Dia do Músico

22 de Novembro

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Hoje é dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos, por isso hoje também é comemorado o dia do músico.

O músico pode ser arranjador, intérprete, regente e compositor.

Há quem diga que os músicos devem ter talento nato para isso, mas existem cursos superiores na área e pessoas que estudam música a vida toda.

O músico pode trabalhar com música popular ou erudita, em atividades culturais e recreativas, em pesquisa e desenvolvimento, na edição, impressão e reprodução de gravações.

A grande maioria dos profissionais trabalha por contra própria, mas existem os que trabalham no ensino e os que são vinculados a corpos musicais estaduais ou municipais.

Dia do Músico
Dia do Músico – Que o rítmo da sua vida continue sempre no melhor compasso

A santa dos músicos

Santa Cecília viveu em Roma, no século III, e participava diariamente da missa celebrada pelo papa Urbano, nas catacumbas da via Ápia.

Ela decidiu viver casta, mas seu pai obrigou-a a casar com Valeriano. Ela contou ao seu marido sua condição de virgem consagrada a Deus e conseguiu convence-lo. Segundo a tradição, Cecília teria cantado para ele a beleza da castidade e ele acabou decidindo respeitar o voto da esposa. Além disso, Valeriano converteu-se ao catolicismo.

Mito grego

Na época dos gregos, dizia-se que depois da morte dos Titãs, filhos de Urano, os deuses do Olimpo pediram que Zeus criasse divindades capazes de cantar as vitórias dos deuses do Olimpo. Então, Zeus se deitou com Mnemosina, a deusa da memória, durante nove noites consecutivas.

Nasceram dessas noites as nove Musas. Dessas nove, a musa da música era Euterpe, que fazia parte do cortejo de Apolo, deus da Música.

Fonte: UFGNet

Dia do Músico

22 de Novembro

CONTRIBUIÇÕES DA ERGONOMIA À SAÚDE DO MÚSICO

CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIMENSÃO FÍSICA DO FAZER MUSICAL

1. Ergonomia para músicos: uma interface pró-saúde

Diversos autores têm abordado o processo saúde-adoecimento em músicos, havendo especial ênfase sobre as exigências da performance e as muitas horas de preparo para a formação do performer (Paull e Harrison, 1997). A realidade brasileira acompanha esta tendência, já detectada em outros paises (Moura, Fontes e Fukujima, 1998; Andrade e Fonseca, 2000).

Vista como um continuum em que as habilidades necessitam ser mantidas e as competências buriladas para objetivar um alto grau de expertise, a atividade do músico é abordada em partes para um melhor entendimento. Apoiando-se em conhecimentos de áreas que se complementam, tem-se uma visão da sistemática de estudo, do processo ensino-aprendizagem, das solicitações motoras, dos aportes biomecânico e nutricional, das possíveis inadequações antropométricas presentes na interface instrumental utilizada (Cintra, Vieira e Ray, 2004; Greco e Ray, 2004). Por outro lado, procuram-se alternativas psicoterápicas ou medicamentosas para minimizar questões psicológicas, como o medo de palco, o abuso de drogas, o estresse advindo das pressões temporais e de parâmetros perfeccionistas, tópicos estes que dizem respeito à saúde mental do perfomer musical (Sternbach, 1996).

A realização do II Congresso Internacional de Medicina para Músicos (Espanha, setembro de 2005) principia com a afirmação de que os músicos constituem um dos principais grupos de risco de adoecimento ocupacional. Assinala a falta de conscientização da classe neste tocante e a pouca procura por informação para preservar e gerenciar as condições necessárias ao exercício profissional. Embora tenham ocorrido sensíveis avanços em pesquisa médica e em novos tratamentos, o setor preventivo caminha de forma bem mais lenta. A maior abertura dos músicos para este tópico tem se dado somente após a ocorrência de sintomas que prejudicam a atividade, como a dor recorrente e limitante (Norris, 1997).

A ênfase nos aspectos físicos desta problemática é freqüente, mas estudos mais pontuais da atividade do performer musical evidenciam duas outras dimensões que se articulam, a cognitiva e a afetiva ou psíquica, e que mediam o processo saúde-adoecimento (Costa e Abrahão, 2002). As características da tarefa a ser desempenhada, expressas no real fazer do músico profissional ou em formação precisam, portanto, ser conhecidas para ampliar o entendimento dos fatores de risco presentes e a possibilidade de atuações preventivas, sendo a educação um fator de proteção relevante.

Neste particular, o período de formação apresenta dois desafios intrínsecos: a orientação específica relacionada à prática instrumental, a ser oportunizada aos alunos de música, e a capacitação dos docentes para este fim, possibilitando o exercício de papéis ativos em prol da saúde ocupacional. Neste contexto, considerações sobre aspectos interdisciplinares tornam-se fundamentais, visto que novas abordagens sobre o fazer musical podem fornecer subsídios para uma integração entre prática instrumental e qualidade de vida no exercício da profissão. A promoção da saúde do músico desponta como um somatório de esforços que passam tanto pela área médica quanto pela educacional, de forma contextualizada.

A Ergonomia, ciência que estuda a relação homem-trabalho considerando o bem-estar, a segurança e a eficácia de quem trabalha, coloca à disposição do músico tanto a bagagem dos “Human Factors”, por meio de estudos realizados em laboratório, centrados na adaptação dos equipamentos ao homem e da melhoria das condições de trabalho, quanto a perspectiva da Ergonomia da Atividade, a qual pressupõe a análise das características e contradições presentes na situação de trabalho, complexa e variável por essência (Ferreira e Mendes, 2003). Ao investigar o contexto de produção e bens de serviços na área musical, a Ergonomia da Atividade também sinaliza estratégias e mediações decorrentes da interação entre o músico e sua tarefa, expressas no Custo Humano no Trabalho (CHT), englobando as dimensões física, cognitiva e afetiva, presentes na atividade humana.

Dentre as diferentes iniciativas tomadas por algumas instituições no sentido de fornecer bases preventivas que contemplem fatores de proteção no desenvolvimento da carreira e promovam a saúde dos músicos, a Ergonomia Aplicada às Práticas Musicais evidencia resultados de pesquisas que consideram fortemente o músico em ação, suas características e seus limites, suas representações sobre seu trabalho e o seu contexto, trazendo como diferencial a articulação das dimensões do trabalho para uma melhor compreensão dos riscos ocupacionais e recomendações para minimizá-los.

Desfaz-se, desta forma, um equívoco presente no senso comum, o de que ergonomia trata exclusivamente de projeto de mobiliário e da avaliação do posto de trabalho. Seguramente, a boa configuração destes elementos é essencial para evitar sobrecargas posturais e fadiga, em qualquer situação de trabalho. Dada a natureza da tarefa do músico, as condições ambientais existentes, tais como iluminação, ventilação, temperatura e ruído, também podem favorecer ou dificultar o desempenho dos músicos, levando-os a intensificar demandas cognitivas (em especial em processos envolvendo qualidade de percepção e atenção), e ocasionar maiores desgastes músculoesqueléticos. Soma-se a este item a regulação constante da variabilidade presente na situação de trabalho, o que pode se justapor a padrões físicos que resultem em tensão excessiva na execução do instrumento ou mesmo na ocorrência de dor (Costa, 2003).

Já a organização do trabalho exerce a função de mediadora entre o músico e o risco de adoecimento à medida em que determina diretrizes acerca das divisões do trabalho, das atribuições de responsabilidade e das possibilidades de negociação. Tais diretrizes trazem à tona questões como as relações de poder, de competição, de reconhecimento entre pares, de controle e de pressões sofridas, impactando também sobre o psiquismo do trabalhador (Dejours, Abdoucheli e Jayet, 1994).

Feitas estas considerações, serão abordadas neste texto algumas aplicações dos conhecimentos ergonômicos à atividade do músicoinstrumentista de orquestra e/ou banda sinfônica, relacionadas mais diretamente à dimensão física de seu trabalho.

2. O espaço e o posto de trabalho: implicações na atividade do músico instrumentista

O espaço de trabalho, uma ideação que inclui tanto o espaço construído quanto os movimentos requeridos para a consecução de uma tarefa, pode envolver distintos postos de trabalho, unidades menores compostas pelos equipamentos e pelo mobiliário necessários à atividade, envolvendo o sujeito e adaptando-se a suas necessidades e características (Iida, 2000).

O correto dimensionamento e o arranjo apropriado do posto de trabalho favorecem a otimização da atividade e uma maior eficiência no fazer musical. Para sua estruturação devem ser considerados tanto os movimentos quanto as posturas assumidas na atividade, os esforços despendidos e as exigências perceptivas, notadamente as aurais e visuais, sendo fundamentais as contribuições da antropometria e da biomecânica ocupacional.

Considere-se que o posto de trabalho do músico compõe-se geralmente de cadeira ou banco, de estante para partituras e de suporte para o instrumento, situados em um espaço de trabalho que em geral é uma sala de estudos ou o próprio palco. A ausência de regulagens nestes itens básicos contribui significativamente para que o posto de trabalho do instrumentista não seja equipado de forma adequada, acarretando esforços extras para manutenção de postura por estes músicos, e gerando desgastes físicos que podem dificultar a atividade em si.

Crianças que iniciam os estudos musicais estão tão sujeitas à inadequações de mobiliário quanto adultos que não apresentem o padrão antropométrico mediano.

Um estudo sobre o mobiliário escolar, realizado em escolas públicas com alunos brasileiros de 7 a 18 anos, evidenciou o desconforto ocasionado pela desconsideração das diferenças etárias e antropométricas. Observou-se que o mesmo conjunto de carteira e mesa é utilizado por alunos do ensino fundamental e médio, quando uma aproximação da realidade requer sete tamanhos diferenciados para melhor acomodar a população (Reis et al., 2002).

Os alunos com medidas extremas, à semelhança do que ocorre em outras situações laborais, costumam ser os mais penalizados neste tocante. Basta lembrar do jovem aluno que principia seus estudos de piano e cujas pernas não alcançam o chão, ou do adolescente que sobrepõe duas cadeiras para poder tocar violoncelo com os pés devidamente apoiados no solo. São situações que provocam desconforto, elevação excessiva dos ombros, dificultam o retorno venoso e acarretam desequilíbrios posturais.

Em se tratando de som, matéria básica da música, a adequação da dimensão física e o tratamento acústico dos espaços de estudo e de performance estão diretamente relacionados ao conforto dos sujeitos e à sua saúde. A preparação destes espaços pode influir diretamente em casos de perda auditiva (o caso de instrumentistas expostos a volumes sonoros excessivos no seu cotidiano, a exemplo de percussionistas e instrumentistas de metais) ou de desconforto físico (o caso de instrumentos de grande porte que precisam de espaços devidamente planejados, notadamente o piano, a harpa, o contrabaixo e os tímpanos, entre outros), adentrando outro aspecto da saúde ocupacional, o do estresse.

Estudos sobre a posição sentada evidenciam que há um tipo de assento para cada função ou atividade, a depender de suas exigências e das características do sujeito. Notadamente, o mito da postura correta se desfaz na medida em que o ser humano não mantém uma mesma postura por muito tempo dada as necessidades de irrigação sanguínea, de condução de oxigênio e de nutrientes aos músculos. As posturas assumidas resultam, portanto, de uma solução de compromisso entre as exigências da tarefa, o mobiliário disponível e o estado de saúde do sujeito. Desta maneira, um bom posto de trabalho é aquele que permite variações posturais, facilitando a diminuição de contrações musculares contínuas presentes na manutenção de uma mesma postura, o chamado trabalho estático (Grandjean, 1998).

Observe-se que o encosto tem a função de ajudar no relaxamento face à fadiga provocada pela manutenção da posição sentada e às modificações na lordose natural da região lombar. Casos de lombalgia em violoncelistas e pianistas têm sido relatados na literatura associados freqüentemente à manutenção da posição sentada. Para os demais instrumentistas sugere-se a alternância das posturas em pé e sentada, de modo a amenizar as solicitações posturais, além da presença de regulagens no mobiliário. A resistência ao peso do usuário, a estabilidade em relação ao piso, a utilização de ângulos de conforto entre assento e encosto, a adequação do revestimento e do estofamento são quesitos que se associam aos dados antropométricos e posturais quando se pensa em segurança e bem-estar do usuário (Filho, 2003). Quanto mais específico for o projeto, maior a tendência a encarecer o produto. Contudo, este investimento pode ter um significativo retorno em termos de melhoria no posto de trabalho do músico, facilitando seu desempenho.

Uma procura por mobiliário voltado à realidade dos músicos tem-se acentuado nas últimas décadas, com uma sensível ampliação de pesquisas e de mercado.

Projetos direcionados à atividade do músico, que aliem um novo design e funcionalidade, como as “Opus Chairs”, a cadeira Wenger para violoncelo, o banco Stokke para violão, têm se agregado às já conhecidas banquetas para contrabaixo, piano e cadeiras para regentes. Contudo, permanece a tradição da padronização em conjuntos como as grandes orquestras, desconsiderando as diferenças antropométricas, a carência de sistemas de regulagens e as especificidades mais finas da atividade de cada instrumentista (Costa, 2003).

O uso de mobiliário inadequado para estudo em âmbito doméstico também pode acarretar penosidade e ser desastroso à saúde do músico, à semelhança dos home offices ou postos de trabalho informatizados, nos quais a estética prevalece em detrimento das reais necessidades do usuário. Uma orientação apropriada sobre este aspecto pode resultar em um melhor aproveitamento do tempo dedicado atividade, evitando colapsos posturais e tensionamentos desnecessários.

Para obter um correto dimensionamento de um posto de trabalho sentado utilizam-se medidas básicas referenciais para uma primeira aproximação, tomadas com a pessoa em posição sentada, sem movimentar se. A partir do chão e mantendo as articulações do cotovelo e dos joelhos em ângulo de noventa graus, os punhos em posição neutra e a cabeça com o queixo paralelo ao chão, aferem-se a altura lombar, onde deverá ficar o encosto da cadeira, a altura poplítea, para colocação do assento, as alturas da coxa e do cotovelo, entre as quais ficará a superfície de trabalho, a altura dos olhos e o ângulo de visão. A depender da tarefa realizada, os movimentos corporais e demais aspectos funcionais são então considerados de forma integrada, como as zonas de alcance, fundamentais para a otimizar os postos de trabalho, para agilizar a realização da tarefa e favorecer a saúde de quem trabalha.

Tome-se, por exemplo, a atividade dos instrumentistas de palhetas duplas, os quais confeccionam e ajustam suas palhetas com o uso de diferentes ferramentas. A disposição de seus equipamentos, a seqüência de uso e a precisão na sua manipulação implicam o uso de zonas de alcance preferenciais, sendo o alcance timo aquela área em que dois semicírculos horizontais imaginários se interceptam, traçados com giro dos antebraços e tendo os cotovelos por eixo (Iida, 2000).

Paull e Harrison (1997), ao discutirem a manutenção de posturas ao instrumento e sua relação com a posição sentada, afirmam que os joelhos devem permanecer abaixo da altura dos quadris, de modo a favorecer a lordose lombar. Para tanto, o assento precisa ser mais alto na parte posterior, como o existente nas almofadas em formato de cunha. Tal efeito também pode ser obtido por meio da elevação dos pés posteriores de uma cadeira. O formato da parte frontal do assento requer cuidados para evitar quinas acentuadas, que pressionem em demasia a musculatura, sendo que a boa divisão do peso do tronco sobre as tuberosidades isquiáticas é fundamental para facilitar o equilíbrio postural, assim como um bom posicionamento das pernas e propiciar o apoio dos pés do músico no solo.

No caso do uso de estantes, além da regulagem de altura e ângulo de inclinação, outros aspectos a ponderar são as condições de iluminação, as características da parte musical, como cor e tipo de papel, tamanho e espaçamento dos fontes e qualidade de impressão, sabendo que estes elementos podem acentuar a fadiga visual, especialmente em músicos que tenham desenvolvido presbiopia, a chamada vista cansada. O uso de estante em situação de estudo individual apresenta características diversas da situação camerística, na qual a comunicação com os demais músicos se faz necessária, ou da prática em grandes conjuntos, onde é imprescindível perceber o gestual do condutor. O compartilhamento de uma mesma estante por músicos que tenham necessidades visuais muito díspares pode acarretar posturas desfavoráveis e sobrecarga cognitiva, a serem negociadas entre os pares. A disposição do posto e do espaço de trabalho, aliada a condições ambientais favoráveis, propicia uma sensível diminuição na ocorrência de desconforto.

3. Apreciando outras demandas existentes na dimensão física do trabalho do performer musical

Outros componentes influentes na dimensão física do trabalho do músico, além das características da interface instrumental e dos respectivos acessórios para sustentação ou ajuste ao usuário, são o transporte dos instrumentos, o peso e formato de seus estojos, elementos estes que podem ampliar a pressão sobre os discos intervertebrais, contribuindo para a ocorrência de desconforto e alterações posturais. As atividades cotidianas que venham a solicitar a mesma musculatura envolvida nas atividades musicais precisam ser ponderadas, de forma a evitar sobreuso.

Cabe pontuar algumas questões referentes à segurança no trabalho, como a manutenção da distância entre naipes devido ao volume sonoro, a exemplo dos sopros de metal e as madeiras, incluindo medidas como o uso de estrados, a inclusão de telas acústicas protetoras e o uso de protetores auriculares com filtros.

O desconhecimento de possíveis riscos durante o estudo individual pode levar ao trauma auditivo (Chasin, 1996).

Uma preparação física devidamente orientada é uma medida preventiva individual eficaz que precisa ser somada a outras estratégias, como o aquecimento muscular, a execução de pausas regulares durante o estudo e a realização de alongamentos sistemáticos (Costa e Abrahão, 2004). Práticas como o Método Feldenkrais, Técnica de Alexander, trabalhos de consciência corporal direcionados à execução instrumental, cursos de prevenção aos DORT (Distúrbios Ósteomusculares Relacionados ao Trabalho) são complementos que possibilitam ao aspirante a performer desenvolver-se com segurança frente às demandas da formação instrumental, evitando riscos de adoecimento. Um histórico de lesões prévias requer avaliação e acompanhamento por profissionais da área de

saúde, de forma a conjugar conhecimentos e minimizar efeitos danosos que levem à interrupção dos estudos ou da carreira. Tais informações, se discutidas ainda no período de formação dos músicos, podem auxiliar substancialmente a estruturação de modos mais saudáveis de contato com a interface instrumental, conduzindo o futuro profissional a uma melhor administração de suas capacidades frente às exigências de um mercado de trabalho restrito e altamente competitivo.

A Ergonomia pode auxiliar instituições que se engajem nesta iniciativa, oferecendo uma perspectiva mais ampla do fazer musical enquanto trabalho, considerando também as características cognitivas e afetivas peculiares à produção musical, de forma a repensar o Custo Humano no Trabalho. A dimensão física evidenciada na atividade do músico está interligada às demais dimensões, sendo que a implementação de ações preventivas passa, necessariamente, pela existência de margem de manobra para negociações nas situações laborativas, a exemplo da duração da jornada de trabalho em grandes conjuntos como bandas sinfônicas e orquestras, e da prática de revezamento.

Um ensino preventivo que possibilite ao aluno apropriar-se dos conhecimentos obtidos em campos como a ergonomia pode contribuir efetivamente para a manutenção de sua saúde, colaborando sensivelmente para a formação de profissionais mais críticos, incrementando pesquisas na área e promovendo conscientização para ações individuais e coletivas.

Referências Bibliograficas

ANDRADE, Edson Queiroz e FONSECA, João Gabriel Marques. Artistaatleta: reflexões sobre a utilização do corpo na performance dos instrumentos de cordas. Per musi, Belo Horizonte, vol. 2, p. 118-128, 2000.
CHASIN, Marshall. Musicians and the prevention of hearing loss. London: Singular Publishing Ltda, 1996.
CINTRA, Silmara; VIEIRA, Marcus e RAY, Sonia. Relações da performance musical com a biomecânica do movimento humano. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 4., Goiânia. Anais…, Goiânia: UFG, 2004.
COSTA, Cristina Porto. Quando tocar dói: análise ergonômica do trabalho de violistas de orquestra. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB, 2003.
COSTA, Cristina Porto e ABRAHÃO, Júlia Issy. Músico: profissão de risco? In: CONGRESSO LATINO-AMERICANO E CONGRESSO BRASILEIRO DE ERGONOMIA, 7 e 12, Recife. Anais… Recife: ABERGO, 2002.
COSTA, Cristina Porto e ABRAHÃO, Júlia. Issy. Quando o tocar dói: um olhar ergonômico sobre o fazer musical. Per Musi, Belo Horizonte, vol. 10, p. 60-79, 2004.
DEJOURS, Christopher; ABDOUCHELI, Elisabeth; JAYET, Christian. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.
FERREIRA, Mário César e MENDES, Ana Magnólia. Trabalho e Riscos de Adoecimento – o caso dos Auditores-Fiscais da Previdência Social Brasileira. Brasília: Edições LPA e FENAFISP, 2003.
FILHO, João Gomes. Ergonomia do objeto. São Paulo: Escrituras, 2003.
GRANDJEAN, Etienne. Manual de Ergonomia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
GRECO, Lara e RAY, Sonia. A nutrição na preparação do performer musical. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 4, Goiânia. Anais…, Goiânia:UFG, 2004.
IIDA, Itiro. Ergonomia: projeto e produção. 6. ed. São Paulo: Edgar Blücher, 2000.
MOURA, Rita de Cássia dos Reis; FONTES, Sissy Veloso e FUKUJIMA, Márcia Maiumi Doenças ocupacionais em músicos: uma abordagem fisioterapêutica. Neurociência. UNIFESP,1998.
NORRIS, Richard. The musician’s survival manual: a guide to preventing and treating injuries in instrumentalists. 3. ed. St. Louis, MO: MMB Music, 1997.
PAULL, Barbara e HARRISON, Christine. The athletic musician: a guide to playing without pain. Lanham, Maryland: Scarecrow Press, 1997.
REIS, Pedro Ferreira; MORO, Antonio Renato; CRUZ, Roberto Moraes, et al. O uso da média na construção do mobiliário escolar e a ilusão do conforto e saúde. In: CONGRESSO LATINO-AMERICANO E CONGRESSO BRASILEIRO DE ERGONOMIA, 7 e 12, Recife. Anais… Recife: ABERGO, 2002.
STERNBACH, David. Musicians: a neglected working population in crisis. In: SAUTER, Steven e MURPHY, Lawrence (Eds.). Organizational risk factors for job stress. 2. ed. Washington, DC: American Psychological Association, 1996. p. 283-301.

Fonte: www.musicahodie.mus.br

Dia do Músico

22 de Novembro

Músico é aquele que pratica a arte da música, compondo obras musicais, cantando ou tocando algum instrumento. Música, por sua vez, é a arte de combinar sons de maneira agradável ao ouvido, ou o modo de executar uma peça musical por meio de instrumento ou da voz.

A palavra é de origem grega e significa as forças das musas, ninfas que ensinavam às pessoas as verdades dos deuses, semideuses e heróis, u-sando a poesia, a dança, o canto lírico, o canto coral e outras manifestações artísticas, sempre acompanhadas por sons.

Segundo a mitologia grega, os Titãs, que em literatura simbolizam a audácia orgulhosa e brutal, mas punida pela queda repentina, eram divindades primitivas que se empenharam em luta contra Zeus buscando a soberania do mundo, mas foram fulminados por ele e precipitados no Tártaro.

Satisfeitos, os outros deuses pediram ao deus maior que criasse quem fosse capaz de cantar as suas vitórias, e este então se deitou durante nove noites consecutivas com Mnemosina, a deusa da memória, nascendo daí as nove Musas. Delas, a da música era Euterpe, que fazia parte do cortejo de Apolo, o deus da música.

No princípio, a música foi apenas ritmo marcado por primitivos instrumentos de percussão, pois como os povos da antiguidade ignoravam os princípios da harmonia, só aos poucos foram acrescentando a ela fragmentos melódicos.

Na pré-história o homem descobriu os sons do ambiente que o cercava e aprendeu suas diferentes sonoridades: o rumor das ondas quebrando na praia, o ruído da tempestade se aproximando, a melodia do canto animais, e também se encantou com o seu próprio canto, percebendo assim o instrumento musical que é a voz. Mas a música pré-histórica não é considerada como arte, e sim uma expansão impulsiva e instintiva do movimento sonoro, apenas um veículo expressivo de comunicação, sempre ligada às palavras, aos ritos e à dança.

Os primeiros dados documentados sobre composições musicais referem-se a dois hinos gregos dedicados ao deus Apolo, gravados trezentos anos antes de Cristo nas paredes da Casa do Tesouro de Delfos, além de alguns trechos musicais também gregos, gravados em mármore, e mais outros tantos egípcios, anotados em papiros. Nessa época, a música dos gregos baseava-se em leis da acústica e já possuía um sistema de notações e regras de estética.

Por outro lado, a história de Santa Cecília, narrada no Breviarium Romanum, a apresenta como uma jovem de família nobre que viveu em Roma no século III, nos princípios do cristianismo, decidida a viver como monja desde a infância. Mas apesar dos pais a terem dado em casamento a um homem chamado Valeriano, a jovem convenceu o noivo a respeitar-lhe os votos e acabou convertendo-o à sua fé, passando os dois a participar diariamente da missa celebrada nas catacumbas da via Ápia.

Em seguida, Valeriano fez o mesmo com o irmão Tibúrcio, e com Máximo, seu amigo íntimo, e por isso os três foram martirizados pouco tempo depois, enquanto Cecília, prevendo o que lhe aconteceria, distribuiu aos pobres tudo o que possuía. Presa e condenada a morrer queimada, ela foi exposta às chamas durante um dia e uma noite, mas como depois disso ainda se encontrava sem ferimentos, um carrasco recebeu ordem para decapitá-la.

Porém, seu primeiro golpe também falhou. Isso aconteceu durante o ano 230, no reinado de Alexandre Severo, época em que Urbano I ocupava o papado. Anos depois uma igreja foi erigida pelo papa no local em que a jovem mártir residira, tornando-se a Igreja de Santa Cecília uma das mais notáveis de Roma.

Muito embora o Breviarium Romanum não faça menção alguma às prendas musicais de Cecília, ela se tornou, por tradição, a padroeira dos músicos, da música e do canto, cuja data de comemoração é 22 de novembro, o mesmo dia dedicado à santa. A tradição conta que Santa Cecília cantava com tal doçura, que um anjo desceu do céu para ouvi-la.

Fernando Kitzinger Dannemann

Fonte: recantodasletras.uol.com.br

Dia do Músico

22 de Novembro

A imagem pública do músico e da música na antigüidade clássica: desprezo ou admiração?

I – Introdução

O objeto deste artigo será analisar o conjunto de representações que definem o músico no imaginário social das sociedades grega e romana antigas. Para tanto, buscaremos reconstituir a imagem pública que o homem antigo fazia dele. Essa imagem compunha-se, veremos, de um cluster, algo coerente, algo contraditório, de noções, conceitos, valores e preconceitos.

Enquanto um estudo enquadrado na História das Mentalidades segue o conceito, no que se refere à temporalidade, da longue durée: lidamos aqui com elementos mentais, representações, da codificação imaginária de uma figura social específica, o músico, elementos cuja origem histórica não se limita a conjunturas históricas pontuais, cuja causalidade não se remete ao plano estritamente “acontecimental”, contingente, mas refletem opiniões que se estruturaram ao longo dos séculos e que manifestam longa permanência, apesar de profundas mudanças sociais vividas pelas sociedades mediterrâneas antigas.

Deste modo, abordamos de forma sincrônica, desde uma perspectiva antropológica comparativa, testemunhos de textos antigos que se dispersam por quase 12 séculos, de Homero a Santo Agostinho.

Quando se pensava no músico como profissional, pensava-se ao mesmo tempo em outras dimensões da experiência cotidiana, das quais a música de certa forma participava. Assim, a forma como o músico era visto era contaminada pelos elementos mentais que conceituavam essas outras atividades sociais. É necessário, portanto, entendê-los, para se poder entender a opinião corrente sobre o músico. Além da relação que o músico mantinha com a própria música, em nosso estudo, pesquisamos a relação que este mantinha com algumas outras dimensões da experiência cotidiana, como aquela com o mundo do trabalho, do artesanato e da técnica, com o submundo dos vícios e da prostituição, e, finalmente, com a homossexualidade passiva, com a efeminação.

No presente texto, trataremos tão-somente de dois aspectos da composição da imagem do músico:

1) o descompasso entre o estatuto da música e do músico
2)
o estabelecimento da imagem do músico a partir da intersecção da condição deste com o mundo do trabalho.

Uma questão importante para se falar sobre a imagem do músico é colocar a diferenciação existente entre o que se entendia por músico profissional e por amador.

Ora, quem era visto como músico profissional Entre várias atividades que se caracterizavam por uma ocupação com a música, nem todas eram percebidas como profissão. Podemos aqui enumerar diversas atividades musicais. Temos o professor (de canto, de instrumento ou de teoria), o concertista (músico virtuose que participava das competições) e o compositor (que era também um poeta e com certeza executava suas músicas, como o famoso compositor cretense Mesomedes de Creta, músico oficial da corte de Adriano). Ou, num campo social distinto, as hetairai e pornai (contratadas para alegrar o ambiente sensual dos symposioi), bem como os jovens citaristas e cantores efeminados que atendiam aos prazeres sexuais de adultos pederastas. Os auletai que acompanhavam os sacrifícios religiosos, ou atividades laboriais, como a colheita de uva ou azeitonas, situavam-se no campo do proletariado musical.

Havia, ainda, o músico amador (o cidadão em geral, que na idade escolar, ao menos no período clássico grego, aprendia música para saber distinguir o belo) e o coralista amador (cuja participação nos corais marcava uma obrigação cívica da cidadania em muitas cidades gregas). Contrapondo-se a estes, surgiram os coralistas profissionais (que compunham as corporações ou sindicatos de músicos que apareceram na época helenística, exigindo uma elevada remuneração por seu trabalho especializado). Além desses, podemos enumerar os teóricos musicais (que exerciam também a função de professores) e o fabricante de instrumentos, como o aulopoios (cuja atividade manual o caracterizava como um banausos). Poderíamos ainda recordar vários outros, como o tocador de trombeta (salpinx), que anuncia os exércitos, ou o auletes, que dá o ritmo ao movimento das falanges hoplíticas; ou ainda o auletes ou tocador de castanholas (krotala) que acompanhavam os atores na apresentação de peças, bem como os próprios atores, que ao mesmo tempo eram cantores, que ensaiavam os coros e eram responsáveis pelo ensaio dos atores trágicos.

Dessas atividades supracitadas, algumas não eram vistas como profissionais e, portanto, não participavam diretamente da imagem do músico que estudaremos aqui: tanto o músico amador, seja ele cantor ou instrumentista, jovem aprendiz ou adulto diletante, como o teórico musical, não eram vistos como músicos profissionais, pois se dedicavam à música de uma forma digna a um homem livre, contrariamente àqueles que a exerciam como um trabalho do qual, servilmente, tiravam seu sustento. No curso de nossa análise, demonstraremos como essas diferentes atividades eram vistas no estabelecimento da imagem (ou das imagens) do músico em relação aos campos sociais da técnica, do trabalho e do artesanato.

II – O descompasso entre o estatuto da música e do músico:

A cultura grega clássica conferiu à música um lugar de destaque, definindo-a como formadora do caráter do cidadão, pois possibilitaria o aprendizado da virtude e o desenvolvimento espiritual (enquanto à ginástica caberia o desenvolvimento corporal).

Por esses motivos, a tradição aristocrática das cidades gregas garantia o ensino musical como etapa básica da formação do jovem, exigindo deste alguns anos de dedicação ao estudo do canto e da lira. Essa valorização da música, porém, não acarretava uma valorização do músico profissional e da dedicação especializada à execução musical por parte de um cidadão adulto. Aristóteles não hesitava em chamar os músicos profissionais de vulgares e em definir a execução musical como imprópria a um homem livre. Para ele, os cidadãos deviam dedicar-se à execução musical somente em sua juventude, abandonando essa prática na idade adulta.

Desse modo, não havia correspondência entre o estatuto da música e o estatuto do músico: sendo a primeira enaltecida, o outro, por sua vez, era socialmente execrado.

Ao contrário da beleza moral que a apreciação musical propiciava, dedicar-se à profissão de músico era considerado “labutar em tarefas medíocres e aplicar esforços em objetos inúteis”. O músico profissional, portanto, “alardeia indiferença pela beleza moral” (Plutarco. Péricles, 2).

Numa passagem de Plutarco, encontramos uma comparação entre a música e a atividade artesanal e manufatureira, em que ele estabelecia um paralelismo na distinção entre o valor do produto e do produtor: enquanto o produto era valorizado, o trabalho do produtor era desprezado.

Em outros campos, podemos muito bem admirar o que se fez sem, necessariamente, querer fazer o mesmo. Ao contrário, não é raro suceder que gozemos a obra ao mesmo tempo que desprezamos o autor. Tal é o caso dos perfumes e dos tecidos de púrpura: agradam-nos sim, mas consideramos os ofícios do tintureiro e do perfumista como servis e indignos de um homem livre. Bastante razão teve Antístenes1 quando respondeu a alguém que lhe afirmava ser Ismênias2 um excelente flautista: “Sim, mas como homem é uma nulidade, do contrário não tocaria tão bem”. Da mesma forma Filipe3, dirigindo-se ao filho que, com muita graça e talento acabara de tocar cítara num banquete, perguntou-lhe: Não tens vergonha de tocar com tanta habilidade”. Com efeito, basta a um rei ouvir o som da cítara quando dispõe de tempo para isso, e já presta grande homenagem às Musas ao assistir aos concursos onde outros disputam os prêmios.

Desse modo, havia uma coincidência nos critérios de julgamento das profissões de músico e artesão, pois ambas estavam submetidas à “ideologia da causa final”.

Segundo essa ideologia, “cada tarefa encontra-se definida em função do produto que visa a fabricar: a sapataria com relação ao calçado, a olaria com relação ao pote”5; e, sob o mesmo ponto de vista, a música com relação à melodia e nunca com relação ao músico. Vernant nos permite compreender como, nesse esquema de pensamento, o produtor – artesão ou músico – não era valorizado.

A teoria demiúrgica, cujo resultado é a “ideologia da causa final”, submetia a obra do autor (músico ou artesão) à necessidade do usuário. Assim, segundo Vernant, “nesse sistema mental, o homem age quando utiliza as coisas e não quando as produz. O ideal do homem livre, do homem ativo, é ser universalmente usuário, nunca produtor”.6 Havia todo um esquema que colocava a ação fabricadora, o produtor, sob a dependência e o serviço pessoal do usuário.

A mesma teoria demiúrgica que regia o julgamento social dos músicos e artesãos entre os gregos, parecia valer entre os romanos. Para estes,

o verdadeiro autor de uma obra de arte não é quem a modelou, o verdadeiro artífice de um monumento não é quem o ergueu. É o personagem que o desejou e financiou, e quem impôs seu gosto e sua ideologia: o encomendador. … Seja qual for seu talento, o artifex permanecerá sempre como o agente executor a serviço de um cliente.

Graças à “ideologia da causa final”, o valor atribuído à música não era repassado figura do músico, vista como torpe e vulgar. Na Atenas clássica, ter uma formação musical, ser um µs a, era sempre uma boa referência social, disso temos inúmeras provas, desde as evidências de que o próprio Platão fosse um músico amador e de que Sócrates conhecesse as regras da composição musical, até as insistentes desculpas de Temístocles quanto à sua incapacidade para tocar lira.

No entanto, ser um músico destacado não era garantia de reconhecimento social, mesmo que todos concordassem em pagar bons salários aos virtuosi, que eventualmente podiam se tornar bastante ricos e afamados, como foi o caso de Ismênias de Tebas. Malgrado o desprezo do filósofo Antístenes, que o considerava uma nulidade como homem, Ismênias foi um dos auletai mais ricos e mais prestigiados da Antigüidade.

Desse modo, a distinção entre o valor da música e do músico ligava-se inexoravelmente ao sistema mental, baseado na teoria demiúrgica, que regulamentava a depreciação do trabalho manual e remunerado. De acordo com este sistema, o produtor era desprezado e o produto, submetido ao usuário, era valorizado, como instrumento ideológico para demarcar o assujeitamento de um grupo social a outro – daquele marcado pela servidão àquele presenteado pela liberdade.

Havia, porém, outro sistema que participava do balizamento que separava música e músico, pondo-os em extremos opostos da escala de valores sociais. Tratavase do sistema de valores que demarcava os campos das atividades intelectuais, de forma correlata àquele que ordenava o universo das profissões, definindo o estudo que era considerado digno de um homem livre e o que caracterizava uma condição servil.

Existia, conforme esse sistema, um conjunto de atividades intelectuais que dignificariam o espírito do homem livre e outras que o tornariam servil, bruto. Desse modo, de um lado, temos as ocupações “liberais”, adequadas ao homem livre, que visavam estritamente ao prazer do espírito e ao seu aperfeiçoamento; de outro, temos as práticas, manuais, que piorariam as condições do corpo.

Assim, Aristóteles tomava em consideração o corte epistemológico e moral entre conhecimentos “liberais” e “práticos” para estabelecer seu modelo pedagógico, determinando quais os aprendizados que deviam ser ministrados aos jovens:

Não é difícil de ver, então, que devem ser ensinados aos jovens os conhecimentos úteis realmente indispensáveis, mas é óbvio que não se lhes deve ensinar todos eles, distinguindo-se as atividades liberais das servis; deve-se transmitir aos jovens, então, apenas os conhecimentos úteis que não tornam vulgares as pessoas que os adquirem. Uma atividade, tanto quanto uma ciência ou arte, deve ser considerada vulgar se seu conhecimento torna o corpo, a alma ou o intelecto de um homem livre inúteis para a posse e a prática das qualidades morais. Eis porque chamamos vulgares todas as artes que pioram as condições naturais do corpo, e as atividades pelas quais se recebem salários; elas absorvem e degradam o espírito.

Segundo Morel, o mundo romano, de um modo geral, repetia as idéias de Platão e Aristóteles no que se refere à dicotomia entre conhecimentos liberais e práticos:

O corte essencial para os romanos não se situa entre as atividades intelectuais e atividades manuais, senão entre ocupações que tendem somente ao prazer do espírito e aquelas que são utilitárias, entre artes “liberais”, dignas de um homem livre, como as matemáticas, a retórica ou a filosofia e todas as demais, desde os ofícios manuais até a medicina e a arquitetura. Mais de um romano teria podido tomar para si as opiniões de Platão e Aristóteles, segundo os quais os artesãos eram personagens vulgares e pouco nobres, indignos de serem considerados como cidadãos. Os técnicos mais hábeis não escapariam s críticas, desde o momento em que degradam as artes liberais com aplicações práticas.

De acordo com Finley, o “divórcio claro, quase total, entre a ciência e a prática” era um aspecto intelectual característico do mundo antigo. “O objetivo da ciência antiga, tem sido dito, era saber, não fazer; entender a natureza, não domesticá-la”. Para Aristóteles, apesar de sua ilimitada curiosidade, o interesse pelos conteúdos práticos e técnicos caracterizava um profundo mau gosto.

Os estudos e as ocupações, portanto, não deveriam satisfazer as necessidades humanas, a aa, mas a liberdade, as demandas do ócio e do prazer espiritual e moral. Esse era o juízo que orientava os critérios estabelecidos para a educação musical e para o julgamento da atividade do músico profissional. Aristóteles “exclui na educação … toda disciplina que objetiva o exercício profissional: o homem livre deve visar à própria cultura”. Estabelecia assim uma clara diferenciação entre fins práticos (ligados ao mundo do trabalho, da necessidade, do artesão, do meteco e do escravo) e fins teóricos (ligados ao ócio espiritual, à liberdade, ao aperfeiçoamento moral do cidadão). Assim, tanto para Platão como para Aristóteles, aprendia-se música não para o ofício (techné), mas para a educação (paidéia).

Como ficavam os conhecimentos e as ocupações musicais nesse esquema do divórcio entre a ciência e a técnica, entre as artes “liberais” e as atividades práticas A música se situava junto à matemática, à retórica e à filosofia, como arte digna de um homem livre Ou junto às demais artes e como os ofícios manuais, imprópria ao cidadão A resposta é plural e aparentemente contraditória, pois dependia do tipo de vínculo que se tinha com a ocupação musical.

Um estudante de música, na juventude, deveria aprender, através das melodias, ritmos e harmonias corretamente escolhidos, as virtudes que deviam marcar o espírito do cidadão. Através da educação musical, os ritmos e harmonias se tornariam familiares às almas das crianças, de sorte que elas aprenderiam a ser mais gentis, harmoniosas e ritmadas; assim, tornar-se-iam mais aptas palavra e à ação, pois a vida do homem, por toda parte, pensava-se, precisa de harmonia e ritmo. Enfim, o aprendizado da música tornaria as crianças mais civilizadas e daria modéstia à juventude. Nesse sentido, o estudo da música tinha um caráter “liberal”.

No entanto, se mal conduzida, a educação musical poderia perder o seu caráter liberal. Assim, para não “amesquinhar o corpo ou inutilizá-lo para as ocupações marciais e cívicas do cidadão”, “deve-se determinar até que ponto os alunos que estão sendo educados para a excelência na vida pública devem participar da educação musical”

O objetivo da educação musical, para Aristóteles, era, portanto, formar um amador, e nunca um profissional, haja vista serem os músicos profissionais considerados vulgares. Porquanto “os estudantes de música devem se abster de participar das competições profissionais e das maravilhosas exibições de virtuosismo … incluídas em tais competições”. Uma vez que o intuito é alimentar a alma com beleza moral, “eles devem praticar a música … prescrita até o ponto em que estejam aptos a deleitar-se com as melodias e os ritmos mais belos”. Devia-se estudar a música com vistas ao prazer dedicado à atividade intelectual, e nunca com o interesse técnico de tornar-se um instrumentista profissional.

Quanto ao estudo da teoria musical, enquanto ciência, sem interesses práticos, este era considerado digno do homem livre, pois levava ao aperfeiçoamento do espírito. Juntamente com a aritmética, a geometria e a astronomia, a música, como estudo teórico dos fenômenos musicais, era considerada uma ciência pura que treinaria o espírito para a elevação (epanagoghé) e conversão (anastrofé) do espírito, para atingir a disciplina suprema, a dialética ou a filosofia.

No entanto, quando a dedicação à música implicava um caráter de servilidade, na medida em que esta fosse excessiva ou exercida como profissão, então não seria mais recomendada a um cidadão.

A prática da música como profissão degradaria o espírito sob várias formas: por constituir uma atividade assalariada; pelo esforço manual e técnico necessário; por lembrar, de certa forma, a atmosfera dos vícios, prazeres frouxos e embriaguez; e, finalmente, pela pecha de efeminação da qual muitos músicos eram acusados. Essas condenações podiam recair sobre diferentes profissões musicais, desde o professor de canto ou lira e o concertista, até as “musicistas” (pornai e hetairai) e bailarinas que animavam os banquetes e os fabricantes de instrumentos. Poderemos entender os julgamentos negativos feitos sobre essas profissões se analisarmos por que lhes eram imputadas as condenações supra-referidas. Para tanto, passaremos à análise do estatuto do músico em relação ao mundo do trabalho.

III – O Estatuto do músico em relação ao mundo do trabalho, do artesanato e da técnica:

As formas como o imaginário grego conceituava o trabalho, o artesanato e a técnica, ligavam-se profundamente às noções antagônicas de liberdade e necessidade, eeea e aa, e aos valores agregados a essas noções de que a dignidade e as honras (tµa) da cidadania só encontravam lugar quando o homem estivesse livre das necessidades da vida e, de forma inversa, de que ele seria marcado pela servilidade e brutalidade de espírito quando estivesse sempre na dependência da satisfação dessas necessidades. Para os filósofos, a liberdade não era somente uma condição jurídica – significava estar liberto do jugo da sobrevivência e, assim, não precisar submeter-se aos outros para garantir seu sustento. Além disso, era somente nessa liberdade filosófica que se adquiria a virtude para o exercício da cidadania.

Assim, para Platão,

ser cidadão é um ofício que é a cultura da virtude: t aet epµeea; exclui qualquer outro …. Os cidadãos não poderiam de forma alguma ser artesãos. Os que infringissem a lei atrairiam o ultraje público (oneidos) ou a indignidade (atimia), ou seja, as sanções morais mais pesadas de que a cidade dispunha.”

Platão, de um modo geral, inscrevia-se no lugar certo nessa grande corrente de pensamento grego que recusava qualquer carta de nobreza à atividade demiúrgica. Para ele, a demiurgia deteriorava o corpo, enquanto a banausia (o artesanato manual mais vulgar) e a kapéleia (o comércio varejista) deterioravam a alma.

Apesar de o artesanato ocupar um lugar capital na civilização grega – o que era por vezes reconhecido de forma bastante titubeante –, as invenções gregas por excelência ligavam-se ao universo da palavra, do: a Política, a História, a Filosofia, a Ciência, o Teatro, a Retórica. Essa civilização da palavra teve sempre dificuldade em conviver com o artesanato, com o trabalho e com a técnica, os quais foram relegados a um segundo plano. Parece que a célebre frase de Zilsel continua sendo a melhor síntese desse sistema de pensamento. Afirmava que, na Antigüidade, nur die Zunge, nicht die Hand als göttlich inspiriert.

Parece igualmente ser verdade que os vencidos venceram os vencedores, pois averiguamos que os romanos são herdeiros, ou pelo menos partícipes, da ideologia do trabalho grega. Para Sêneca, as tarefas de um artesão são “vis” e “vulgares”, e “nada têm que ver com as verdadeiras qualidades humanas”.22 Do mesmo modo, para Cícero, “todo o artesão pratica um ofício vil”. Pensava, da mesma forma, que “a oficina em nada é compatível com a condição do homem livre.”23 Não bastando serem vis, vulgares e indignas do homem livre, recebem a balda do trabalho assalariado. Cícero afirmava que “todo salário é sórdido e indigno de um homem livre, pois constitui o preço do trabalho e não de uma arte”.24 Um dos fatores que condicionavam a indignidade das sórdidas artes do vulgo, pensava Sêneca, era que os trabalhadores braçais empregariam todo o seu tempo em ganhar a vida. Para ele, o trabalho assalariado nada tinha de belo e em nada se assemelhava ao Bem.25 Aristóteles afirmava que as atividades pelas quais se recebesse salário absorveriam e degradariam o espírito, pois não tinham como objetivo o seu benefício ou o de seus amigos. Quando se buscasse perceber um salário não se visariam às qualidades morais, pois, de forma mercenária e servil, agia-se submetido aos interesses de terceiros. Dessa forma, o trabalhador assalariado equiparava-se ao escravo, pois não era livre, uma vez que não trabalhava para si, mas para outrem. Do mesmo modo, cinco séculos mais tarde, o médico Galeano afirmava que um trabalhador assalariado, enquanto estivesse trabalhando, era um escravo, e só voltava a ser ele mesmo, separado do senhor, ao cair da noite.

Desse modo, quando se trabalhava por salário, não se detinha o uso do que se fazia – era escravidão. Assim, escravos e artesãos – da mesma forma que músicos profissionais – não podiam levar uma vida feliz, pois a liberdade era condição sine qua non da felicidade para Aristóteles. O músico, ao vender seu trabalho, participava da servilidade do artesão.

Podemos então entender as diferentes restrições ao trabalho do músico profissional, inserindo estas no contexto da repulsa ao artesanato e ao trabalho. O virtuose, ao tornar-se um especialista, acreditava-se, entrava no mundo da técnica e retirava-se do universo da liberdade. Adquiria “um aspecto corporal diferente por causa dos movimentos que eles têm de fazer”.26 É por isso que, em suas utopias sociais, Aristóteles e Platão condenavam os instrumentos que exigiam do músico maior destreza manual. Platão, por exemplo, recomendava que fossem abandonados, nas “canções e melodias, instrumentos de muitas cordas, capazes de todas as harmonias” (Platão. República, 399a).

Aristóteles dizia que

muitos dos instrumentos mais antigos foram também condenados, como o péctis e o bárbitos e os instrumentos destinados a proporcionar apenas prazer a quem os ouvia tocados por outros – por exemplo, o heptágono, o triângulo e a sambuca, e todos os que exigem grande habilidade manual.

Com a exceção do bárbitos, esses instrumentos referidos por Platão e Aristóteles não compunham o repertório musical amador e diletante, apreciado por esses filósofos; este se constituía basicamente da lyra, do aulos (apesar da insistente censura a esse) e do canto monódico.

A recomendação para que o jovem não estudasse música com o objetivo de se tornar um profissional ligava-se ao temor de que esse fosse contaminado pela techné. Por isso, convinha controlar até que ponto os jovens deviam estudar música; por essa razão, rejeitava-se a profissionalização no ensino musical e na execução de instrumentos; por esse motivo, do mesmo modo, os adultos deviam afastar-se da execução musical; por isso, também, não era de bom tom que um jovem tocasse com muita habilidade, como se fosse um músico profissional. Assim compreendemos por que Filipe repreendeu seu filho, Alexandre (ainda menino), dizendo-lhe que devia ter vergonha de tocar com tanta habilidade, graça e talento, pois a um rei bastava ouvir o som da cítara e prestigiar concursos musicais, quando dispusesse de tempo, para prestar homenagem às Musas.

Por sua vez, um músico, quando se sujeitava à percepção de um salário em troca de sua música, não se dedicava à arte das Musas em seu próprio benefício; não encontraria nela a beleza moral, pois o salário, de natureza sórdida, era incompatível com aquela. Ele estava, de forma subalterna, a serviço do prazer alheio. “Por isso não consideramos a execução condizente com um homem livre, mas extremamente subalterna”. A participação em competições também era condenada, pois, como uma atividade profissional, não se participava das mesmas para o aperfeiçoamento próprio. A música, praticada para se receber um salário, como forma de garantir o sustento, adquiria caráter vulgar, degradador do espírito. Pouco importava se o salário correspondesse a míseros 2 dracmas por noite (remuneração das jovens “artistas” alugadas a seus proxenetas, conforme a legislação vigente em Atenas) ou à respeitável soma de 700 dracmas anuais percebida por um professor de música em Teos no séc. II a.C. Era sempre uma espécie de homem de ofícios, um banausoV, mesmo quando conseguisse acumular uma vultosa fortuna, como foi o caso do auletes Ismênias, considerado uma nulidade pelo cínico Antístenes, nada obstante possuísse riqueza suficiente para dispor de 7 talentos (42 mil dracmas) para encomendar um sofisticadíssimo instrumento. Ora, uma riqueza acumulada através de salários era sempre uma riqueza que levava o estigma da submissão, da servilidade.

Assim, as confusas representações coletivas sobre o trabalho não poupavam o músico, apesar de toda estima que se tinha pela música. Nem sequer o professor, cujo papel social era inestimável, escapava desses julgamentos, que, no caso, tornavam-se, às vezes, bastante confusos, pois era inevitável reconhecer-se o valor de seu trabalho profissional.

As opiniões sobre o professor de música comportavam-se de forma ambígua, ora admirando seu saber liberal e a sua responsabilidade por introduzir o filho no culto às Musas, ora desprezando sua servilidade, sua dependência do salário para seu sustento.

Essa ambigüidade, essa divergência de opiniões, leva-nos a formular duas questões correlatas acerca da imagem do músico:

Primeira: O que pensavam sobre si mesmos os músicos? Essa pergunta, referente à auto-imagem do músico, a seu orgulho próprio, tendo sido tratada em nossa pesquisa, não será aqui abordada, uma vez que este artigo tem como tema a imagem pública do músico.

Segunda: Essas opiniões preconceituosas sobre os músicos profissionais eram compartilhadas por todos os extratos sociais? Perguntando de outra forma, preocupavam-se todos com esses julgamentos filosóficos e esses postulados da “ideologia do trabalho manual” e da “ideologia da causa final”?

Sobre essa última questão, é necessário dizer que esses conceitos ligavam-se a um imaginário social originado nas elites econômicas e políticas terratenentes, que se manteve válido como forma de avaliar as atividades profissionais mesmo em contextos históricos posteriores, nos quais as elites políticas e econômicas já tinham adquirido um perfil mais complexo. No entanto, o fato de ser uma idéia sustentada pelas elites gregas e romanas – e defendida com afinco pela inteligentsia que a representava – não significa que fosse compartilhada por todos. Em verdade, na opinião popular moderna sobre a Antigüidade, como dizia E. Meyer, produziu-se “uma imagem fantástica da teoria do desapreço do trabalho manual”, que resultou num julgamento histórico equivocado, pois levou à conclusão de que fosse um ponto de vista apoiado irrestritamente por toda sociedade. Mesmo que o registro histórico tenha deixado menos vestígios dos pensamentos que divergiam da “ideologia do trabalho manual”, da “ideologia da causa final” e da teoria demiúrgica, muitos pensaram de outra forma.

Conforme Salvioli, essa ideologia mantinha uma relação estreita com o ideal agrário que perfilava o modelo da cidadania na Roma republicana. Esse ideal agrário, porém, não era compartilhado por todos. A predominância dos textos que priorizavam o agricultor, bem como o guerreiro, em relação ao artesão, provoca, na expressão de Vidal-Naquet, uma “ilusão de ótica” na interpretação historiográfica moderna – a ilusão de que essa seria a única perspectiva. No entanto, um olhar mais atento descobrirá uma corrente de pensamento paralela – talvez uma “visão do dominado” – que valorizava o artesão e seus saberes. Essa perspectiva já encontrava guarida nos antigos mitos. Platão lembrava que a Hefesto e Atena era “consagrada a raça dos artesãos cujos ofícios conjugados organizaram a vida” em cidade.

Podemos antever, então, uma ambigüidade no estatuto do artesão, cujo testemunho mais luminoso se encontra na obra de Platão, em que dois sistemas de valores se confrontam. Em paralelo ao sistema público oficial, que prioriza o geórgos (agricultor), encontramos, no Timeu e nas Leis, um sistema dissimulado, que privilegia o démiourgos (artesão). Platão reconheceu, na função artesanal (de Prometeu e Hefesto), o centro da atividade humana. Interessa-nos que, nessa valorização da demiurgia, escondia-se uma corrente de pensamento que não guardava preconceitos tão marcantes quanto ao trabalho assalariado. Platão soube enaltecer o personagem do artesão, ao colocar o Demiourgos, um artesão, como criador do mundo.

A valorização do mundo do trabalho, do artesanato, das profissões (entre as quais pode incluir-se a de músico), estava elaborada no conceito de Métis, uma categoria mental quase esquecida, que perpassou a cultura grega. Em seu estudo sobre esta, Detienne e Vernant definem-na como a “malícia da inteligência”. Trata-se tanto da habilidade do artesão, do oleiro ou tecelão, como da capacidade quase animal do caçador, do pescador ou mesmo do jovem soldado que participa de uma emboscada. Métis é tanto o manuseio hábil e preciso dos materiais pelo fabricante de instrumento para construí-los, como a destreza das mãos do citarista ou auletés, como a delicadeza do canto do músico. Um virtuose, como o auletes Ismênias ou o citarista Lisandro, notabilizaram-se pela sua métis musical. Métis é uma astúcia conjugada entre as mãos e a inteligência. Podemos dizer que, para essa corrente de pensamento, não vale a conclusão de Zilsel, de que entre os antigos a língua, e não a mão, era inspirada pelos deuses. Parece-nos que aqueles que sabiam valorizar a métis não repetiriam com tanto aferro a “ideologia da causa final”, como o faziam os filósofos. Para aqueles, é como se a causa final e a motriz fossem de igual importância. O que pensariam essas vozes silenciadas pela historiografia sobre a causa motriz da música, o músico?

A mesma fonte que nos revela a censura do filósofo Antístenes ao flautista Ismênias revela também a existência de alguém que, pouco interessado nos julgamentos filosóficos, bastava-se em admirar as qualidades técnicas do célebre virtuose tebano. Como podemos ver nesse curto trecho de Plutarco, já citado anteriormente: “Bastante razão teve Antístenes quando respondeu a alguém que lhe afirmava ser Ismênias um excelente flautista: ‘Sim, mas como homem é uma nulidade, do contrário não tocaria tão bem’. “

Como podemos concluir, as reprimendas de cunho filosófico sobre o virtuosismo de Ismênias – partilhadas por Plutarco – em nada prejudicaram sua fama e seu enriquecimento. Bastante admirada foi a métis de vários outros músicos, sobre os quais as fontes nos fornecem inúmeros exemplos. É o caso da admiração pelo citarista Lisandro (séc. VI), citado por Ateneus, cuja técnica, inspiração e destreza lhe permitiram fazer da cítara um instrumento colorido, tocando-a como um aulos. Tocá-la “como um aulos” significava que sua métis musical era tão sofisticada que, mesmo com uma cítara, conseguia descrever uma narrativa. Tal era sua capacidade de obter timbres e efeitos inesperados, que os sofistas – personagens do diálogo de Ateneus – dão a entender que ele tocava a cítara como se fosse vários instrumentos.

Os espectadores das competições musicais deviam pensar do mesmo modo que os admiradores de Ismênias e Lisandro. Inúmeras evidências apontam que muitos músicos profissionais foram louvados por seus contemporâneos, apesar de todos os preconceitos em relação à profissão. Era comum que alguns alçassem à fama, como esses dois notáveis instrumentistas, cuja destreza e arte foram celebradas ao longo da Antigüidade. A lista de músicos que atingiram o reconhecimento e a glória é, na verdade, bastante extensa, contando inclusive com seus contrapontos lendários, como o músico tebano Arion, que, segundo a narrativa mítica, teria feito fortuna na Sicília graças ao seu talento musical. A fama, riqueza e genialidade de um auletes como o tebano Pronomos ou o citarista e professor ateniense Estratonicos são exemplos desta proeminência social e econômica que alguns músicos adquirem em virtude de seu notável talento. Muitos virtuosi enriqueceram, da mesma forma que Ismênias. Tendo em vista elevada estima com que os gregos guardavam a música, supõe-se que era bastante comum valorizar um músico talentoso e até mesmo adular o vencedor em algum concurso.

A remuneração superior do professor de música em relação aos de letras e ginástica traduz, com certeza, uma valorização profissional. Na fundação escolar de Polítrous, que fixou o ensino público em Teos no séc. II a.C., foram contratados três professores de letras, dois de ginástica e um único de música. Um dos motivos dessa diferença – inaceitável na época clássica – é que no período helenístico os músicos tornaram-se profissionais muito caros, devido à crescente especialização técnica, de modo que o professor de música percebia um salário de 700 dracmas anuais, enquanto os outros receberiam, no máximo, 600.

A partir da época de Alexandre, assiste-se, em algumas regiões da Grécia, à formação de corporações de músicos, as quais, graças ao efeito de seu esprit de corps, garantiam honorários elevados para a profissão. Em Mileto, havia um colégio de músicos, os Molpoi. Assim, na época helenística, os coros não eram mais entregues a amadores recrutados entre os cidadãos, mas a grupos de artistas profissionais, os tecnitai. A tendência foi a substituição de coros amadores por coros profissionais, bem como a atribuição da função de professor a profissionais muito qualificados e bem-remunerados. Porém, por motivos de economia, em sendo os honorários desses tecnitai?muito custosos, a substituição não foi total, e continuaremos a ver, segundo os registros, coros amadores nas cidades gregas até um período avançado da idade imperial.

Esse processo de valorização do músico profissional pode ser atestado pela prosopografia de alguns músicos, a qual revela uma espécie de processo de sindicalização. As escavações de Delfos nos revelam dados da história de dois músicos, Elpinikios e Cléon, que não eram propriamente professores, mas artistas líricos. Nas Píticas de 138-137 a.C., a cidade de Atenas enviou a Delfos um coro de amadores, tendo como khorodidaskaloí contratados Elpinikios e Cléon. Uma década mais tarde, os mesmos músicos estarão representando Atenas nas celebrações em Delfos. No entanto, agora participam como membros do

coro de trinta e nove profissionais, fazendo parte da numerosa troupe de tecnitai atenienses (são uns sessenta ao todo) que acompanham dessa vez a delegação e cuja brilhante participação na cerimônia lhes valeu o reconhecimento da população de Delfos.

Elpinikios e Cléon atestam um avanço no reconhecimento do trabalho profissional do músico, ao testemunharem a adesão pelos atenienses ao emprego desses tecnitai musicais na representação da cidade em Delfos. Significa também que a comunidade concordava em onerar os cofres públicos com a dispendiosa remuneração dos músicos. Mesmo que vistos como torpes por filósofos e membros da elite, não se negava o reconhecimento de suas qualidades na arte das Musas. O próprio Aristóteles, defensor da música amadora, precisou curvar-se diante do fato de que os músicos profissionais eram superiores na execução da arte patroneada por Apolo.

Assim, quanto à opinião acerca do músico como profissional, é possível também que ocorra uma certa “ilusão de ótica”. Não obstante o preconceito que a ideologia dominante depositava sobre o músico profissional, muitos serão aqueles que saberão respeitar e admirar a dignidade e o talento dos virtuosi.

IV – Conclusão:

Se, em alguns casos, podia ser encontrada uma certa dignidade, como na ocupação de professor, avaliada por muitos como uma atividade liberal, a condição de trabalho assalariado era sempre suficiente para a acusação de servilidade. À pecha da dependência de uma remuneração, somavam-se a balda do esforço físico deformante, próprio da técnica (o caso dos concertistas) e o estigma da indecência de profissões que sobreviviam dos submundos e dos prazeres banais (situação das hetairai e pornai do mesmo modo como de alguns cantores, atores e citaristas que, como mulheres, submetiam-se ao desejo sexual homoerótico de outros homens).

Não faltariam paralelos mitológicos para sustentar essas visões preconceituosas com relação ao músico: a efeminação de Orfeu; a fragilidade de Anfion em oposição à virilidade guerreira de seu irmão gêmeo Zetos; a rejeição do valentão Héracles às aulas de música de Linos; ou a hybris (desmedida) do citarista Tamyras ou do sileno flautista Mársias, que ousaram desafiar respectivamente as Musas e seu mestre, Apolo.

Pensava-se que um músico amador, que fosse comedido no seu envolvimento com a música, evitando instrumentos de difícil execução e afastando-se das competições, prestava homenagem às Musas sem ofender a virilidade e as honras do cidadão. Educava, pois, seu caráter na audição de melodias compostas nos modos dóricos e lídios, portadoras do ethos praktikós e ethos ethikós. Do mesmo modo, aqueles que se dedicavam à teoria musical não eram vistos como homens vulgares; contudo, eram, em sua grande maioria, professores que cobravam para ensinar seus conhecimentos, o que seria motivo suficiente para repreensões por parte daqueles que desprezavam o salário. Achava-se que, diferentemente dos músicos que serviam a fugazes e condenáveis prazeres, esses espíritos iluminados que se dedicavam à teoria musical alcançavam uma purificação da alma, enchendo-a de alegria, pois a ciência musical, a µs, participava do prestígio da astronomia, pela qual a alma entrava em comunhão com os deuses estelares, tornando-a divina ao separá-la das baixezas terrestres.

Como vemos, a valorização filosófica, pedagógica, espiritual e religiosa, da qual se revestiu a música entre os gregos desde os tempos homéricos, não emprestou sua importância àqueles que se empenharam, como profissionais, a prestigiar a arte das Musas. Todavia, houve sempre uma certa ambigüidade. Mesmo prevalecendo o julgamento de que fossem pessoas suspeitas, muitos desprezavam essas retaliações e preferiam reconhecer os méritos dos renomados concertistas e professores que sabiam engrandecer essa arte cuja linguagem era tão apreciada pelos gregos. Indiferente às censuras filosóficas e moralistas, o público que acorria às competições musicais aplaudia efusivamente os vencedores pela sua destreza técnica e inspiração. É assim que o flautista Timóteo, de Tebas, tornou-se célebre pela sua interpretação da peça A loucura de Ajax, de Timóteo, o Milésio.

O reconhecimento social de compositores devia ocorrer de forma análoga: assim, a qualidade das composições de Mesomedes de Creta foi coroada com sua nomeação como músico oficial da corte de Adriano, semelhante ao que ocorreu, dezesseis séculos mais tarde, com Mozart na época dos Habsburg.

Destarte, a auto-estima de músicos sérios, que dedicavam horas de estudo a seus instrumentos, não se deixava abalar diante das reprimendas daqueles que os queriam comparar com prostitutas e rapazes “afrescalhados”. A certeza de estarem cultuando as Musas garantia o orgulho de seu métier, além de sustentar a crença de que suas almas usufruiriam de privilégios após a morte, graças à proteção que estas lhes proporcionariam. Podiam sempre lembrar aos homens cultos que, segundo os pitagóricos, a ordem do mundo fundada sobre o rigor do número era uma harmonia, uma música. Diante das censuras que lhes eram feitas, podiam sempre retorquir que a música humana, das vozes e instrumentos, que encontrava sua melhor expressão no trabalho de citaristas, liristas, auletai e citaredos profissionais, participava da música das esferas.

Numa passagem do Sonho de Cipião, Cícero, revelando-nos certa influência neopitagórica, valoriza o papel espiritual dos músicos:

Os doutos espíritos que souberam imitar essa harmonia com a lira e o canto traçaram o retorno ao céu (o céu, morada dos Bem-aventurados), da mesma forma que os possantes gênios que, ao longo da vida mortal, cultivaram as ciências divinas.

Marrou caracteriza bem essa atitude ambivalente diante dos músicos profissionais:

Eles são, com certeza, admirados por seu talento, e não se hesitará jamais em pagar seus serviços por bons preços, mas ao mesmo tempo são desdenhados: não pertencem normalmente ao meio social onde são recrutadas as pessoas cultas; seus hábitos, sem dúvida, não são tão suspeitos como aqueles dos pantomimos; no entanto o caráter mercantil de sua atividade basta para lhes desqualificar: são gente de ofício, banausoi.

Para conseguirmos compreender esse cluster de opiniões sobre o músico, às vezes bastante coerente, mas em alguns momentos tão contraditório, devemos recorrer a Veyne, que nos lembra que as idéias quanto ao trabalho não eram doutrinas, obras de pensadores e juristas,

mas confusas representações coletivas que eram também representações de classe … Tais representações visavam globalmente a grupos sociais inferiores, reduzidos a viver de salário ou a se colocar a serviço de alguém. Não pretendiam organizar a conduta de todos segundo as regras, e sim exaltar ou enaltecer uma classe social onde tudo é mais ou menos verdadeiro. … Todos são acusados de trabalhar. … As idéias antigas sobre o trabalho eram menos idéias do que valorizações, positivas para os poderosos e negativas para os humildes.

À guisa de conclusão, nesse conjunto de julgamentos sobre o músico, “tudo é mais ou menos verdadeiro”, sendo um equívoco perguntar-se o que realmente pensavam. Causava espécie que pessoas tão pouco respeitosas como prostitutas e artistas mambembes fossem coroadas com a arte das Musas. Já professores – responsáveis pela formação dos filhos de homens bem nascidos – e concertistas – que circulavam em meios sociais de maior projeção – não são de todo pessoas maltrapilhas e suspeitas, podendo aspirar, juntamente aos poetas, a dignidade de verdadeiros obtentores dos favores das Musas para o conforto dos homens; porém, estão reduzidos a viver de salário ou a se colocar a serviço de alguém. A dignidade liberal de um professor de lira, canto ou teoria ofuscava-se diante da imagem de ser homem pobre.53 O mesmo ocorria em relação ao virtuose. Não obstante o reconhecimento de seus talentos, Aristóteles considerava a execução extremamente subalterna, pois

os executantes se tornam vulgares, uma vez que seu escopo é mau, já que a vulgaridade da audiência geralmente influencia a música, de tal forma que ela dá aos artistas que a executam com o fito de ser agradáveis à audiência um caráter peculiar, e também um aspecto corporal diferente por causa dos movimentos que eles têm de fazer.

Vemos, no pervicaz desdém aristotélico atinente ao solista, a obstinação em diminuir os méritos daquele artista que se auto-representava como leal e tenaz profeta das Musas.

Finalmente: desprezo ou admiração Ambos, dependendo de quem emite a opinião e em que situação a pronuncia.

Fábio Vergara Cerqueira

Fonte: www.scielo.br

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