Dia da Juventude no Brasil

22 de Setembro

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Dia da Juventude no Brasil

Vejo na tv o que eles falam sobre o jovem não é sério
O jovem no Brasil nunca é levado a sério(…) 
Sempre quis falar, nunca tive chance
Tudo que eu queria estava fora do meu alcance(…)
(Charlie Brown Junior – “Não é sério” )

Este trecho da música do grupo Charles Brown Junior traduz e denuncia o paradoxo vivenciado pelos jovens no Brasil. Nunca as características e valores ligados à juventude, como a energia e a estética corporal ou mesmo a busca do novo, foram tão louvados, num processo que poderíamos chamar de “juvenilização” da sociedade. Mas, ao mesmo tempo, a juventude brasileira ainda não é encarada como sujeito de direitos, não sendo foco de políticas públicas que garantam o acesso a bens materiais e culturais, além de espaços e tempos onde possam vivenciar plenamente esta fase tão importante da vida. Além disso, como diz a música, o jovem não é levado a sério, exprimindo a tendência, muito comum nas escolas e programas educativos, de não considerar o jovem como interlocutor válido, capaz de emitir opiniões e interferir nas propostas que lhes dizem respeito, desestimulando a sua participação e o seu protagonismo.

A música também denuncia um outro fenômeno comum: a criação de imagens e preconceitos sobre a juventude contemporânea, principalmente pelas mídias, que interferem na nossa maneira de compreender os jovens. Uma das mais arraigadas é a juventude vista na sua condição de transitoriedade, onde o jovem é um “vir a ser”, tendo, no futuro, na passagem para a vida adulta, o sentido das suas ações no presente. Sob essa ótica, há uma tendência de encarar a juventude na sua negatividade, como o que ainda não se chegou a ser (SALEM,1986), negando o presente vivido. Essa concepção está muito presente na escola: em nome do “vir a ser” do aluno, traduzido no diploma e nos possíveis projetos de futuro, tende a negar o presente vivido dos jovens como espaço válido de formação, bem como as questões existenciais que eles expõem, as quais são bem mais amplas do que apenas o futuro. Quando imbuídos por esta concepção, os projetos educativos perdem a oportunidade de dialogarem com as demandas e necessidades reais do jovem, distanciando-se dos seus interesses do presente, diminuindo as possibilidades de um envolvimento efetivo nas suas propostas educativas.

Esta imagem convive com uma outra: a juventude vista como problema, ganhando visibilidade quando associada ao crescimento alarmante dos índices de violência, ao consumo e tráfico de drogas ou mesmo à expansão da Aids e da gravidez precoce, entre outros. Não que estes aspectos da realidade não sejam importantes e estejam demandando ações urgentes para serem equacionados. A questão é, ao conceber o jovem de uma maneira reducionista, vendo-o apenas sob a ótica do problema, as ações em prol da juventude passam a ser focadas na busca de superação do suposto “problema” e, nesse sentido, voltam-se somente para os setores juvenis considerados pela sociedade, pela escola e pela mídia como “em situação de risco”. Tal postura inibe o investimento em ações baseadas na perspectiva dos direitos e que desencadeiem políticas e práticas que focalizam a juventude nas suas potencialidades e possibilidades.

Em uma outra direção, uma imagem presente é a visão romântica da juventude, que aparece associada a um tempo de liberdade, de prazer, de expressão de comportamentos exóticos. A essa idéia se alia a noção de moratória, como um tempo para o ensaio e erro, para experimentações, um período marcado pela busca do prazer e pela irresponsabilidade, com uma relativização da aplicação de sanções sobre o comportamento juvenil. Nesta imagem, parece que o jovem não vivencia as dificuldades e as dores também envolvidas nas descobertas, no confronto com os limites dados pela história individual, pelo contexto familiar e social. Mais recentemente, acrescenta-se uma outra tendência em perceber o jovem reduzido apenas ao campo da cultura, como se ele só expressasse a sua condição juvenil nos finais de semana ou quando envolvido em atividades culturais.

Ao pretendermos desenvolver um trabalho com jovens, torna-se necessário colocar em questão estas imagens pois, quando arraigados nesses “modelos” socialmente construídos, corremos o risco de analisar os jovens de forma negativa, enfatizando as características que lhes faltariam para corresponder a um determinado modelo de “ser jovem”, ou mesmo projetarmos nas novas gerações as lembranças, idealizações e valores da juventude de uma outra época. Agindo dessa forma não conseguimos apreender os modos pelos quais os jovens reais, principalmente se forem das camadas populares, constroem a sua experiência como tais, muito menos apreender as suas demandas. Como nos lembra a antropologia, para compreender é necessário conhecer.

Mas o que é ser jovem? Partimos da idéia que a juventude é, ao mesmo tempo, uma condição social e um tipo de representação. De um lado há um caráter universal dado pelas transformações do indivíduo numa determinada faixa etária. De outro, há diferentes construções históricas e sociais relacionadas a esse tempo/ciclo da vida. De maneira geral, podemos dizer que a entrada da juventude se faz pela fase que chamamos de adolescência e é marcada por transformações biológicas, psicológicas e de inserção social. É nesta fase que fisicamente se adquire o poder de procriar, quando a pessoa dá sinais de ter necessidade de menos proteção por parte da família, quando começa a assumir responsabilidades, a buscar a independência e a dar provas de auto-suficiência, dentre outros sinais corporais e psicológicos.

Mas, ao mesmo tempo a construção social da juventude pode se dar de forma muito variada nas diferentes sociedades e em diferentes momentos históricos. Assim, podemos dizer que cada sociedade e cada grupo social lida e representa de maneira diversa esse momento. Essa diversidade se concretiza nas condições sociais (classes sociais), culturais (etnias, identidades religiosas, valores), de gênero, nas regiões geográficas, dentre outros. É muito diferente, por exemplo, a noção do que é o jovem, de como vivencia esta fase e de como é tratado em famílias de classe média ou de camadas populares, em um grande centro urbano ou no meio rural. Nesta perspectiva não podemos enquadrar a juventude em critérios rígidos, como uma etapa com um início e um fim prédeterminados, muito menos como um momento de preparação que será superado quando entrar na vida adulta.

Devemos entender a juventude como parte de um processo mais amplo de constituição de sujeitos, mas que tem suas especificidades que marcam a vida de cada um. A juventude constitui um momento determinado, mas que não se reduz a uma passagem, assumindo uma importância em si mesma. Todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve e pela qualidade das trocas que este proporciona. Enfim, podemos dizer que não existe um único modo de ser jovem, o que nos leva a enfatizar a noção de juventudes, no plural, para explicitar a diversidade de modos de ser jovem existentes. Neste sentido, é fundamental que cada escola ou projeto educativo busque construir, em conjunto com os próprios jovens, um perfil do grupo com quem atuam, detectando quem são eles, como constroem o modo de ser jovens, as suas demandas, necessidades e expectativas.

A realidade dos jovens no Brasil: alguns aspectos

Para ampliar nossa compreensão a respeito dos jovens, vamos traçar um retrato da juventude no Brasil, fazendo uma breve síntese dos indicadores sociais relacionados a esta fase da vida. Nem sempre consideramos a importância desses indicadores. Contudo, um maior conhecimento dos dados estatísticos que dizem respeito à realidade juvenil brasileira poderá nos revelar aspectos importantes da situação desse segmento em setores importantes como emprego, educação, saúde, segurança pública e cultura. Esse conhecimento poderá ampliar o nosso olhar diante da realidade do jovem no Brasil e, quem sabe, ajudará na construção de uma maior solidariedade e responsabilidade dos educadores e do poder público diante dessa população.

Segundo o Censo 2000, a população jovem, compreendida na faixa de 15 a 24 anos3, é de cerca de 33 milhões, correspondendo a 21% da população total do país. Deste total, a grande maioria (80%) vive nas áreas urbanas, que em grande medida não possuem os equipamentos sociais necessários para suprir suas múltiplas necessidades de desenvolvimento. Em termos educacionais, a taxa de escolarização varia conforme os grupos de idade. Assim, entre os jovens de 15 a 17 anos, 78,8% estavam matriculados nas escolas no ano 2000. Mas esta taxa vai decrescendo no avançar da idade: entre os jovens de 18 e 19 anos a taxa cai para 50,3% e entre aqueles de 20 a 24 anos apenas 26,5% estavam estudando, uma das taxas mais baixas da América Latina

O mesmo Censo 2000 que apontou a extensão do acesso à escolarização para um maior contingente de jovens, revelou também dados preocupantes sobre o atraso escolar no ensino público. Segundo o levantamento, só na faixa etária de 15 a 17 anos, mais da metade dos jovens que estudavam (52%) estavam matriculados no ensino fundamental, que deveria ser terminado aos 14 anos. Mesmo com a melhora relativa nos índices de escolaridade, a grande maioria dos jovens não consegue chegar ao Ensino Médio e ao Superior.

Se considerarmos outras variáveis como cor da pele e origem urbana ou rural do jovem verifica-se um quadro muito intenso de desigualdades entre os jovens. Assim, dentre os estudantes que vivem situações de exclusão social (famílias que vivem com até ½ salário mínimo), 69,2% são negros e pardos. A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio) de 1999 nos mostra que, no grupo de 11 a 17 anos de idade, o percentual de adolescentes negros que não concluíram a 4a série do ensino fundamental foi de 37,5%, enquanto entre os brancos essa taxa foi de 17,1%. As mesmas disparidades podem ser observadas por situação de domicílio, pois 44,2% dos jovens que vivem nas áreas urbanas são estudantes e apenas 28,3% daqueles que estão na zona rural estão nessa condição (DADOS DE 1995).

Uma pesquisa realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), sobre “desigualdade racial no Brasil; evolução das condições de vida na década de 90”, revela dados importantes sobre a situação étnico/racial da juventude brasileira e seu processo de escolarização. Esse estudo atesta a existência de uma grande desigualdade racial entre jovens negros e brancos na educação. Segundo o IPEA, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo. O diferencial é de 2,3 anos de estudo. A intensidade dessa discriminação racial, expressa em termos de escolaridade formal dos jovens e adultos brasileiros, é extremamente alta, sobretudo se lembramos que trata-se de 2,3 anos de diferença em uma sociedade cuja escolaridade média dos adultos gira em torno de 6 anos.

Apesar de reconhecer que a escolaridade média dos brancos e dos negros tem aumentado de forma contínua ao longo do século XX, os dados de tal pesquisa não deixam de ser alarmantes, quando se comparam as condições e a trajetória escolar de jovens negros e brancos. Um jovem branco de 25 anos tem, em média, mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro da mesma idade e essa intensidade da discriminação racial é a mesma vivida pelos pais desses jovens e a mesma observada pelos seus avós. Nesse sentido, apesar de a escolaridade média de ambas as raças ter crescido ao longo do século, o padrão de discriminação racial expresso pelo diferencial de anos de escolaridade entre brancos e negros mantém-se absolutamente estável entre as gerações. O padrão de discriminação racial observado em nossa sociedade padece de uma inércia histórica. Não há como negar a urgência de políticas públicas que interfiram e apresentem mudanças nesse quadro!

A realidade do ensino superior é ainda mais desoladora. Em 1999, 89% dos jovens brancos entre 18 e 25 anos não haviam ingressado na universidade. Os jovens negros nessa mesma faixa de idade, por sua vez, praticamente não dispõem do direito ao acesso ao ensino superior, na medida em que 98% deles não ingressaram na universidade.

Não podemos esquecer também dos mecanismos perversos intra/extra escolares que ora expulsam ou incorporam de modo precário os jovens, acentuando as enormes distorções escolares entre idade e série e baixos níveis de conclusão da educação obrigatória (apenas 24,8% tem o equivalente ao ensino fundamental e mais).

Mas é também impossível analisar a juventude brasileira se não for considerado o mundo do trabalho, pois os dados de 95 demonstram que 65% dos jovens entre 15-24 anos estavam exercendo algum tipo de ocupação. A maioria estava empregada na zona rural, seguida pelo setor de serviços, comércio e em quarto lugar pela indústria de transformação. Os indicadores sociais que medem a desocupação da força de trabalho sugerem que a principal responsabilidade pela concentração de renda pode ser atribuída ao desemprego. No que se refere à distribuição etária do desemprego, as piores taxas de desocupação são encontradas no segmento populacional juvenil. Os desempregados somavam nesse mesmo ano 2,1 milhões, cerca de 47,6% do total da PEA. Entre 1986 e 1996 o emprego assalariado foi reduzido em 23,8%, considerando a população de 10 a 24 anos, Assim, para cada 10 jovens ocupados, 4 são autônomos, 6 são assalariados (4 sem carteira e apenas 2 com carteira assinada).

Em termos gerais, podemos dizer que as portas do 1º emprego foram fechadas para os jovens brasileiros, em especial aquela maioria de baixa escolaridade oriunda dos estratos populares. O sentimento de fracasso que acompanha o jovem que procura trabalho remunerado e não consegue representa uma porta aberta para a frustração, o desânimo e também a possibilidade do ganho pela via do crime

A mortalidade entre jovens no Brasil – a epidemia dos homicídios

As estatísticas indicam que o Brasil ocupa o terceiro lugar no mundo naquilo que se refere ao assassinato de jovens entre 15 e 24 anos, segundo estudo da UNESCO divulgado em agosto de 2000 e denominado Mapa da Violência III. O Rio de Janeiro se tornou a terceira capital brasileira mais perigosa para a vida de jovens na faixa etária entre 15 e 24 anos. De 1989 a 1998, o percentual de jovens mortos por homicídios no Rio subiu 217,3%. Segundo informações do Ministério da Saúde, no Brasil, as taxas de mortalidade entre homens de 15 a 24 anos são quase 50% maiores que as dos Estados Unidos e 100% maiores que as registradas no Canadá, na França ou na Itália.

Os números excedem aqueles relativos a países em situação de guerra declarada. O tráfico e o consumo de drogas contribui fortemente para a participação de jovens brasileiros no ciclo perverso de homicídios quer sejam como agressores ou como vítimas da violência.

Os traficantes de drogas encontram nos jovens das áreas populares urbanas uma mão-de-obra barata e disponível para seus empreendimentos que se situam no contexto de uma rede ações criminosas que envolvem também o roubo, os jogos de azar, a exploração sexual, a extorsão e o comércio ilegal de armas.

Assim, para a grande maioria da população jovem brasileira – seus setores empobrecidos – os níveis de escolaridade são bastante baixos, o trabalho precário ou o desemprego são realidades cotidianas, observando-se poucas perspectivas de vida diante do incremento da violência nas áreas urbanas metropolitanas, sobretudo os homicídios. Estes indicadores sociais constituem-se numa forte evidência para a confirmação da noção de que as juventudes não são apenas muitas, mas são, fundamentalmente, constituídas por múltiplas dimensões existenciais que condicionam o leque de oportunidades da vivência da condição juvenil. A situação dessas diferentes parcelas de jovens se vê agravada pelo encolhimento do Estado na esfera pública, que não oferece soluções por meio de políticas que contemplem a juventude, o que gera uma privatização e despolitização das condições de vida. Neste contexto, as famílias se vêem cada vez mais responsabilizadas por garantir a reprodução dos seus membros, não contando com quem as possa ajudar a se ajudar”.

Nesse sentido, se desejamos trabalhar ou se já trabalhamos com a juventude faz-se necessário um conhecimento mais ampliado e mais profundo sobre a condição juvenil brasileira. Veremos que o nosso trabalho extrapola o cotidiano propriamente dito e que o mundo adulto tem uma responsabilidade social para com a nossa juventude. Essa compreensão poderá reorientar nossas imagens, visões e forma de lidar com os jovens com os quais convivemos.

OS JOVENS E A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

A vivência da juventude, desde a adolescência, tende a ser caracterizada por experimentações em todas as dimensões da vida subjetiva e social, possibilitando novas vivências, sensações e emoções que trazem conhecimento sobre si mesmos e do mundo, fazendo desta fase da vida o momento por excelência do exercício de inserção social. Porém, como já vimos, não existe um padrão único e cada jovem pode vivenciar esta fase de forma própria, de acordo com as suas especificidades pessoais e o contexto social onde se insere.

Apesar das especificidades, existem tendências que se reiteram. Na nossa cultura, a primeira fase da juventude- a adolescência – as mudanças corporais são acompanhadas de questionamentos sobre a nova imagem, provocando temor, angústia e, dentro da ambivalência característica dessa fase, alegrias pela descoberta de novas emoções. Novas relações começam a se estabelecer entre os sexos, num período de novas experimentações de sua capacidade de atrair e ser atraído, mais difícil para uns, mais fácil para outros, lidando com as novas possibilidades de relacionamentos e com as descobertas sexuais. Em todo este processo lidam com as oscilações constantes, querendo e temendo ser independentes, querendo ser adultos e ao mesmo tempo crianças, querendo namorar e brincar. Este período também é marcado por novas possibilidades de compreensão do mundo.

Estas novas possibilidades que são descortinadas provocam deslumbramento, mas também assustam. O jovem torna-se capaz de refletir sobre a dimensão individual e social e de se ver como um indivíduo que dela participa, recebendo e exercendo influências. Essa fase da vida pode ser crucial para que o jovem possa se desenvolver plenamente como adulto e cidadão, sendo necessários tempos, espaços e relações de qualidade que possibilitem a cada um experimentar e desenvolver todas as suas potencialidades.

É nesse processo, permeado de descobertas, emoções, ambivalências e conflitos, que o jovem se defronta com a pergunta: “quem sou eu?” e passa a lidar com a questão da identidade.

Para refletir sobre a questão da “identidade” entre os jovens, a primeira tarefa é superar a idéia de que existe um eu interior natural, separado do mundo exterior, como se este fosse uma máscara ou capa colocada pela sociedade sobre o núcleo interno com o qual já nascemos. Ao contrário, a identidade é uma construção que cada um de nós vai fazendo por meio das relações que estabelece com o mundo e com os outros, a partir do grupo social a que pertence, do contexto familiar, das experiências individuais, e de acordo com os valores, idéias e normas que organizam sua visão de mundo. Mas nem sempre foi assim e nem é assim em todas as sociedades.

A Antropologia nos ensina que nas sociedades simples a passagem da infância para a juventude se dava (e ainda se dá) através dos chamados ritos de passagem. Eram e são provas difíceis, nas quais tanto o menino quanto a menina tinham de provar que podiam assumir uma nova uma identidade social, definindo assim a passagem para o mundo adulto. Eram provas quase sempre duras, dolorosas: os meninos tinham que mostrar que sabiam usar armas, reconhecer plantas e animais, a sentir medo e a experimentar as dificuldades de sobrevivência. As meninas, por sua parte, tinham que mostrar que estavam familiarizadas com os segredos da gestação da vida. Eram a partir dessas provas que eles podiam dizer: sou membro deste coletivo, pertenço a este grupo, sou tal pessoa. Ou seja, assumiam uma determinada identidade. Mas uma identidade que era dada de fora, respondida pelos outros, pela família, pela comunidade.

A modernidade elaborou uma outra concepção, baseada na idéia do sujeito cartesiano, do indivíduo. Vem daí a idéia da identidade vista como essência, natural ao indivíduo, este visto como totalmente separado da sociedade. Já nas sociedades industriais, a identidade já é vista como resultado de uma interação com o meio social. O indivíduo ainda tem um núcleo ou essência interior que é o seu “eu real” mas que é formado e modificado em diálogo continuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem.

Podemos constatar isso ainda entre nós, por exemplo, na relação que as sociedades ocidentais mantêm com a idade cronológica. Nessas sociedades, existe uma categorização rígida entre as etapas da vida. Assim, o que a sociedade “permite” ou concorda que seja feito por um jovem nem sempre se dá da mesma forma para um adulto de 30 anos ou um idoso de 70. Mais do que ter uma idade, pertencemos a uma idade, nos situando em grupos socialmente definidos. A sociedade classifica e espera determinados comportamentos dos indivíduos de acordo com o momento/ciclo da vida em que estes se encontram. Nesse sentido, constroem-se opiniões sobre o que é considerado aceitável ou ridículo para as diversas categorias de idade. Significa dizer que ainda existe entre nós uma imposição de uma identidade em função de parâmetros socialmente estabelecidos: é indicado quem se pode ser, o que pode fazer e o que é permitido ou não em tal ou qual idade.

Mas na contemporaneidade vivemos num momento de transformações globais profundas que vêm afetar as realidades mais próximas e também a intimidade do Eu. Vivemos numa sociedade planetarizada, na qual as transformações sociais são cada vez mais frequentes e intensas, numa outra relação com o tempo e o espaço. Uma sociedade na qual o eixo fundamental é a produção e circulação de informações, e especialmente um tipo particular de informação que é a imagem. Por meio da intensificação da velocidade das informações, os jovens entram em contato e de alguma forma interagem com as dimensões locais e globais, que determinam-se mutuamente, mesclando singularidades e universalidades, tendo acesso a diferentes modos de ser, a diferentes modos de viver, a diferentes modelos sociais que terminam interferindo nos processos identitários.

Neste contexto, a fonte da identidade está cada vez mais centrada nos indivíduos, que vem adquirindo a capacidade autônoma de definir-se como tais, construindo sua identidade como algo que não está dado e que não vem de uma vez para sempre. São as referências socioculturais, locais e globais, o campo de escolhas que se apresentam ao individuo, e dessa forma, amplia-se a esfera da liberdade pessoal e o exercício da decisão voluntária. A resposta à pergunta: “quem sou eu?” não está dada: ela deve ser construída. A identidade é vivenciada assim, como uma ação e não tanto como uma situação: é o indivíduo que constrói a sua consistência e seu reconhecimento, no interior dos limites postos pelo ambiente e pelas relações sociais.

A construção da identidade é antes de tudo um processo relacional, ou seja, um indivíduo só toma consciência de si na relação com o Outro. Ninguém pode construir a sua identidade independentemente da identificação que os outros possuem a seu respeito, num processo intersubjetivo onde “eu sou para você o que você é para mim”. É uma interação social, o que aponta para a importância do pertencimento grupal e das suas relações solidárias para o reforço e garantia da identidade individual. Não nos sentimos ligados aos outros apenas pelo fato de existirem interesses comuns mas, sobretudo, porque esta é a condição para reconhecer o sentido do que fazemos, podendo nos afirmar como sujeitos das nossas ações. Fica evidente, como iremos ver mais adiante, a importância do grupo de amigos, das esferas culturais, da escola, das atividades de lazer, entre outros, como espaços que podem contribuir na construção de identidades positivas. Para isso, é fundamental entender quais as esferas da vida que se tornam significativas para o jovem, bem como compreender o significado de cada uma delas na construção da sua auto-imagem.

Podemos dizer, enfim, que a identidade é, antes de tudo, construída em um processo de aprendizagem, o que implica no amadurecimento da capacidade de integrar o passado, o presente e o futuro e também articular a unidade e a continuidade de uma biografia individual.

Mas a identidade não pode ser pensada apenas na sua dimensão de auto-imagem individual ou grupal, como delineadora de indivíduos e grupos. Não é apenas a pergunta “quem sou eu?” que os jovens procuram responder enquanto experimentam expressões de identidade, mas também “para onde vou?”. A identidade individual e coletiva de alguma forma interfere na invenção de caminhos e direções de vida, a partir do presente, nos limites dados pela estrutura social.

Partimos da idéia de que todos os jovens possuem projetos, uma orientação, fruto de escolhas racionais, conscientes, ancoradas em avaliações e definições de realidade. Os projetos podem ser individuais e/ou coletivos; podem ser mais amplos ou restritos, com elaborações a curto ou médio prazo, dependendo do campo de possibilidades. Quer dizer, dependem do contexto sócio- econômico- cultural concreto no qual cada jovem se encontra inserido, e que circunscreve suas possibilidades de experiências. O projeto possui uma dinâmica própria, transformando-se na medida do amadurecimento dos próprios jovens e/ou mudanças no campo de possibilidades.

Um projeto se realiza na junção de duas variáveis. De um lado, quanto mais o jovem se conhece, experimenta as suas potencialidades individuais, descobre o seu gosto, aquilo que sente prazer em fazer maior a sua capacidade de elaborar o seu projeto. Por outro lado, quanto mais ele conhece a realidade onde ele se insere, as possibilidades abertas pelo sistema na área onde queira atuar, maior as suas chances de implementar de fato o seu projeto. As duas variáveis demandam espaços e tempos de experimentação de si mesmo e uma ação educativa que o possa orientar. Assim como a identidade, a elaboração de um projeto de vida também é fruto de um processo de aprendizagem. Cabe nos perguntar: em que medida nossas ações educativas estão contribuindo para que os jovens possam se conhecer melhor, conhecer os limites e as possibilidades do seu meio social e assim melhor se capacitarem para elaborar os seus projetos?

Na sociedade atual tanto a construção da identidade quanto a elaboração de projetos é um desafio para cada um de nós, mas de forma mais candente ainda para os jovens. Vamos comentar alguns deles.

Um primeiro aspecto a ressaltar é que os jovens são aqueles que mais sentem os efeitos da ampliação do acesso ás informações, do crescimento dos estímulos e oportunidades para a ação individual, tanto reais quanto simbólicas. De um lado porque são mais receptivos à dimensão simbólica e porque são os destinatários de todo um fluxo de mensagens da industria cultural que nutre e amplia este imaginário. Assim experimentam uma ampliação dos campos cognitivo e emocional: tudo se pode conhecer, tudo se pode provar. Experimentam a reversibilidade de escolhas e decisões: tudo é passível de mudança e vivenciam a ampliação das experiências simbólicas: tudo pode ser imaginado.

Mas este processo se dá num contexto de ampliação das incertezas, diante do qual a sociedade não dá referências para o jovem construir sua própria identidade. Está cada vez mais diluída as fronteiras etárias e o jovem não conta com sinais externos que lhe indiquem as possíveis mudanças. Assim é cada vez mais difícil para ele construir sua identidade porque tem de tomar a si mesmo como medida frente às mudanças obrigatórias. Ou seja, ele se depara com o problema do limite.

Os jovens não contam mais com os rituais, como os ritos de passagem por exemplo, e cada vez menos está presente a autoridade paterna, a lei. São estes momentos que possibilitavam tirar o jovem do sonho infantil da onipotência e os confrontava de alguma forma com a poderosa experiência da dor e do sofrimento, inclusive com a possibilidade da morte. Ou seja, é a experiência do limite que amadurece. A falta de limite, a ilusão de que tudo é possível está presente no consumismo desenfreado, nas ações de violência ou no consumo de drogas: Este é um modo de perpetuar a necessidade onipotente de bem estar, eliminando a carga de ter de enfrentar a si mesmo como limite.

Diante deste desafio, a escola bem como os diversos espaços educativos tem um papel fundamental. Não podemos esquecer que estes espaços possibilitam, entre outras coisas, a convivência com a diversidade, onde os jovens tem a possibilidade de descobrirem-se diferentes dos outros, e principalmente aprender a conviver respeitando estas diferenças. É na relação com o outro que aprendemos a reconhecer as nossas próprias limitações, que não nos bastamos a nós mesmos e de que a diferença nos enriquece. Cabe ao mundo adulto criar espaços e situações através dos quais os jovens possam se defrontar com seus próprios limites.

Somado a isso, não podemos esquecer de uma outra tarefa fundamental dos espaços educativos para jovens que é a aprendizagem da escolha. Como vimos, no contexto atual cada um é chamado a escolher, a decidir continuamente, fazendo desta ação uma condição para a sobrevivência social. E a escolha também é objeto de aprendizagem: aprendemos a escolher assim como aprendemos a assumir a responsabilidade pelas nossas escolhas. Um e outro se aprendem fazendo, errando, refletindo sobre os erros. Não podemos esquecer que a escolha e a responsabilidade por ela bem como o reconhecimento dos limites são condições para a formação de sujeitos autônomos. Cabe perguntar: onde nossos jovens estão exercitando, aprendendo a escolher? Em que medida nossas ações educativas vêm privilegiando a formação de jovens autônomos?

Finalmente, queremos ressaltar um outro desafio que está posto para os jovens, principalmente para os jovens pobres. As demandas de construção de identidades autônomas bem como a ampliação de possibilidades leva a um efeito perverso que pode ser caracterizada como uma nova desigualdade social. Além dos jovens pobres se verem privados da materialidade do trabalho, do acesso às condições materiais de vivenciarem a sua condição juvenil, defrontam também com a desigualdade no acesso aos recursos para sua aut-realização. Surge assim uma nova desigualdade que assume a forma de privação cultural, de acesso a experiências que lhes possibilitem auto-conhecer-se e descobrir seus próprios potenciais. Retoma-se aqui a importância das políticas públicas para garantir a todos os jovens as possibilidades de vivenciarem a juventude como uma fase de direitos, onde possam construir identidades positivas e projetos que afirmem sua dignidade.

AS NOVAS POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO JUVENIL

Uma dimensão inovadora constatada em várias pesquisas sobre a juventude contemporânea é o alargamento dos interesses e práticas coletivas juvenis, com ênfase na importância da esfera cultural que cria formas próprias de sociabilidade, de práticas coletivas e de interesses comuns, principalmente em torno dos diferentes estilos musicais.

O mundo da cultura aparece como um espaço privilegiado de práticas, representações, símbolos e rituais no qual os jovens buscam demarcar uma identidade juvenil. Longe dos olhares dos pais, professores ou patrões, assumem um papel de protagonistas, atuando de alguma forma sobre o seu meio, construindo um determinado olhar sobre si mesmos e sobre o mundo que os cerca. Nesse contexto, a música é a atividade que mais os envolve e os mobiliza. Muitos deles deixam de ser simples fruidores e passam também a ser produtores, formando grupos musicais das mais diversas tendências, compondo, apresentando-se em festas e eventos, criando novas formas de utilizar os recursos culturais da sociedade atual além da lógica estreita do mercado.

Se na década de 60 falar em juventude era referir-se aos jovens estudantes de classe média e ao movimento estudantil, a partir dos anos 90 implica incorporar os jovens das camadas populares e a diversidade dos estilos e expressões culturais existentes, protagonizada pelos punks, darks, roqueiros, clubers, rappers, funkeiros etc. Mas também pelo grafite, pelo break, pela dança afro ou mesmo pelos inúmeros grupos de teatro espalhados nos bairros e nas escolas. Muitos desses grupos culturais apresentam propostas de intervenção social, como os rappers, desenvolvendo ações comunitárias em seus bairros de origem.

A centralidade da dimensão da cultura na vida dos jovens, aliada ao lazer, é confirmada na pesquisa nacional “Juventude, cultura e cidadania” realizada pela Fundação Perseu Abramo em 1999. Nas respostas sobre o que fazem do tempo livre, os jovens ressaltam a predominância de atividades de diversão, de passeio, de fruição de bens da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa, em contraste com baixos graus de fruição de formas de cultura erudita ou não industrializada (como museus, teatro, exposições, espetáculos de dança etc). É importante notar o expressivo contingente de jovens que conhecem e acompanham as atividades de outros jovens e/ou se auto-organizam em grupos ligados a atividades culturais e de lazer. Afirmam conhecer algum “grupo cultural jovem no seu bairro ou comunidade” 56% dos jovens entrevistados, sobretudo grupos de música (33%), mas também de dança (15%), patins ou skate (13%), de teatro (12%), de ciclistas (11%), pichadores (11%), grafiteiros (9%) e de rádios comunitárias (5%), entre outros menos freqüentes. São membros de algum grupo dessa natureza 11% dos jovens, e não são membros, mas participam de suas atividades (como espectadores ou acompanhantes) outros 6%. Esse quadro indica que as dimensões do consumo e da produção culturais têm se apresentado como espaço de criação de sentidos existenciais da juventude, proporcionando também a formação de novas identidades coletivas.

Mas não significa dizer que a juventude não apresente outras formas de interesse e práticas coletivas. Nas duas últimas décadas, os jovens tomaram as ruas em vários momentos, tomando parte ativa em decisões nacionais como a campanha pelas Diretas Já e o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. Além dessas mobilizações, em vários momentos grupos juvenis, mais ou menos numerosos, vieram a público pelos mais diferentes motivos, desde a demanda por passes livres de ônibus até questões mais gerais como o repúdio do acordo com a Associação do Livre Comércio (ALCA). Grande parte dessas mobilizações ocorreu com significativa independência das organizações juvenis tradicionais e sempre tiveram um caráter descontínuo, onde os momentos de visibilidade foram sucedidos por momentos de latência, não sendo vistas como expressões válidas de ações políticas.

Outras modalidades de ações coletivas surgem como as associações em torno de atividades voluntárias, comunitárias ou de solidariedade. As formas de mobilização e organização são as mais diversas, acontecendo desde campanhas pontuais como aquelas que recolhem alimentos contra a fome ou mobilizações em torno da qualidade de vida e do meio ambiente até mesmo o surgimento de organizações não governamentais (ONGs) criadas e geridas por jovens, com ações mais contínuas em diferentes direções. Chama a atenção o caráter local dessas ações, articulando-se a partir dos espaços de moradia e de questões relacionadas com a urbanidade, elevando a cidade como espaço e tema preferencial da participação juvenil.

Nestas ações é possível perceber uma motivação de parcelas da juventude pelo agir, indo além da mera denuncia ou crítica, apontando um caminho em direção ao Outro, acompanhada pela idéia de responsabilidade e solidariedade. Nestas ações voluntárias, mesmo que ocorrendo de forma fragmentada e instável, parece haver uma antecipação da utopia, anunciando hoje, de forma profética, uma outra possibilidade da vida em conjunto. Inverte assim a lógica dominante instrumental, recusando a racionalidade do cálculo, da eficiência da técnica, da relação rígida entre meios e fins que se opõe à gratuidade do Dom.

Os grupos musicais e seus múltiplos significados.

As pesquisas têm apontado que os grupos musicais, principalmente os constituídos por jovens pobres, articulados em torno dos mais diversos estilos, são exemplos significativos das novas formas de agregação juvenil.

Tomando como exemplos os estudos realizados em torno desses grupos musicais, com ênfase nos estilos rap e funk, podemos constatar uma multiplicidade de significados que estes passam a desempenhar junto aos jovens pobres. Um primeiro aspecto diz respeito ao exercício da criatividade. Os estilos musicais tendem a possibilitar que os jovens se introduzam na cena pública para além da figura do espectador passivo, colocando-se como criadores ativos, contra todos os limites de um contexto social que lhes nega a condição de criadores. Dessa forma, as experiências nos grupos musicais assumem um valor em si, como exercício das potencialidades humanas. As músicas que criam, os shows que fazem, os eventos culturais dos quais participam aparecem como forma de afirmação pessoal, além do reconhecimento no meio em que vivem, contribuindo para o reforço da auto-estima. Ao mesmo tempo, por meio da produção cultural que realizam, principalmente o rap e seu caráter de denúncia, coloca em pauta no cenário social o lugar do pobre.

O outro aspecto diz respeito à dimensão da escolha. Os estilos musicais se colocam como um dos poucos espaços onde os jovens podem exercer o direito a escolhas, elaborando modos de vida distintos e ampliando o leque das experiências vividas. Como vimos anteriormente, essa dimensão se torna mais importante quando levamos em conta que é o exercício da escolha, junto com a responsabilidade das decisões tomadas, uma das condições para a construção da autonomia.

Outra dimensão presente nesses espaços e tempos de sociabilidade é a alternativa que os estilos musicais proporcionam de vivência da condição juvenil. Para a maioria desses jovens, os estilos funcionam como um rito de passagem para a juventude, fornecendo elementos simbólicos, expressos na roupa, no visual ou na dança, para a elaboração de uma identidade juvenil. Esses estilos musicais são referências para a escolha dos amigos, bem como para as formas de ocupação do tempo livre, em duas dimensões constitutivas da condição juvenil: o grupo de pares e o tempo de lazer. A convivência continuada em grupos, ou mesmo em dupla, possibilita a criação de relações de confiança, a aprendizagem de relações coletivas, servindo também de espelho para a construção de identidades individuais. Assim, os grupos de estilos também são grupos de atitudes compartilhadas

Os jovens enfatizam que a adesão aos estilos gera uma ampliação dos circuitos e redes de trocas, evidenciando que os estilos musicais, bem como os grupos de produção cultural se constituam como produtores de sociabilidades. A dinâmica das relações existentes, o exercício da razão comunicativa, a existência da confiança, a gratuidade das relações, sem outro sentido que não a própria relação, são aspectos que apontam para a centralidade da sociabilidade no processo de construção social desses jovens. Nesse sentido, os estilos podem ser vistos como respostas possíveis à despersonalização e à fragmentação do sistema social, possibilitando relações solidárias e a riqueza da descoberta e do encontro com os outros.

A observação dessa realidade permite compreender que, de forma geral, os grupos de produção cultural, mesmo com abrangências diferenciadas, podem significar uma referência na elaboração e vivência da condição juvenil, contribuindo de alguma forma para dar um sentido à vida de cada um, num contexto onde se vêem relegados a uma vida sem sentido. Ao mesmo tempo, pode possibilitar a muitos jovens uma ampliação significativa do campo de possibilidades, abrindo espaços para sonharem com outras alternativas de vida que não aquelas restritas oferecidas pela sociedade. Querem ser reconhecidos, querem uma visibilidade, querem ser alguém num contexto que os torna invisíveis, ninguém na multidão. Querem ter um lugar na cidade, usufruí-la, e transformar o espaço urbano em valor de uso. Enfim, eles querem ser jovens e cidadãos, com direito a viver plenamente a sua juventude. Este parece ser um aspecto central: pelos grupos de produção cultural, os jovens estão reivindicando o direito à cidade e à juventude.

Por outro lado, não podemos esquecer que a produção cultural desses grupos, em sua maioria, se mostra frágil e marcada pela precariedade e pelo amadorismo. É interessante perceber que, se o mundo da cultura se mostra um espaço mais democrático para esses jovens construírem um estilo próprio, o mesmo não acontece quando eles passam a pretender disputar um nicho próprio e sobreviver das atividades culturais. As barreiras são muitas, entre elas o acesso restrito aos bens materiais e simbólicos e a falta de espaços que possibilite um conhecimento mais amplo e profissionalizado do funcionamento do mercado cultural. As escolas públicas pouco ou nada investem na formação cultural, e quase não existem nas cidades instituições públicas na área cultural que possibilitem o acesso aos conhecimentos específicos da área. Ao mesmo tempo os jovens pobres se vêem obrigados a se dividirem entre o tempo do trabalho e o tempo das atividades culturais, dificultando o investimento no próprio aprimoramento cultural. Vivenciam um dilema: estão motivados com a produção cultural, sonham em poder dedicar-se integralmente a tais atividades, mas no cotidiano precisam investir boa parte do seu tempo em empregos ou bicos que garantam a sua sobrevivência, e mesmo assim quando os têm. Esses jovens conseguem manter uma cena cultural viva e de alguma forma atuante, o fazem da forma que podem, de acordo com os recursos materiais e simbólicos a que têm acesso.

Dessa forma, os grupos musicais e seus múltiplos significados apresentam-se como espaços e possibilidades de participação juvenil. Mas não só. A juventude também se encontra e reencontra no espaço das artes plásticas e artes cênicas, nos movimentos culturais, no esporte e atividades de lazer. São dimensões da cultura que possibilitam a troca, o diálogo, a convivência coletiva e a elaboração de projetos e que precisam ser estimuladas pela escola e contempladas nas políticas públicas para a juventude.

Vários projetos sociais voltados para a juventude têm explorado a potencialidade juvenil por meio dessas dimensões culturais, constituindo-se em espaços socializadores e formativos para os jovens. São nesses espaços que os jovens se dão a conhecer e conhecem uns aos outros, tomam consciência dos dilemas da sua condição juvenil e podem explorar suas potencialidades. Implementar práticas e políticas para a juventude que valorize e estimule as múltiplas dimensões culturais e artísticas, estimulando-as e dando-lhes condições materiais e financeiras de se expandirem é uma tarefa dos educadores e do poder público.

Concluindo…

A construção de uma sociedade democrática não pode desconsiderar os desafios e dilemas vividos pelos diferentes sujeitos sociais nos seus ciclos da vida. Esse desafio está colocado para os jovens e para o mundo adulto. Estamos desafiados a incrementarmos ainda mais as políticas sociais de caráter universal e de construirmos políticas específicas voltados para segmentos juvenis, grupos étnico/raciais e setores marginalizados na sociedade.

Os indicadores sociais e os dados estatísticos apontados nesse texto revelam não só uma imensa diversidade presente na condição juvenil como, também, o processo de desigualdade que incide sobre os jovens de acordo com de sua origem social, gênero, raça/etnia.

Se reconhecemos que as sociedades também se constroem na diversidade, não podemos esquecer essa importante dimensão do humano nos momentos de implementação de políticas públicas. Um dos desafios colocados pela juventude para os/as educadores/as e formuladores de políticas é: como construir políticas e práticas que visem a igualdade social e ao mesmo tempo contemplem a diversidade do mundo juvenil?

Se compreendemos que vivemos em meio a diferente formas de ser jovem e temos diante de nós juventudes, no plural, não podemos pensar que somente a implementação de uma política social de caráter universal, voltada para a juventude, contemplará por si só as especificidades desses sujeitos. Por isso, fazem-se necessários a elaboração de diagnósticos mais precisos, o conhecimento das diversas condições juvenis, a socialização das práticas positivas existentes e o desenvolvimento de uma maior responsabilidade e sensibilidade para com esses sujeitos sociais nos seus processos de formação humana.

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Fonte: www.fae.ufmg.br

Dia da Juventude no Brasil

22 de Setembro

POR UMA HISTÓRIA DA JUVENTUDE BRASILEIRA

No poema “Metamorfoses” o poeta romano Ovídio compara as fases da vida humana com as estações do ano. Para ele, a infância é semelhante à primavera, nessa fase “tudo floresce, o fértil campo resplandece com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas”; a juventude é o verão, “quadra mais forte e vigorosa que é a robusta mocidade, fecunda e ardente”. O outono que é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho”, passado o outono, vem enfim o inverno que é o “velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos.”

“O verão escolhido por Ovídio para simbolizar a juventude representa bem essa fase da vida humana que é realmente “fecunda e ardente”. O verão é a estação das tempestades, das altas temperaturas, ora é o Sol, ora é a chuva. Na juventude também é assim, acontece tempestade de emoções, as paixões são mais ardentes e os sentimentos sofrem constantes oscilações. “São momentos de crise, individual e coletiva, mas também de compromisso entusiástico e sem reservas: e, no fundo, não vamos encontrar os jovens na linha de frente das revoltas e das revoluções”?” (LEVI & SCHMITT, 1996;12)

Ao discutir sobre a tematização social da juventude no Brasil, a socióloga Helena W. Abramo (1997; 25) destaca o crescimento de estudos desenvolvidos sobre o tema nas universidades e a atenção conferida aos jovens nos últimos anos por parte dos meios de comunicação de massa, das instituições governamentais e não governamentais. No entanto, a maioria desses estudos tem sido desenvolvidos nos campos da Sociologia, Psicologia, Pedagogia e Antropologia. A História pouco tem trabalhado o tema.

A Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH) lançou em 1995 um catálogo (CAPELATO: 1995) em três volumes, contendo a produção histórica do Brasil relativa às dissertações de mestrado e doutorado defendidas entre 1985 e 1994 junto aos 191 Programas de Pós-Graduação em História. Nele, encontramos apenas dois trabalhos sobre a juventude.

Em “História dos Jovens: da antiguidade à era moderna” e “História dos Jovens: a época contemporânea”, ambos publicados em 1996, os autores Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt reúnem pela primeira vez uma coletânea de ensaios que versam sobre a juventude do ponto de vista histórico. A história da juventude para os autores “se configura como um terreno privilegiado de experimentação historiográfica” (1996, p. 10).

Por tratar-se de um objeto relativamente novo para os historiadores, algumas considerações tecidas pelos autores são de fundamental importância para aqueles que desejam pisar nesse “terreno” e se aventurar nessa “experimentação historiográfica”. Os historiadores não devem perder de vista que a juventude é uma construção social e cultural, “em nenhum lugar, em nenhum momento da história, a juventude poderia ser definida segundo critérios exclusivamente biológicos ou jurídicos. Sempre e em todos os lugares, ela é investida também de outros valores” (LEVI & SCMITT, 1996:14). É importante ainda destacar outros aspectos, como a questão da transitoriedade, não se é jovem, se está jovem, “pertencer à determinada faixa etária — e à juventude de modo particular — representa para cada indivíduo uma condição provisória. Mais apropriadamente, os indivíduos não pertencem a grupos etários, eles os atravessam” (op cit; 08-09). A desigualdade entre as classes sociais e a diferença entre os sexos também não devem ser esquecidas.

A biologia divide a juventude em duas fases: a pré-adolescência (de 10 a 14anos) e a adolescência (de 15 a 19 anos). Para a Sociologia, a juventude começa aos 15 e termina aos 24 anos. Estas ciências têm já definido o limite certo do período em que começa e termina a juventude, o que não ocorre na História. O historiador precisa definir o que é ser jovem, conforme o período e a sociedade estudados. Tempo, espaço e cultura são essenciais para a compreensão do sentido de Juventude em história, pois “essa época da vida, não pode ser delimitada com clareza por quantificações demográficas nem por definições de tipo jurídico, e é por isso que nos parece substancialmente inútil tentar identificar e estabelecer como fizeram outros, limites muito nítidos” (op cit. 08-09).

Para estudar os novos objetos da história, faz-se necessário repensar os conceitos, as categorias, as fontes e os métodos de investigação, até então, utilizados. Assim, o cinema, a música, a propaganda, a pintura, a charge, a foto, o panfleto, a poesia, o teatro, constituem fontes valiosas. Cabe ao historiador valer-se de toda a sua criatividade, utilizando essas fontes.

Metamorfose. Eis a palavra chave quando se trata de historiografia do século XX. As mudanças ocorridas na escrita da história nas ultimas décadas, sobretudo a partir dos anos 1970 e 1980, período em que culminou com uma explosão dos métodos, dos campos, dos canteiros e dos objetos da história, produzindo assim, uma verdadeira revolução no modo de fazer e de pensar a história. A reação contra o paradigma tradicional internacionalizou-se permitindo o desenvolvimento de estudos sobre temáticas e grupos sociais até então excluídos, como os prisioneiros, os imigrantes, os soldados, os homossexuais, as mulheres, as crianças, os escravos e também os jovens. Enfim, abriu-se um leque de possibilidades. O homem comum ganhou um papel que de fato e de direito sempre foi seu: protagonista da história.

Em 1974, Jacques Le Goff e Pierre Nora organizam na França uma série de livros com três volumes2 para discutir os novos caminhos da história. No primeiro volume é colocada a questão dos “novos problemas” da história; no segundo discute-se as novas abordagens; e no terceiro abordam os “novos objetos da história”, os jovens, juntamente com o clima, o inconsciente, o mito, as mentalidades, a língua, o livro, o corpo, a cozinha, a opinião pública, o filme e a festa, que aparecem como um desses novos objetos de investigação histórica.

De modo geral, os estudos sobre a juventude no Brasil privilegiam as manifestações juvenis partindo da década de 1950 em diante. Em cada uma delas, a juventude aparece caracterizada de uma forma. Por exemplo, na década de 1950 — chamada de “anos dourados” — a juventude ficou conhecida como “rebeldes sem causa” ou “juventude transviada”; na década de 1960 — “os anos rebeldes” — é tida como revolucionária; na década de 1990, fala-se de uma “geração shopping center”.

A partir da década de 1950, vive-se um momento de expressiva ascensão jovem que tem início nos Estados Unidos, principalmente, entre as classes média e alta. “A cultura juvenil tornou-se dominante nas economias de mercado desenvolvidas,” (HOBSBAWM, 1995, p. 320). É tecida uma identidade própria em torno dessa fase da vida humana, jamais vista na história. Começava a constituir-se uma consciência etária que acentuaria a oposição entre os grupos jovens e os não jovens. Um jovem nascido em Salvador em 1944, chamado Raul Santos Seixas, sócio do fã-clube “Elvis Rock Club” aos 16 anos, define bem essa construção de identidade jovem: “antes a garotada não era garotada, seguia o padrão do adulto, aquela imitação do homenzinho, sem identidade”. Naquela época, diz Raul: “Eu senti que ia ser uma revolução incrível. Na época eu pensava que os jovens iam conquistar o mundo”(CARRANO, 2001, p. 33).

Há épocas na história em que as mudanças parecem ocorrer com maior velocidade. A segunda metade do século XX foi uma dessas épocas. Ao analisar o século XX, Hobsbawm (1995; 24) destaca que uma das maiores transformações; em certos aspectos a mais perturbadora – fora a “desintegração de velhos padrões de relacionamento social humano, e, com ela, aliás a quebra dos elos entre as gerações, quer dizer, entre passado e presente”. Essa quebra de elos entre as gerações é sentida por Euli Tortorelli, nascida em 1941 e que vivenciou essas transformações “(…) da geração da minha vó para minha mãe quase não houve mudanças… um período que foi muito devagar, transformação quase não houve. Agora da minha geração, já pros meus filhos, foi um salto muito alto (…)”3.

É preciso que haja estudos consistentes que procurem ver a juventude brasileira além desses rótulos, uma vez que estes tendem a encobrir muitos outros aspectos. Hegel diz que “se você chama de criminoso alguém que cometeu um crime, você ignora todos aspectos de sua personalidade ou de sua vida que não são criminosos.” (apud CARRANO, 2000; 17). Essa proposição que se aplica em relação aos indivíduos também serve de lição para a história. Quando chamamos a juventude dos anos 1990 de “geração shopping center” ignoramos as suas várias outras facetas.

Os caminhos do fazer historiográfico são múltiplos. O cenário é de otimismo, os debates são fecundos e necessários. É preciso que não se tenha medo de ousar, criar, inovar e experimentar.

Notas

1. Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Goiás (UFGO), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNINOS/RS), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Campinas (UNICAMP), Universidade Estadual Paulista (UNESP/FRANCA), Universidade Estadual Paulista (UNESP/ASSIS), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade de São Paulo (USP).

2. LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre. História: novos problemas. 4a ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

3. Entrevista de Euli Fernandes Tortorelli, em 25/02/2002.

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Fonte: www.proec.ufg.br

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