vezes te levantas,

contra quem te senhoreia:

beato só pode ser

quem co a ajuda celeste

contra ti prevalecer,

e te vier a fazer

o mal que lhe tu fizeste;

Quem com disciplina crua

se fere mais que üa vez,

cuja alma, de vícios nua,

faz nódoas na carne sua,

que já a carne n’alma fez.

E boato quem tomar

seus pensamentos recentes

e em nacendo os afogar,

por não virem a parar

em vícios graves e urgentes;

Quem com eles logo der

na pedra do furar santo,

e, batendo, os desfizer

na Pedra, que veio a ser

enfim cabeça do Canto;

Quem logo, quando imagina

nos vícios da carne má,

os pensamentos declina

VOLTAS

Só porque é rapaz ruim,

dei-lhe um bofete, zombando;

diz-me:-Ó mau, estais-me dando

porque sois maior que mim?

pois se vos eu descarrego…

Em dizendo isto, chaz!

torna-m’outra. Tá! rapaz,

que dás porrada de cego!

a este moto seu:

Venceu-me Amor, não o nego;

tem mais força qu’eu assaz;

que, como é cego, e rapaz,

dá-me porrada de cego!

àquela Carne divina

que na Cruz esteve já.

Quem do vil contentamento

cá deste mundo visível,

quanto ao homem for possível,

passar logo o entendimento

para o mundo inteligível:

ali achará alegria

em tudo perfeita e cheia,

de tão suave harmonia

que nem, por pouca, recreia,

nem, por sobeja, enfastia.

Ali verá tão-profundo

mistério na suma alteza

que, vencida a natureza,

os mores faustos do mundo

julgue por maior baixesa

Ó tu, divino aposento,

minha pátria singular!

Se só com te imaginar

tanto sobe o entendimento,

que fará se em ti se achar?

Ditoso quem se partir

para ti, terra excelente,

tão justo e tão penitente

que, despois de a ti subir

lá descanse eternamente

Fonte: www.bibvirt.futuro.usp.br

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