História da Prevenção das Doenças Transmissíveis

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INTRODUÇÃO

As doenças constituem uma terrível ameaça para todo ser humano. Algumas são brandas, mas outras podem chegar mesmo a matar milhões de pessoas – como já ocorreu – espalhando-se por grandes regiões do mundo.

Durante muitos séculos, não se sabia o que produzia as pestes e as grandes epidemias: um castigo divino? uma conjunção astrológica? uma mudança de clima?

Foi preciso um longo caminho para que se pudesse compreender a causa das enfermidades transmissíveis e como se prevenir contra elas.

Hoje em dia, todos sabemos que certas doenças podem passar de uma pessoa para outra. Desde uma gripe banal, até diversas doenças muito graves, como cólera e aids, podem ser transmitidas de uma pessoa doente para outra sadia. Isso ocorre quando a doença é causada por microorganismos, como as bactérias ou vírus. Esses seres invisíveis, que são responsáveis por muitas doenças, multiplicam-se nos indivíduos doentes e podem passar deles para outras pessoas através de muitos caminhos: pela respiração, por excreções, pela picada de um inseto, etc.

Há outros tipos de doenças que não são causadas por microorganismos; mas não iremos tratar delas, neste livro.

Quando se conhece o tipo de microorganismo causador de uma doença e o seu modo de transmissão, pode-se evitar que ele passe às pessoas sadias – através de várias medidas sanitárias e de higiene.

Em certos casos, pode-se também produzir vacinas, que protegem as pessoas, mesmo se ficarem em contato com doentes. Por fim, em muitos outros casos, podem ser desenvolvidos remédios (como os antibióticos) que combatem esses microorganismos quando eles já se estabeleceram em um organismo, de tal forma a destrui-los.

O conhecimento de que muitas doenças são produzidas por microorganismos é, hoje, uma coisa banal. No entanto, esse é um conhecimento médico relativamente recente – com pouco mais de um século de idade.

Foi apenas durante a segunda metade do século XIX que se estabeleceu a teoria microbiana das doenças. Durante centenas de anos, os médicos ignoraram a causa das enfermidades transmissíveis, que eram explicadas de modos que atualmente nos parecem absurdos. Os modos de prevenção e cura dessas doenças eram também, obviamente, muito diferentes dos de hoje.

Como se chegou a esse conhecimento atual? Por que fases passou a Medicina, em sua tentativa de compreender as epidemias e o contágio? Como surgiram as vacinas?

Esses são alguns dos pontos que serão tratados nas páginas seguintes.

Este livro não irá abranger todos os aspectos da história da Medicina. Isso exigiria uma obra muitas vezes maior do que esta. Mesmo o assunto aqui tratado – as doenças transmissíveis e sua prevenção – é excessivamente amplo para ser estudado em detalhe em um trabalho como este. Será necessário deixar de lado vários aspectos, focalizando apenas alguns episódios mais importantes.

Iremos percorrer uma longa história, de mais de dois mil anos, para descobrir como diversos povos, em diferentes épocas, concebiam o processo de contágio. Ao longo dessa história, veremos uma grande mistura de superstições, de experimentos, de teorias diversas, e a luta contínua da humanidade contra doenças terríveis.

Por meio do estudo dessa história, será possível compreender como se desenvolve a evolução do pensamento humano, através de uma série de palpites, tentativas, erros e acertos. Veremos como algumas “certezas” causaram a morte e o sofrimento de milhões de pessoas. Por fim, estudando o surgimento da moderna teoria microbiana, veremos como foi gradualmente introduzido um maior rigor na pesquisa médica, resultado em importantes avanços. Pelo conhecimento desse caminho histórico, será possível perceber a enorme importância das medidas sanitárias e de higiene, capazes de evitar horríveis doenças – medidas simples mas que, infelizmente, continuam a ser ignoradas ou deixadas de lado, até hoje, no Brasil e em outros lugares.

CAPÍTULO 1 – AS GRANDES PESTES

A MORTE RONDA

O que é uma grande epidemia? Que efeitos podem produzir as enfermidades transmissíveis, quando atingem muitas pessoas? Quem nunca viveu pessoalmente a experiência dessas doenças, nem pode avaliar o que elas significam. Por isso, é conveniente começar com a descrição de um caso histórico importante.

Daniel Defoe foi um importante escritor que viveu nos séculos XVII e XVIII. É o autor de um livro de aventuras bem conhecido: Robinson Crusoe. Ele escreveu em 1722 um outro livro menos famoso, o “Diário do ano da peste”, em que descreve uma grave epidemia ocorrida em Londres, em 1665.

De tempos em tempos – como depois veremos – a Europa era varrida por grandes pestes, que matavam milhões de pessoas. Em 1663, uma dessas epidemias, originada na Itália ou vinda do oriente, atingiu a Holanda.

Não existiam televisores, nem rádios, nem mesmo jornais para transmitir notícias. No entanto, através de cartas e pelos comentários de pessoa para pessoa, ficavase sabendo rapidamente o que acontecia.

Nos outros países próximos, temia-se que a doença também surgisse.

Em 1664, o aparecimento de um cometa nos céus levou a muitas predições pessimistas. Segundo Defoe, os astrólogos de Londres anunciaram que a peste logo iria atingir a cidade. O pavor tomou muitas pessoas.

Os mais impressionáveis começaram a ter sonhos em que viam um grande número de mortos. Pessoas alucinadas corriam pelas ruas, gritando e profetizando desgraças. Londres se encheu de magos, adivinhos, astrólogos, curandeiros e diversos tipos de charlatães, que davam conselhos, previam os acontecimentos futuros, indicavam antídotos infalíveis contra qualquer tipo de doença, vendiam talismãs mágicos para proteger da peste e, de muitas formas, lucravam com o temor do povo.

Nada aconteceu, no entanto, até o final de 1664. No fim de novembro ou início de dezembro, dois estrangeiros morreram, nos arredores de Londres, com os sintomas da peste bubônica.

Como eram dois casos isolados, isso não produziu muita preocupação. Mas poucas semanas depois, uma outra pessoa morreu, na mesma casa onde esses dois primeiros haviam falecido, também com sinais da peste.

Evitava-se falar sobre o assunto.

Nas duas regiões próximas, Saint Giles e Saint Andrews, a mortalidade normal era de 12 a 19 pessoas por semana. Logo, os números se elevaram um pouco, ultrapassando 20 por semana, no início de 1665.

O número total de enterros em Londres, que era de 240 a 300 por semana, subiu a mais de 400, em janeiro. Mas as mortes não eram ainda atribuídas à peste.

Um ou outro caso tinha sinais semelhantes ao dessa enfermidade; mas a maioria das mortes era atribuída a causas comuns.

Durante algumas semanas, há um frio rigoroso (é época de inverno, no hemisfério norte) e as mortes diminuem. Mas no fim de abril e início de maio surgem mais casos indubitáveis de peste, em Saint Giles e outros locais. No final de maio, as autoridades reconhecem que já morreram algumas dezenas de pessoas dessa doença.

O que era essa enfermidade?

Era algo que já se conhecia muito bem, na Europa, embora não tivesse atingido Londres antes. Produzia grandes inchações, onde se formava pus, em certas partes do corpo – principalmente nas axilas e virilhas – que eram chamadas de “bubões”, vindo daí o nome da doença (peste bubônica). Quem adoecia, em geral, morria, depois de poucos dias, com grandes dores.

Mas como se adquiria a enfermidade? Era evidente que alguma coisa passava dos doentes para as pessoas sadias, pois a doença ia se espalhando aos poucos de uma região para outra próxima, atacando principalmente quem morava com os doentes, próximo deles ou tinha contato com eles.

Defoe assim explicava a transmissão:

“Parece-me fora de dúvida que esta calamidade se espalha pelo contágio; quer dizer, por certos vapores ou fumaças, que os médicos chamam de eflúvios; pela respiração ou transpiração; pelas exalações das feridas dos doentes; ou por outras vias, talvez fora do alcance dos próprios médicos. Esses eflúvios afetam os homens sãos que se aproximam a uma certa distância dos doentes, e penetram imediatamente em suas partes vitais, colocando seu sangue subitamente em fermentação e agitando os seus espíritos (…).”

UMA CIDADE EM FUGA

Como se vê, havia muitas hipóteses sobre o modo de transmissão da enfermidade, mas não se sabia nada com certeza. Os bubões dos doentes exalavam um cheiro fétido, e muitos pensavam que era através desses odores que a doença passava de uma pessoa para outra.

No início de junho, a doença aumenta assustadoramente em Londres. Apenas em Saint Giles, morrem 100 pessoas em uma única semana. Nos bairros próximos, a mortalidade também é elevada, mas muitas pessoas escondem a causa real.

 

As pessoas ricas começam a fugir da cidade, para não serem atingidas pela doença. Vão para outras cidades ou para o campo, levando objetos de valor, roupas, móveis, acompanhados de seus criados. As ruas da cidade se enchem de carroças e cavalos que transportam pessoas e seus bens para longe da peste. Muitas pessoas que não dispunham de cavalos fugiam a pé, levando tendas para acampar fora da cidade. Da população total, que era de 400.000 habitantes, cerca de 100.000 deixam Londres.

No fim de junho, morrem 700 pessoas por semana, da peste. Na primeira semana de julho, o número chega a mais de 1.200. Na semana seguinte, 1.700 mortos.

O pânico se espalha, diante da catástrofe que se acelera. Ouvem-se gritos, choros e lamentações vindos de muitas casas. Com medo do contágio, as pessoas que permanecem em Londres evitam sair à rua. Quando precisam sair de suas residências, caminham pelo meio das ruas, longe das casas, por medo de encontrar algum doente ou para evitar receber os odores e emanações das moradias infectadas.

Não era possível saber quem estava livre da enfermidade. Algumas vezes, pessoas que aparentemente estavam normais caíam na rua e morriam. Lá ficavam, caidas no chão, até que seus corpos fossem recolhidos, à noite.

As autoridades começam a tomar algumas medidas. O rei ordena que os professores de medicina se reúnam e divulguem ao público quais os melhores remédios contra a doença, distribuindo-os gratuitamente à população. Recomendavam-se perfumes e substâncias aromáticas para impedir que a peste penetrasse nas casas. Mas nenhum remédio era realmente capaz de impedir ou de curar a enfermidade e os médicos morriam tanto quanto seus pacientes.

Os magistrados tomam medidas graves: toda casa em que surgir algum caso de peste, deve ser trancada, com todos os seus moradores, e dois guardas devem se revezar à porta, para que ninguém entre ou saia – exceto os cadáveres dos mortos – para que a doença não se espalhe. Apenas depois de 28 dias da morte de um morador os demais são liberados, se não mostrarem sinais da doença. Durante todo o tempo, essas casas ficam marcadas na porta, com uma grande cruz vermelha e a inscrição: “Senhor, tende piedade de nós”.

Qual a causa da peste? Ninguém sabia. Teria sido o cometa? Teria sido a cólera de Deus, que estava castigando os pecadores? Muitos achavam que eram as duas coisas: Deus havia resolvido castigar as pessoas e havia enviado, como mensageiro, o cometa fatídico. Em meio à peste, o pavor fazia com que muitas pessoas confessassem publicamente seus pecados, no meio da rua, a altos brados, com a esperança de serem perdoados por Deus e escaparem da doença.

Assim se tornaram conhecidos muitos crimes, roubos, adultérios… Mas muitas vezes o pecador confesso e aqueles que ouviram sua confissão morreram, pois a enfermidade não tinha critérios morais para fazer as suas escolhas.

O número de mortos tornou necessário simplificar os enterros. As autoridades proibiram que fossem feitas cerimônias públicas, cortejos e acompanhamentos. Os enterros deviam ser rápidos, imediatos, para que não se espalhasse a doença.

Todas as reuniões e diversões públicas – até mesmo os combates de ursos, que eram populares na época – são proibidas, para evitar o contato entre as pessoas. As autoridades mandam varrer as ruas e retirar todo tipo de detrito. São tomados cuidados especiais de vigilância dos alimentos, para que não se vendam carnes e outros produtos podres. Enfim, várias medidas de bom senso, embora não se soubesse exatamente o que causava a doença ou como ela se espalhava.

Evitava-se encostar em objetos que tivessem sido tocados pelos doentes. Como qualquer pessoa podia estar com a peste, os comerciantes já não pegavam no dinheiro: os compradores deviam pagar suas compras com moedas no valor exato da venda, e colocar seu dinheiro dentro de vasilhas com vinagre, para purificá-lo. Só depois de algum tempo os comerciantes recolhiam esse dinheiro.

Imaginando que os animais também poderiam carregar a doença de um lado para o outro, são proibidos os porcos, cães, gatos, coelhos, pombos e outros animais domésticos em Londres. Calcula-se que foram mortos 40.000 cães e cerca de 200.000 gatos na cidade, nessa época. Também se tentou exterminar os ratos, com veneno, matando-se uma grande quantidade deles.

Atualmente, sabemos que a peste bubônica é transmitida pelas pulgas dos ratos da cidade. Ela não passa diretamente de uma pessoa para outra pela respiração, nem pelo contato físico. Assim, os cuidados que eram tomados não ajudavam a impedir que a peste se espalhasse.

O número de mortos aumentava cada vez mais. Em agosto, passam de mil mortos por dia. Já não é possível mais fazer caixões, nem mesmo covas individuais para os mortos. À noite e durante toda a madrugada, passam pelas ruas de Londres, constantemente, as carroças de coleta de cadáveres, com seus condutores gritando: “Tragam os seus mortos! Tragam os seus mortos!” Os corpos são empilhados nas carroças, vestidos ou despidos, carregados até o cemitério, onde são despejados em grandes valas.

O clima de horror era indescritível. Acostumando-se à morte, as pessoas já não lamentavam e choravam mais seus parentes. Os doentes eram abandonados. A morte parecia inevitável para todos.

No final de agosto e início de setembro, as estatísticas oficiais indicaram 7.000 a 8.000 mortos por semana. Os números verdadeiros podem ter sido duas ou três vezes maiores, pois os dados oficiais talvez fossem forjados – para não assustar demais a população.

A partir de outubro, as mortes diminuem. Em novembro, o número cai a apenas 900 falecimentos por semana e embora a peste não tivesse desaparecidos, todos sentem que a enfermidade está sumindo. Os habitantes que haviam fugido começam a retornar.

Durante o ano de 1665, a peste matou cerca de 100.000 habitantes de Londres, de uma população total de 400.000. Famílias inteiras pereceram. A doença desapareceu como havia aparecido: sem que ninguém a entendesse, sem que ninguém soubesse como se prevenir ou curar a peste. Uma enorme tragédia, diante da qual todos estavam impotentes.

Nenhum de nós conheceu pessoalmente uma situação semelhante a essa – e esperamos nunca presenciá-la. Muitos devem pensar que tudo isso é coisa de um passado distante, que jamais se repetirá. Será verdade?

No início do século XX, apesar de todo o conhecimento que já se tinha, uma epidemia mundial de gripe matou milhões de pessoas. Em pleno final do século XX, doenças que já pareciam coisa do passado – como cólera e dengue – reaparecem e causam a morte de muitas pessoas no Brasil.

A medicina evoluiu muito e sabemos como controlar um grande número de doenças. Mas o controle exige dinheiro e decisões políticas que nem sempre são tomadas. Por outro lado, existem enfermidades que ainda estão fora do controle da medicina, como a aids. Para que não se repitam episódios como o da peste de Londres de 1665, é necessário que todos saibam o significado das grandes epidemias e conheçam os meios de evitá-las. É para proporcionar essa base científica que este livro foi escrito.

CAPÍTULO 2 – MEDICINA MÁGICA E RELIGIOSA

MAGIA E CONTÁGIO

A idéia moderna de contágio tem raízes muito antigas, no pensamento primitivo. Ela surgiu do pensamento mágico, pré-científico, que sobrevive em muitos povos, como os índios.

Não se pode saber ao certo como eram as concepções sobre enfermidades e medicina no período pré-histórico (antes da existência da escrita). Parecem sempre ter existido doenças, pois os fósseis de animais e homens pré-históricos mostram claros sinais de doenças que conhecemos. Por isso, é natural pensar-se que sempre houve uma preocupação com elas, que deve ter gerado hipóteses sobre suas causas.

Procura-se em geral “adivinhar” como eram essas concepções mais antigas estudando-se os chamados povos “selvagens” ou “primitivos” atuais (indígenas e aborígenes, que não possuem sistema de escrita).

É claro que as idéias de um índio brasileiro atual (mesmo supondo que ele não foi aculturado) não devem ser iguais às de seus ancestrais de 5.000 anos atrás. No entanto, foram encontradas certas idéias muito comuns na maior parte dos povos “primitivos”, e pode-se supor que elas tenham existido desde os tempos pré-históricos.

Embora o conceito científico de contágio seja moderno, a sua idéia geral é antiga e primitiva. “Contágio” significa a passagem de alguma coisa de uma pessoa (ou de um animal, objeto, etc.) para outra, pelo contato físico . Antes de se tornar um conceito médico, essa idéia surgiu como um conceito mágico.

Uma concepção extremamente difundida por toda a humanidade, desde tempos remotos, é a de que se estabelece uma ligação ou vínculo com aquilo que tocamos. Em diversas práticas de magia, para se enfeitiçar uma pessoa e obter o seu amor, era necessário tocá-la com o dedo, ou obter algum objeto que tivesse sido tocado ou usado pela pessoa, pois assim se podia criar uma ligação com ela.

Da mesma forma, na feitiçaria, para se influenciar uma pessoa, fabrica-se um boneco no qual se coloca alguma coisa dessa pessoa (cabelos, unhas, pedaço de tecido, etc.). Supõe-se que, assim, o boneco se torna ligado à pessoa e aquilo que se fizer com ele (por exemplo, espetando com alfinetes) irá repercutir também na pessoa (que ficará doente ou morrerá).

O contato direto entre um bruxo e uma pessoa era considerado o mais perigoso: acreditava-se que encostando um dedo ou mesmo pisando na sombra de uma pessoa, o mago poderia passar-lhe doenças, tirar sua vitalidade (roubar sua alma), etc.

Todas essas idéias fazem com que surja um temor de tocar ou se aproximar de qualquer coisa considerada negativa, por medo de se ligar a ela e receber algum tipo de “contágio” maligno. Assim, o contágio, fosse intencional (por um mago ou feiticeira), fosse ocasional (por contato com algum doente ou com um objeto maligno) era visto como uma importante causa de doenças.

Os mortos, por exemplo, eram vistos como algo perigoso. Isso era reconhecido tanto no caso de morte natural, como, principalmente, no caso de mortes por causas estranhas, desconhecidas. Evitava-se tocar neles, ou mesmo em seus objetos. Eram realizados vários rituais que procuravam quebrar a ligação entre os vivos e os mortos. Muitas vezes, a cabana e os objetos do morto eram queimados, para que não pudessem contagiar outras pessoas.

Não eram apenas influências negativas que se supunha serem transmitidas por contágio. As influências positivas de um objeto sagrado ou de uma pedra preciosa também poderiam atuar pelo simples toque.

Tocando ou carregando consigo um cristal, a pessoa se unia a esse cristal e adquiria seu poder. Também se acreditava que um sacerdote ou mesmo um rei poderia transmitir um poder positivo, pelo toque.

Sempre que surgia alguma doença “estranha”, que não podia ser curada pelos meios domésticos comuns, supunha-se que a causa era sobrenatural. Supunha-se que ela pudesse ser enviada por demônios, por feiticeiros ou pelos deuses. Em qualquer caso, acreditava-se que essas doenças estavam associadas também a algum tipo de infração cometida pelo doente ou por alguém de sua família.

Essa infração poderia ter sido algum tipo de pecado ou ofensa a um ser sobrenatural, ou algum comportamento errôneo para com outras pessoas – uma transgressão social ou moral.

Para determinar o tipo exato de doença, o curandeiro precisava também atuar como confessor, fazendo com que o doente procurasse se lembrar de todo tipo de falta cometida, que pudesse ter desencadeado a doença como castigo. Também se recorria a práticas de adivinhação com ossos, conchas, etc., para determinar a causa da doença.

Nem todas as doenças eram vistas como causadas por contágio. Havia outras causas – algumas delas sobrenaturais, como a cólera dos deuses e demônios; outras naturais. Doenças como resfriados, reumatismo, etc., eram vistas como ocorrências naturais, que não precisavam de explicação especial. Eram tratadas com remédios domésticos. No entanto, outras doenças eram vistas como algo estranho e misterioso, sendo necessário, nesse caso, recorrer a um sacerdote ou a um feiticeiro.

O que, exatamente, ocorre durante o contágio de uma doença, segundo essas concepções primitivas? Há muitos modos de tentar explicar o que ocorre. Em alguns casos, supunha-se que o contágio introduziu alguma coisa maligna dentro da pessoa – um espírito, um objeto enfeitiçado (como pontas de flecha mágicas), ou algo de outro tipo. Nesses casos, a cura exige que se retire do doente aquilo que penetrou nele.

Os feiticeiros procuram retirar o agente maligno através da transpiração, pela massagem, ou sugando, com a boca ou ventosas, os objetos mágicos do corpo.

Os banhos purificadores também eram recomendados em muitos casos. Podem também ser utilizadas substâncias que produzam vômito, purgantes, ou mesmo extrair as substâncias malignas através de sangria.

Em casos especiais, é necessário abrir o crânio do doente, para que possam sair pelo orifício as causas que produzem fortes dores de cabeça. Quando a doença é produzida pela entrada de um espírito maligno, ele deve ser afastado por preces mágicas, pelo barulho (tocando tambores) ou mesmo batendo no corpo do doente. Em outros casos, supõe-se que o contágio, ao invés de introduzir algo, retirou alguma coisa da pessoa – sua vitalidade ou sua alma. Nesse caso, o curandeiro deve procurar localizar a alma do doente, que pode ter sido roubada e guardada por um feiticeiro dentro de uma cumbuca, ou pode ter sido levada para o mundo dos espíritos, por algum demônio.

De um modo geral, os curandeiros tinham sucesso e curavam seus doentes. Pode-se entender a eficácia de seus tratamentos a partir de conhecimentos modernos, pois eles utilizavam muitos medicamentos de grande poder, além de práticas importantes como a dieta. Por outro lado, é inegável o efeito real produzido pela sugestão sobre os doentes, e todo o tratamento mágico tendia a fortalecer a vontade e a certeza de se curar do doente. O próprio processo de confissão, que precedia o ritual de cura, pode ser considerado como benéfico, por aliviar eventuais culpas do doente e colocá-lo em harmonia psicológica com seu meio social.

Muitas dessas concepções “primitivas” sobrevivem até hoje, em meio às sociedades mais cultas. Na tradição judaico-cristã, sobreviveu até hoje a idéia de que as doenças podem ser castigos divinos pelos pecados cometidos pelo doente. Nas religiões afro-brasileiras, a presença constante da feitiçaria e de práticas mágicas de cura é conhecida por todos. Ao longo de toda a história da humanidade, como veremos, essas e outras concepções “primitivas” sempre estiveram presentes.

Os povos mais antigos cujas idéias médicas são conhecidas, são os assírios e babilônios. Essas civilizações se desenvolveram na Mesopotâmia – o local onde, atualmente, existe o Iraque.

São conhecidos textos desses povos, escritos em tabletes de argila há mais de 4.000 anos. Através desses textos, pode-se ter uma idéia sobre suas concepções médicas.

Sob todos os aspectos, as antigas sociedades da Mesopotâmia eram dirigidas pela religião. O poder do rei vinha dos deuses e todas as leis sociais eram de origem divina. Da mesma forma, supunha-se que o deus era o verdadeiro mestre de tudo; ele atingia com a doença a quem quisesse atingir.

Se o homem esquece o fim de sua criação, rejeita as leis que os deuses lhe impuseram, ele está em estado de pecado. O deus se irrita e ocorrem calamidades. A mais comum é a doença.

Todos os deuses podem produzir e curar doenças. No entanto, são mais comumente invocados para curas, os deuses: Sin, Shamash, Damu (ou Tammuz), e Marduk.

A deusa da medicina, em especial, era Gula, também chamada Baba ou Ninkar-rak. Ela era denominada “A senhora que dá a vida aos moribundos, e os torna sadios pelo contato de sua mão pura.”

“Deusa mãe dos homens, Baba, que lanças o encantamento da vida contra a agitação do coração, tu que cicatrizas as carnes dissociadas; ó mãe das criaturas vivas: afasta o mal da cabeça, o mal dos dentes, o mal do coração, o tenesmo, o mal do solhos, a fraqueza, a paralisia das articulações, toda doença maligna.”

Como a doença era produzida pelos deuses, o único recurso contra qualquer enfermidade era apaziguá-los. Evidentemente, o médico pertencia à classe dos sacerdotes, pois sem o conhecimento religioso nada era possível. O médico-sacerdote apenas tem poder por causa dos deuses que invoca:

“Eu sou o homem de Ea, eu sou o homem de Damkina, eu sou o enviado de Mar-duk; para dar a saúde ao homem doente, o grande senhor Ea me enviou.

Eu sou o sacerdote conjurador de Ea; eu sou o mago de Eridu, sou eu quem recita o encantamento para o doente.

Adiciona tua palavra pura à minha; adiciona tua voz pura à minha; torna eficaz minha pura conjuração. Carrega de poder de curar a palavra de minha boca.

Ao realizar as curas, o sacerdote associava a doença ao pecado ou à magia:

Que tu possas ser livrado de teu pecado, de teu encantamento, de tua falta, de teu ato errado, da maldição que pesa sobre ti, de tua doença, de teu sortilégio, de teu encantamento, de teu malefício, das maquinações malignas dos homens.”

Para poder se curar, o doente deveria primeiramente tentar descobrir qual o pecado que ocasionou a doença, pois só então poderia saber a qual deus dirigir suas preces e oferendas. Às vezes, a própria pessoa sabia qual foi sua falha; outras vezes, não: “O pecado que cometi, eu não o conheço; a falta que cometi, eu não a conheço.”

Pelo estudo dos sintomas da doença, era possível, muitas vezes, descobrir qual o deus que a havia produzido:

Quando um homem é atingido no pescoço, é a mão de Adad; quando é atingido no pescoço e seu peito está dolorido, é a mão de Ishtar, a dos colares.

Quando um homem sofre das têmporas e os músculos do pescoço estão doloridos, é a mão de um demônio.

O sacerdote faz com que o doente recite uma lista de pecados que pode ter cometido, como um tipo de confissão.

A causa da doença pode ser uma ofensa ao deus, mas pode ser também algum tipo de ato que produziu uma impureza:

Enquanto caminhava ao longo das ruas, e dos caminhos,
ele pisou sobre uma libação que havia sido derrubada,
ou colocou o pé sobre a água suja,
ou atirou os olhos sobre a água de lavar as mãos,
ou tocou uma mulher que tinha as mãos sujas,
ou olhou para uma jovem que não tinha lavado as mãos,
ou sua mão tocou uma mulher enfeitiçada,
ou tocou um homem que não tinha lavado as mãos,
ou viu alguém que não tinha as mãos lavadas,
ou sua mão tocou alguém cujo corpo estava sujo.

Aqui, nota-se que há um conceito de contágio mágico, já que ao tocar ou mesmo olhar para algo impuro, a pessoa também se torna impura.

Outras possíveis causas de doença são crimes ou infrações morais, sociais e políticas, como roubar, incitar brigas, mentir, etc. Violar leis religiosas, deixar de fazer oferendas aos deuses e de invocar a deusa antes das refeições, bem como jurar em falso pelo nome do deus, eram causas certas de doença.

Além de enviar doenças por sua vontade própria, os deuses podiam ser convocados para atacar os inimigos, através de preces e maldições como esta:

Que Sin lhe dê a hidropisia; que cubra seu corpo de lepra, como uma roupa; que Gula coloque em seu corpo um veneno que não saia; que os deuses lhe destinem a sorte de não ver, obturem suas orelhas e tornem sua boca muda.

Uma famosa maldição desse tipo foi lançada por Hamurabi, o célebre legislador, sobre quem ousasse modificar seu Código:

Que Ninkarrak caia sobre ele, até que ela tome sua vida, [lhe produza] uma do-ença grave, uma peste maligna, uma ferida perigosa que não possa ser curada, da qual o médico ignore a natureza, que não se possa acalmar com um curativo.

Em outros casos, não é o deus ou deusa que atinge o homem: eles o abandonam, deixam de protegê-lo, e ele é atingido pelos maus espíritos, demônios, etc.

“Aquele que não tem um deus, quando caminha pela rua, o mal da cabeça o cobre como uma roupagem. Aquele que não tem deusa guardiã, o mal da cabeça tortura seu corpo.”

Os feiticeiros podem, através de encantamentos, lançar o demônio de uma doença contra o corpo humano. Os demônios entram no corpo do homem e o torturam. Há imagens desses demônios: caricaturas humanas e de animais, com grandes dentes. Entre os demônios mais conhecidos, há o Pazuzu, do qual o Museu do Louvre possui uma reprodução em bronze; possui asas, que representam sua mobilidade (pág 10). Estava associado ao vento do sudoeste. Nas costas, tem o texto: “Eu sou Pazuzu, filho de Hanpa, rei dos maus espíritos do ar, que sai das montanhas, violentamente, produzindo a dor”.

Outro demônio, feminino, era Lamashtu, que atacava crianças e mulheres grávidas. Tem cabeça de leão, pés de ave de rapina, corpo de mulher. Possui duas serpentes, aleita ao mesmo tempo um cão e um pequeno porco que pendem de seus seios.

A terapia era coerente com a causa atribuída às doenças. O tratamento exigia que o deus irritado fosse acalmado, obtendo-se seu perdão pela prece, sacrifício e oferendas. Dependendo do caso, era necessário expulsar o demônio que tomou o corpo do doente, através de um exorcismo.

Algumas das oferendas destinadas aos deuses eram alimentos como pão, bebidas, aves, carnes, leite, mel. O sacrifício podia ser uma substituição do doente por um animal, que é entregue ao deus, em sacrifício.

Um cordeiro macho, fêmea, vivo, morto, que ele morra, que eu viva!

Darás um porco como teu substituto. Dai sua carne por tua carne, seu sangue por teu sangue; que ele [o deus] possa aceitá-lo; o coração que colocaste sobre teu coração, dai-o pelo teu coração; que ele possa aceitá-lo.

Para expulsar os demônios, além de orações, eram utilizados remédios especiais: substâncias que desagradem esses demônios, para que eles saiam do corpo do doente. Por isso, muitos remédios eram terríveis e repugnantes. Utilizavam cataplasmas de plantas podres; a fumaça mau-cheirosa de penas ou lãs queimadas; medicamentos amargos; remédios feitos de excrementos humanos ou de animais.

O melhor modo de evitar doenças, evidentemente, é permanecer reconciliado com o deus, além de utilizar amuletos ou talimãs, para afastar os demônios ou encantamentos mágicos.

Continham a figura do demônio e a oração apropriada. Alguns eram carregados pela pessoa, presos a um colar. Outros, eram mantidos em casa. Havia também pedras e plantas que podiam afastar os maus espíritos.

Mesmo quando a causa da doença é natural e conhecida, o tratamento inclui orações. Quando, por exemplo, uma pessoa é picada por um escorpião, o sacerdote deve orar ao veneno e invocar a sua saída do corpo:

Veneno, veneno, veneno, veneno do escorpião (…). Tu atinges com o teu dardo, tu atinges com a tua cauda.

Tu arrancaste o homem do abraço de sua jovem mulher; tu arrancaste a jovem mulher do abraço do homem. Veneno (…); como o leite dos seios, como o suor das axilas, como o pus de um abcesso no olho, como a urina de entre as coxas, escorra, veneno! Como o leite dos seios do peito de uma mulher, como o fluido da narina ou da orelha! Por que, veneno, atormentas o homem e a jovem mulher?

Assim como o odor não permanece sobre os dentes, que o veneno não permaneça no corpo do homem e da jovem mulher. O encantamento Ul-iattunu, o encantamento de Ea, de Marduk, o encantamento de Marduk o pai das conjurações dos deuses, aquele [encantamento] que eles instituiram, eu o repeti. É o encantamento do E-nu-ru. É o encantamento contra o veneno.

Depois das orações, eram passadas na pessoa vários ungüentos contra o veneno. Mas a oração era essencial, pois sem ela nenhum remédio poderia produzir efeito.

Embora fosse tipicamente religiosa, a medicina da Mesopotâmia admitia causas naturais para várias doenças, porexemplo, se um homem tem dores no coração, se seu estômago está em fogo, se seu peito está como se estivesse rasgado, esse homem sofre do calor do dia. Pilar juntos o heléboro, tremoço, calêndula, crisântemo, resina de andropogom, maná, lolium e rícino. Ele beberá em jejum, na cerveja, e ficará curado.

Há também muitos textos mesopotâmicos que descrevem sintomas e dão nomes às doenças mais comuns. Há cerca de 250 plantas das quais eram extraídos medicamentos, que em geral eram usados misturados com cerveja ou vinho de palmeira. Muitos desses medicamentos eram, certamente, eficazes.

A idéia de uma medicina quase totalmente religiosa pode parecer absurda, a uma mente científica moderna. Mas deve-se notar que essa medicina não era irracional. Afinal de contas, o tratamento e a prevenção das doenças era totalmente coerente com a causa das mesmas. Há, portanto, um certo tipo de racionalidade na medicina religiosa.

Irracional seria, pelo contrário, acreditar que as doenças eram produzidas por deuses e demônios e utilizar simples remédios naturais contra elas; ou acreditar que as doenças eram naturais e utilizar orações contra as mesmas. Nesses casos, o tratamento seria incoerente com a causa da doença e poderia ser considerado irracional.

MEDICINA RELIGIOSA INDIANA

Em outras civilizações antigas, das quais foram preservados muitos textos religiosos, também se notam concepções semelhantes às da Mesopotâmia. Na Índia, cerca de 1.000 anos antes da era cristã, foram compostos os livros que se chamam “Vedas”. Em um deles – o Atharva-Veda – encontram-se muitas orações contra feiticeiros, pois eles eram responsáveis por grande número de males e doenças. Este, por exemplo, era um hino dirigido ao deus do fogo, Agni, para identificar e punir os feiticeiros:

Este sacrifício trará os feiticeiros, como uma correnteza traz a espuma. Seja quem for, homem ou mulher, que tiver feito isso, que essa pessoa fale.

Este homem veio e confessou tudo. Recebei-o depressa, ó Brihaspati, tomai-o sob vosso controle. Ó Agni e Soma, perfurai-o.

Ó bebedor de Soma [Indra], matai os descendentes do feiticeiro e conduzi-o aqui. Fazei com que ele fale e que seus olhos – tanto o direito quanto o esquerdo – caiam de sua cabeça.

Ó Agni, vós que sempre sabeis o nascimento deles, dos devoradores que se escondem; ó sábio, ó Agni, fortalecendo-vos pela oração, matai-os, perfurando-os cem vezes.

Assim como na Mesopotâmia, observamos na Índia a existência de orações aos deuses para curarem doenças, para protegerem dos demônios e dos feiticeiros, etc. Não é necessário mostrar, aqui, exemplos de todos esses tipos de orações. No entanto, é interessante indicar outros aspectos da antiga medicina indiana, relacionados com o tema deste livro, e que diferem da medicina mesopotâmica.

Um dos aspectos interessantes é a associação entre muitas doenças e vermes visíveis e invisíveis.

As verminoses intestinais sempre foram bem conhecidas e muitos povos nem lhes davam importância, por serem coisas comuns e aparentemente pouco perigosas. No entanto, partindo do conhecimento de que o corpo humano pode abrigar vermes, os indianos generalizaram essa idéia e passaram a imaginar também “vermes invisíveis” que poderiam habitar o corpo e produzir doenças.

A oração védica seguinte, muito antiga, invoca o deus Indra contra todos os tipos de vermes:

Com a grande mó de Indra, que esmaga todos os tipos de vermes, eu amasso em pedaços os vermes, como os grãos em uma mó.

Eu esmaguei os visíveis e os invisíveis, e também o kurúru; espedaçamos os alandus e todos os chalunas com nosso encantamento.

Eu atingi os alandus com uma arma poderosa. Queimados ou não, eles perderam seu vigor. Os que permanecem e os que não permanecem foram subjugados por meu encantamento.

Que não permaneça nenhum verme intacto.

O verme que vive nas entranhas, que vive na cabeça, nas costelas, o avaskava e o perfurador – eu os despedaço com minha magia.

Os vermes que estão nas montanhas, nas florestas, nas ervas, no gado, nas águas, que entraram em nós – eu destruo toda essa geração de vermes.

Na Mesopotâmia, também se acreditava que certos vermes podiam causar, por exemplo, a dor de dentes. Mas não se dava a mesma importância aos vermes que foi atribuída pelos indianos.

A idéia de que os vermes podem produzir muitas doenças e se localizar em diferentes partes do corpo não é muito diferente da idéia de que as doenças podem ser produzidas pela invasão do corpo por demônios.

Em certas orações, fala-se sobre “inimigos invisíveis”, que produzem doenças, e que podem ser demônios ou outro tipo de agente:

O Sol se ergueu no céu, matando os demônios. Ele, o celeste, do alto das montanhas, vendo tudo, destruiu aquilo que não vemos.

O gado se recolheu ao estábulo, os animais bravios foram repousar; as ondulações das correntezas passaram e desapareceram.

Eu trouxe a famosa planta de Kanva, a que dá a vida, que cura tudo. Que ela possa destruir os inimigos ocultos neste homem.

Há muitos textos indianos em que as idéias de seres sobrenaturais e causas naturais das doenças parecem se confundir. Existem orações destinadas a expulsar o “yakshma” do corpo dos doentes; esse “yakshma” é alguma coisa que produz a tuberculose e outras doenças, e não se torna claro se é um ente sobrenatural, como os demônios, ou natural, como os vermes:

Eu arranco o yakshma de teus olhos, de tuas narinas, de teus ouvidos, queixo, de teu cérebro e de tua língua; eu arranco o yakshma que está em tua cabeça.

Do pescoço e dos ombros, da espinha e das vértebras, dos braços e das espáduas – eu arranco o yakshma que está em teus braços.

De teu coração e de teus pulmões, da vesícula, dos dois lados, dos rins, do fígado e do baço, nós expulsamos o yakshma.

Das entranhas e dos intestinos, do reto, do ventre, das ancas e do umbigo, eu arranco o yakshma.

De tuas coxas, dos joelhos, dos calcanhares, dos pés, de tuas pernas eu expulso o yakshma.

De teus ossos, do tutano, de teus tendões e veias, das mãos, unhas e dedos, eu expulso o yakshma.

Aquele que está em cada membro, cada cabelo, cada junta, o yakshma que está em tua pele, nós, com o encantamento de Kashyapa, expulsamos para longe.

O yakshma parece ser alguma coisa viva, que penetra no corpo e que pode ser tirado dele, por encantamentos. O uso de magia contra o yakshma não quer dizer que ele seja algo sobrenatural: também eram feitos encantamentos para afastar as serpentes ou as formigas indesejáveis de um lugar. Além disso, o yakshma podia também ser mantido à distância por meios naturais: por remédios e pela fumaça de plantas aromáticas.

Aquele que é atingido pelo delicioso aroma do guggulu curador nunca é atingido pela maldição ou pelo yakshma. Os yakshmas fogem dele, como os antílopes fogem de uma fera selvagem.

Se tu vens do rio ou do oceano, ó guggulu, eu tomo o nome de ambos, para que este homem fique protegido.

A idéia de que a fumaça de substâncias aromáticas (como incenso) pode afastar as causas das doenças aparece também em outros povos antigos. Como vamos ver, é uma concepção que teve longa vida, sendo de enorme importância na medicina européia até o século XVIII.

Vê-se, através desses exemplos, como a concepção da invasão do corpo por entidades vivas, invisíveis, capazes de produzir doenças, é antiga. De certa forma, é na medicina religiosa que estão as raízes da moderna teoria microbiana das doenças.

OS INDIANOS E AS IMPUREZAS

Nas civilizações em que a medicina tinha caráter religioso, um conceito extremamente importante era o de “impureza”. Aquele que cometia uma falta religiosa se tornava impuro e sujeito a doenças. Essa “impureza” podia estar associada àquilo que podemos considerar como um pecado – uma falta moral, uma ofensa à divindade; mas tinha um significado mais amplo, como vamos ver.

Para se livrar da impureza, a pessoa precisava realizar um ritual purificador, que muitas vezes incluia o banho. Dessa forma, o asseio corporal estava fortemente associado à idéia de pureza religiosa.

A idéia de purificações rituais pela água aparece muito fortemente na tradição indiana. Os portugueses – e, depois, os ingleses – que invadiram a Índia no fim do século XV, ficavam espantados ao ver que os indianos se lavavam e tomavam banhos inúmeras vezes. Os europeus dessa época, pelo contário, raramente se lavavam e, por isso, o banho lhes parecia algo supersticioso e até demoníaco.

O padre português Gonçalo Trancoso, em 1616, fez um relatório detalhado sobre os costumes religiosos dos indianos. Baseando-se tanto em textos antigos como na tradição que era conservada na época, o padre Trancoso informa que as purificações dos indianos começavam antes do nascer do Sol. Todos os indianos da casta sacerdotal (brâmanes) deviam levantar-se, e ir para o rio mais próximo, em silêncio absoluto (sem poder conversar), levando 4 panos. Um deles era utilizado como roupa, outro era enrolado na cabeça, como um turbante, e outros dois deixados na margem do rio, para se trocar depois.

Os brâmanes deviam cobrir um local do chão com ervas e evacuar nesse lugar, com o rosto voltado para o norte. Depois, fora do rio, mas próximo dele, deviam esfregar o traseiro com areia ou terra, com a mão esquerda, depois lavar a mão no rio. Isso devia ser repetido pelo menos 5 vezes. Depois, deviam se banhar no rio.

Dentro do rio, deveria ser feito um ritual especial de purificação da boca, com água. Os brâmanes casados deviam repetir essa purificação 32 vezes. Por fim, era necessário mascar e esfregar os dentes com um ramo de uma planta. Todas essas purificações eram acompanhadas de orações. Somente após tudo isso os brâmanes podiam realizar qualquer tarefa religiosa – como o ritual diário que deviam fazer quando o Sol nascia. O padre Trancoso explica o significado de todo esse ritual:

Se quereis saber o fruto de se lavar, é que dá limpeza ao corpo e ao entendimento, bota fora os pecados que se cometerem de noite em sonhos e por pensamentos ruins.

Diariamente, os brâmanes casados deviam realizar essa purificação também ao meio-dia. Também se devia fazer essa purificação em momentos especiais, como em rituais associados à lua cheia e lua nova, ou quando houvesse um eclipse.

No entanto, além de ocasiões fixas de purificação, era necessário dar especial atenção a certas situações que podiam produzir impureza. A morte era, especialmente, uma fonte de grande impureza.

Um antigo texto indiano, chamado “Vishnu-Smriti”, descreve em detalhes os tipos de impureza e os rituais purificadores de cada caso.

Segundo o Vishnu-Smriti, um brâmane se tornava impuro pela morte de um parente (até o sétimo grau) ou de seu mestre espiritual. Essa impureza durava dez dias. Se uma mulher da família tivesse um aborto, esse fato também produzia uma impureza, por um número de noites igual ao número de meses desde a concepção do feto.

Em todos esses casos, após decorrido o tempo de impureza, era necessário fazer um ritual especial: mergulhar em um rio, pronunciar o hino sagrado de Aghamarshana três vezes e, depois de sair da água, repetir a oração Gayatri mil e oito vezes.

Carregar o corpo de um defunto, para a cremação, era especialmente perigoso e exigia muitos rituais adicionais.

Mas a impureza de um cadáver era considerada tão grande que podia contagiar mesmo as pessoas próximas. Por isso, a pessoa se tornava impura se seguia um funeral, ou se ficava ao alcance da fumaça da pira crematória. Devia, nesses casos, lavar suas roupas e tomar o banho ritual, para se tornar novamente pura.

A impureza era considerada como algo contagioso: tocar uma pessoa que tocou um cadáver ou tocar uma mulher menstruada acarretava impureza.

A pessoa também adquiria impureza se aceitasse alimentos de alguém impuro, ficando impuro durante tanto tempo quando este.

Se um animal morresse em um poço, ou se este se tornasse impuro em alto grau, recomendava-se tirar toda a água, secar com um pano e acender fogo dentro. Por fim, quando começasse a surgir água no poço novamente, devia-se atirar alimento sagrado (pancagavya) nele. Considerava-se que grandes reservatórios de água (rios, açudes) não se tornam impuros.

Havia outras regras que podemos interpretar como cuidados com a saúde. Uma pessoa era considerada impura se vomitasse ou cuspisse sangue.

Durante o período de impureza, a pessoa não devia cozinhar – era preciso comer alimentos comprados ou oferecidos gratuitamente; devia dormir no chão; não comer carne; e dormir sozinho.

Após o período de impureza, era necessário realizar sempre um ritual purificador, pois a impureza não desaparecia por si mesma.

A duração do período de impureza era variável. Uma mulher menstruada só ficava pura depois de quatro dias. Em outros casos, como espirrar, cuspir, dormir, urinar ou falar com um estrangeiro, bastava uma rápida purificação.

Algumas das regras indianas nos parecem simples regras de asseio, mas tinham conotação religiosa. As várias excreções do corpo eram consideradas impuras: gordura, sêmen, sangue, caspa, urina, fezes, excreção dos ouvidos, unhas cortadas, catarro, lágrimas, suor. As cavidades corporais acima do umbigo (boca, ouvidos, etc.) eram consideradas puras, e as de baixo, impuras.

Dava-se mais importância à limpeza da parte de cima do corpo do que à de baixo. Quando se sujava alguma parte do corpo, abaixo do umbigo, com alguma excreção do corpo, bastava limpar com terra e água.

Quando se sujava acima do umbigo, era necessário, além disso, tomar banho. Se a boca ou os lábios se sujavam, além da limpeza e do banho, devia-se ficar em jejum e beber uma bebida sagrada.

Além das excreções corporais, as bebidas alcoólicas também acarretavam impureza, no mais alto grau. Se um recipiente de ferro ou de argila entrava em contato com essas substâncias, devia ser purificado expondo-o ao fogo.

Pedras preciosas conspurcadas deviam ser enterradas durante 7 dias.

Objetos de osso ou dente (marfim, etc.) deviam ser polidas. Mas os recipientes de madeira impregnados por impurezas deviam simplesmente ser jogados fora, pois não podiam ser purificados. No caso de roupas, se após lavagem uma parte ainda tiver ficado manchada, ela deveria ser cortada. Há também normas gerais, como esta:

Enquanto o cheiro ou umidade causados por uma substância impura permanecem no objeto que foi sujado, deve-se aplicar constantemnte terra e água em todas as purificações de objetos inanimados.

Além de regras que nos parecem de bom senso como as anteriores, há outras mais estranhas. Se, por contato com animais, grãos que já foram cozidos se tornam impuros, deve-se retirar apenas o que foi sujado; depois, deve-se borrifar o restante com água na qual se colocou um pedaço de ouro e sobre a qual foi recitada a oração Gayatri; por fim, deve-se segurar o alimento na frente de um bode e diante do fogo. Então, ele ficará novamente puro.

Por fim, há outras regras que nos parecem simplesmente absurdas, sob o ponto de vista de asseio. De acordo com o Vishnu-Smriti, a boca de um bode ou cavalo é sempre pura, e por isso um objeto não se torna impuro por ser abocanhado por esses animais. A regra não vale, no entanto, para a boca da vaca. São considerados sempre puros: elefante, cavalo, gato, raios de sol, fogo, ar, terra, poeira, gotas de saliva que caem da boca, moscas, excrementos de vaca.

Embora algumas das regras indianas nos pareçam estranhas ou mesmo absurdas, a maior parte delas deve ter sido benéfica à manutenção da saúde, evitando contato com coisas que poderiam produzir doenças. Assim, as regras religiosas sobre pureza foram, na prática, excelentes normas de higiene.

A tradição indiana teve pequena influência no ocidente, exceto de modo indireto – através dos árabes, no final da Idade Média. Há, no entanto, outra tradição antiga que influenciou mais diretamente o pensamento europeu: o pensamento hebraico.

AS IMPUREZAS E AS DOENÇAS NA BÍBLIA

As noções de impureza e de seu contágio estão presentes de modo muito claro na Bíblia. A conexão entre doenças e impureza é também muito clara nessa tradição.

Embora em muitas outras culturas religiosas tenham existido idéias semelhantes às do contágio, é claro que na civilização européia, a partir da Idade Média, a influência religiosa mais importante é a cristã.

No Antigo Testamento da Bíblia, encontramos várias passagens relevantes.

O deus hebraico, como se sabe, era capaz de enviar doenças e epidemias de todos os tipos sobre os que o desobedeciam. No livro do Êxodo, na Bíblia, descreve-se que Moisés pediu ao faraó do Egito, em nome do deus hebraico, que libertasse o seu povo. Como o faraó não o fez, conta a Bíblia que a divindade hebraica teria enviado sucessivas pragas sobre o Egito, incluindo doenças:

O Senhor disse a Moisés:

– Vai encontrar o Faraó, e dize-lhe: Eis o que diz o Senhor, o Deus dos hebreus. Deixai ir meu povo, para que ele me sacrifique. Se vos recusardes ainda, e se vós os retiverdes, estenderei minha mão sobre vossos campos, e os cavalos, asnos, camelos, bois e ovelhas serão atingidos por uma peste muito grave.

Como o Faraó não obedece, Deus manda que Moisés encha as mãos com cinzas e as lance para o céu: “Esse pó espalhar-se-á por todo o Egito. Então se formarão nos homens e nos animais úlceras e tumores, em toda a terra do Egito”.

Por fim, a Bíblia conta que o Faraó acaba por ceder, quando uma peste mata todos os filhos mais velhos de todos os egípcios – incluindo o filho do próprio Faraó.

Em vários pontos da Bíblia, fica claro que o deus hebraico não lança doenças apenas sobre os inimigos dos hebreus, mas também sobre eles próprios, se não obedecerem às suas ordens. O livro do Deuteronômio, por exemplo, tem esta ameaça:

Se não quiserdes escutar a voz do Senhor vosso Deus, e não vos guardardes e não praticardes todos os mandamentos e as cerimônias que eu vos prescrevi hoje, todas estas maldições cairão sobre vós e vos atingirão.

Os castigos indicados são terríveis: pobreza, insucesso em tudo, traição, fome, e muitos tipos de doenças – peste, febre, úlceras, sarna, loucura, cegueira, “e um mal incurável da planta dos pés até a ponta da cabeça”.

Essa maldição não terminava com a morte: transmitia-se a todos os descendentes, pois o próprio sêmen levava a maldição.

A “lepra” das roupas e das casas era apenas uma concepção desenvolvida por analogia com a lepra das pessoas. Não se tratava de um conceito semelhante ao nosso, de que um objeto pode ser veículo de contágio de uma doença. As roupas e casas podiam ficar “leprosas” sem nenhum contato de pessoas doentes.

Quando uma pessoa se curava de “lepra”, ela não ficava automaticamente pura. Era necessária uma série de rituais religiosos para que ela se livrasse da sua impureza. O ritual era extremamente elaborado.

A pessoa deveria levar ao sacerdote dois pássaros. Um deles era morto em sacrifício, e com seu sangue (e outras substâncias) tingia-se o segundo pássaro. A pessoa era aspergida 7 vezes com esse sangue, e depois o pássaro era solto, para voar. O significado simbólico parecia ser o seguinte: pelo sangue derramado sobre o pássaro e sobre a pessoa impura, eles se uniam; o pássaro passava a representar a própria pessoa.

Quando ele era deixado livre para voar, ele levava embora as impurezas da pessoa.

No entanto, o ritual não terminava aí. A pessoa devia lavar suas roupas, raspar todos os pelos do corpo, lavar-se, e aguardar durante 7 dias.

A raspagem permitia verificar se realmente não havia mais manchas ou sinais da doença. Após os sete dias, a pessoa devia novamente raspar todos os pelos e se lavar. Era então feito um sacrifício de um carneiro, que era oferecido à divindade pedindo-se que ele fosse aceito em pagamento pelo delito ou pecado cometido pela pessoa. Simbolicamente, isso significava que a lepra tinha sido um castigo por algum delito ou pecado, e que só agora, penitenciando-se e pagando por esse delito ou pecado, a pessoa ficava realmente pura.

Há um aspecto bastante interessante nesse ritual, e que aparece também em outros semelhantes: a transmissão da impureza de uma pessoa para um animal. O Levítico prescreve um ritual anual, de purificação de todo o povo.

Nesse ritual, tomam-se dois bodes. Um deles é morto. O sacerdote transfere todos os pecados do povo para o segundo bode, que é o “bode expiatório”.

Ele é levado para o deserto e é solto. Dessa forma, as impurezas de todas as pessoas foram embora. A pessoa que conduz o bode para o deserto precisa se purificar, pois alguma impureza pode ter passado para ela, ao conduzir o animal carregado de pecados.

A idéia de um “bode expiatório” ou de outro animal que vai carregar os pecados e a culpa de todas as pessoas, aparece em várias outras civilizações – até mesmo na América, antes da chegada dos europeus ao México. De modo semelhante, o Novo Testamento cristão indica que Jesus expulsou os demônios de pessoas e passou esses demônios para porcos.

Esse exemplo ilustra um aspecto do conceito mágico ou religioso de contágio: as impurezas podem ser adquiridas por contato, e podem também ser expelidas da pessoa, para um animal (ou, às vezes, para outra pessoa).

Na concepção hebraica de impureza, vemos alguns dos aspectos da moderna concepção médica de doenças contagiosas. Mas é claro que há também muitas diferenças.

No pensamento bíblico, as idéias de pecado, impureza, sujeira, doença, castigo e morte estão todas intimamente interligadas. O livro da Bíblia em que se pode perceber melhor essas idéias é o Levítico.

De modo semelhante a outras culturas antigas, o Levítico ensina que uma pessoa pode se tornar impura (pecadora, suja) de muitos modos diferentes. Os tipos que mais nos interessam, por terem relação com a doença, não têm relação com falhas morais e com pecados no sentido do cristianismo.

Existem vários tipos de animais, por exemplo, que são considerados impuros. Enquanto que a vaca ou a ovelha são animais puros e que podem ser comidos pelos hebreus, o Levítico ensina que os quadrúpedes ruminantes que não tenham a pata dividida em duas (como o camelo) são impuros e não podem servir de alimento. Da mesma forma, as lebres, os porcos e vários outros animais são proibidos para os hebreus. Dos animais aquáticos, apenas são puros os que possuem nadadeiras e têm o corpo recoberto por escamas. Polvos ou baleias, que não obedecem a essas condições, seriam impuros.

Os animais impuros não podem ser comidos e nem mesmo tocados, quando estão mortos. Se uma pessoa tocar um animal impuro morto, ela ficará impura: terá cometido uma falta religiosa, contra o deus hebraico, e terá ficado suja. A pessoa fica contaminada pela impureza do animal que tocou, e se alguém tocar essa pessoa, também ficará impuro.

Para se libertar da impureza, nesse caso, era necessário lavar as roupas, lavar o próprio corpo, e esperar até o anoitecer. Apenas à noite a pessoa ficaria novamente pura. Antes disso, a pessoa não poderia participar de atos religiosos, nem entrar em contato com outras pessoas, pois elas se contaminariam também.

Tudo o que sai de um animal impuro também é impuro. Se alguma coisa cai de um animal impuro morto sobre um objeto, esse objeto também fica impuro. No caso de objetos de argila, porosos, essa impureza não pode ser retirada: eles devem ser quebra-dos, destruídos. No caso de roupas ou objetos de madeira, eles devem ser lavados e, após o anoitecer, se tornarão puros novamente. Se, antes de serem purificados, a água escorrer desses objetos para um outro, este outro também ficará impuro. Ou seja: a própria água, que é o principal meio de purificação, também pode transmitir a impureza.

No entanto, a água em grande quantidade (em rios, reservatórios, etc.) não fica impura.

Mesmo os animais puros, podem se tornar impuros, se morrerem por si próprios. Nesse caso, aplica-se a eles a mesma restrição que aos animais impuros: não podem ser comidos nem tocados, pois transmitirão sua impureza a quem os tocar. Esta regra parece uma prescrição de origem médica, pois evita que as pessoas tenham contato com alguma doença que poderia ter matado o animal.

Mas a Bíblia não dá esse tipo de justificativa, e sim um motivo puramente religioso. O Levítico avisa:

Tomai cuidado para não contaminar vossas almas, e não tocai nenhuma dessas coisas, para que não sejais impuros.

Há várias outras causas possíveis de impureza, associadas a doenças ou estados físicos. Como em muitas outras civilizações, a Bíblia ensinava que as mulheres menstrua-das deviam ser consideradas impuras, durante 7 dias. A pessoa que tocasse uma mulher menstruada ou objetos sobre a qual ela esteve (cama, roupa, cadeira), ficaria impura e deveria fazer o procedimento já indicado: lavar suas roupas, lavar-se e esperar até o anoitecer para ficar puro.

Também após o parto, a mulher se torna impura. Se o filho for um menino, a impureza dura 7+33 dias (ou seja, um total de 40 dias). Se for uma me-nina, a impureza dura o dobro desse tempo.

Durante esse período de impureza, as mu-lheres deveriam ficar relativamente isoladas. Foi provavelmente a partir desse número “mágico”, 40 dias, que se originou a “quarentena” – período de isolamento de pessoas que podem estar com uma doença contagiosa.

O final do período de impureza, nesses casos, não significa que a mulher se torna automaticamente pura. É necessário realizar um ritual, fazendo oferecimentos, no tempo, ao deus hebraico, para pagar pelas suas faltas e se tornar novamente pura.

As normas sobre mulheres menstruadas aplicam-se também a homens com corrimento do órgão sexual (gonorréia). Eles se tornam impuros enquanto estiverem doentes, e os leitos e cadeiras que utilizarem também se tornam impuros.

Praticamente qualquer tipo de mancha branca era chamada de lepra. Quando um hebreu apresentava esse tipo de sinal, devia ser levado ao sacerdote, que o examinava.

Se os pelos da região das manchas tinham mudado de cor e se a pele apresentava uma depressão no lugar da mancha, o sacerdote declarava que se tratava de lepra impura, e a pessoa teria que ficar isolada dos demais.

No entanto, em outros casos de “lepra” o sacerdote podia declarar que a pessoa estava pura. Os impuros deveriam ser separados da sociedade, para não contagiar outras pessoas.

Todo homem que seja manchado pela lepra e que tenha sido separado dos outros por decisão do sacerdote, usará roupas sem costura, andará com a cabeça nua, com o rosto coberto por suas vestes, e gritará que é sórdido e contaminado.

RITUAIS DE PURIFICAÇÃO

Também os objetos podiam ficar “leprosos”: com manchas semelhantes à da lepra. No caso de roupas, por exemplo, se aparecessem tais manchas, elas deveriam ser levadas ao sacerdote que as examinaria e guardaria durante 7 dias. Se as manchas crescessem, ele declararia que se trata de lepra, e elas deveriam ser queimadas. Se não crescessem, poderiam ser lavadas, depois observadas durante mais 7 dias. Se nada aparecesse, seriam lavadas de novo e declaradas puras.

As casas em que aparecessem manchas nas paredes, com a região manchada mostrando uma depressão em relação ao resto da parede (semelhante à pele dos doentes), também seriam consideradas leprosas.

Em alguns casos, era possível retirar algumas partes da parede da casa e torná-la pura; em outros, a residência precisaria ser abandonada e destruída totalmente.

CAPÍTULO 3 – MEDICINA GREGA

MEDICINA RELIGIOSA GREGA

A civilização grega antiga foi o ponto de partida de toda a cultura científica ocidental moderna. Até hoje, é um grego – Hipócrates – a quem chamamos de “pai da Medicina”.

A Medicina grega marca uma importante etapa na evolução do pensamento médico. Inicialmente, ela se assemelhava à Medicina de outras nações: era uma mistura de concepções mágicas, religiosas e de receitas práticas para a cura das doenças. No entanto, aos poucos ela foi se separando da magia e da religião, tentando transformar-se em algo independente: um conhecimento das doenças, de suas causas naturais e de sua cura. O desenvolvimento da Medicina grega não foi rápido. O período em que se firma a concepção de uma Medicina naturalista é, aproximadamente, a época em que viveram Platão e Sócrates (aproximadamente 400 anos antes da era cristã) – o tempo de Hipócrates. No entanto, antes de estudar a visão médica de Hipócrates, é importante compreender a visão médica grega que existia antes de sua época.

A antiga religião grega aceitava a existência de muitos deuses diferentes. Na literatura grega mais antiga, desde as obras de Homero, vários deles estão associados à produção e à cura de doenças.

Um dos deuses associados às doenças era Apolo. Ele e sua irmã Artemis são descritos na mitologia grega como podendo produzir doença e peste através de flechas lançadas sobre os homens. A “Ilíada” de Homero descreve, no seu primeiro livro, um caso desse tipo, que ilustra as concepções mitológicas gregas.

Segundo a “Ilíada”, o rei Agamenon havia raptado e tomado como amante a jovem Chryseis, filha de um sacerdote de Apolo, chamado Chryses. Esse sacerdote implorou a Agamenon que libertasse sua filha. Em troca, o sacerdote oferecia um pagamento e solicitaria aos deuses que os exércitos do rei fossem bem sucedidos na guerra. Apesar de falar em nome de Apolo, o pedido do sacerdote foi negado. O sacerdote se afasta, vai para a praia e faz uma oração ao deus Apolo, solicitando que ele o vingue.

Assim ele orou, e Apolo ouviu sua prece. Desceu furioso dos picos do monte Olimpo, com seu arco e sua aljava cheia, nos ombros. As flechas vibravam em suas costas, com a raiva que tremia dentro dele.

Apolo se assentou longe dos navios, com uma face tão negra quanto a noite, e seu arco de prata deu um terrível assobio e espalhou a morte enquanto ele atirava suas flechas entre eles.

Primeiramente o deus atingiu suas mulas e cães, mas depois dirigiu suas setas mortíferas contra as próprias pessoas. Durante todo o dia, queimavam as piras dos mortos.

Durante nove dias ele atirou suas flechas entre as pessoas (…)

A “Ilíada” conta que a epidemia não cessava. Aquiles reuniu os homens e propôs que consultassem um sacerdote ou algum intérprete de sonhos para descobrir por que Apolo estava tão furioso. Um adivinho, chamado Calchas, se apresenta e promete dizer a causa da peste, se Aquiles lhe prometer proteção. Então, o adivinho conta que Apolo está irritado porque o rei desrespeitou o sacerdote.

Há uma disputa entre Aquiles e Agamenon, que por fim concorda em devolver a filha ao sacerdote. Após a devolução de Chryseis, são feitas orações e sacrifícios de animais a Apolo e a peste termina.

De modo semelhante, a peça teatral “Édipo rei”, de Sófocles, se inicia quando uma peste está dizimando a população de Tebas. O rei Édipo manda um emissário consultar as pitonisas, para que elas revelem o motivo pelo qual o deus Apolo está castigando o país. O oráculo revela que é necessário varrer de Tebas uma coisa impura: o assassino do rei anterior, Laius. À medida que a peça se desenrola, descobre-se que o próprio Édipo matou, sem o saber, o rei Laius (que era seu pai) e casou-se com sua mãe, sendo essa a causa da peste.

INTERVENÇÃO DOS DEUSES

Nesta fase da cultura grega, as grandes calamidades eram, portanto, produzidas pelos deuses, como castigo por ofensas religiosas. Havia, é claro, outros tipos de doenças comuns que não eram atribuídas aos deuses.

Não se sabe, no entanto, como era o tratamento dessas doenças, no período mais antigo, na Grécia.

A mitologia grega indica que Apolo, o deus do Sol, além de produzir doenças, poderia também curá-las – e, por isso, ele se tornou a principal divindade controladora das doenças. Posteriormente, surgiu o semi-deus Asclepios (ou Esculápio), filho de Apolo, como divindade específica da Medicina.

Segundo autores romanos do início da era cristã, a Medicina grega começou com Asclepios. Teria nascido na Tesalia, no século XIII antes da era cristã. Teria acompanhado os argonautas, em sua expedição.

Juntamente com Apolo, teria descoberto as plantas medicinais. É provável que tenha existido de fato um médico chamado Asclepios, que foi depois transformado em semi-deus pela tradição.

Há muitas e variadas lendas sobre seu nascimento e vida. Uma tradição conta que foi abandonado por sua mãe no monte Mirtion. Lá, foi alimentado por uma cabra do pastor Arestana e cuidado por seu cão.

Achado pelo pastor, foi reconhecido como divino pela auréola que o rodeava. Outra tradição o faz nascer em Epidauro, filho de Arsipo e de Arsinoe.

Segundo o escritor Ovídio, Asclepios foi o filho do deus Apolo com a mortal Coronis. Durante a gravidez, Coronis trai Apolo com um homem e é morta pelo deus. No entanto, ele salva o filho, tirando-o de seu ventre.

Logo depois de ser tirado de sua mãe, Asclepios é levado por Apolo até Magnésia, confiado ao centauro Quíron, que conhecia todas as plantas medicinais e que o instruiu na arte da cura. “Curava a uns com as doces palavras da magia, a outros oferecia poções eficazes, ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros, ou cortava o mal com o ferro, para devolver-lhes a saúde.”

Asclepios, segundo a lenda, adquiriu um conhecimento tão grande que se tornou capaz de ressuscitar os mortos. Plutão, o deus dos infernos, pediu a Zeus que o matasse, pois estava despovoando seus domínios.

Zeus atendeu a seu pedido e feriu com um raio o filho de Coronis. Depois, para consolar Apolo, seu pai, colocou-o no céu, onde forma parte da constelação da Serpente.

Asclepios é representado geralmente com um bastão de viajante, envolto por uma serpente – símbolo da adivinhação entre os gregos e acólito de todas as divindades médicas. Há diversos animais associados a ele: serpente, cão, cabra e galo – este último, símbolo de vigilância no exercício da profissão médica.

Na mitologia, Asclepios tem uma família que simboliza vários aspectos da Medicina. Sua esposa Epione aliviava a dor. Sua filha Hygeia era a divindade da saúde. Outra filha, chamada Panacea, representava os remédios que curam todas as doenças. Seu filho Telesphoros representava a recuperação do enfermo.

Hygeia, a filha preferida de Asclepios, é às vezes representada alimentando uma serpente. É do nome Hygieia (saúde, em grego) que vem o nosso termo “higiene”. Para nós, a palavra se refere a limpeza, asseio.

No entanto, seu significado primitivo é muito diferente: representava tudo aquilo que se pode fazer para manter ou restaurar a saúde.

Quando outras deusas eram invocadas para dar a saúde, davam-lhes também o epíteto de Hygeia (por exemplo: Atenas Hygeia ou Demeter Hygeia). A deusa egípcia Isis, associada à Medicina, era também cultuada entre os gregos, com o nome de Isis Hygeia. Era também representada com uma serpente.

Aproximadamente no século VI antes da era cristã, foram criados templos especialmente dedicados a Asclepios. Esses templos eram edificados em lugares considerados saudáveis e de paisagem agradável.

Estavam sempre rodeados por um bosque sagrado, no qual não se podia matar nem nascer.

Geralmente, dentro desse bosque, existiam uma fonte natural, um templo dedicado a Artemis e a outras divindades associadas à cura. Dentro do próprio templo, existiam geralmente serpentes vivas – símbolo de Asclepios.

As pessoas se dirigiam a esses templos em busca de curas milagrosas. Os enfermos tinham que cumprir certas práticas antes de serem admitidos no templo.

Deviam submeter-se a jejuns, banhos, abluções, unções e purificações. Depois, deviam efetuar sacrifícios – em geral, de um galo. Então, os enfermos podiam passar a noite dormindo no templo – e isso era chamado de “incubação”. Era um ato religioso pelo qual se provocava a aparição no sonho da própria divindade, para se obter uma revelação ou a cura.

Em alguns casos, o doente tinha visões que indicavam a natureza da doença e sua cura. Em outros casos, durante o sonho, o próprio deus o curava, instantaneamente.

Isso ocorria pela aplicação das mãos no local doente, ou por operação cirúrgica, ou ministrando um remédio, ou pela ajuda de animais (uma grande serpente, um cachorro e um ganso) que acompanhavam Asclepios.

Nem sempre o deus atendia ao doente, porque ele não o merecia ou não havia realizado a purificação antes da incubação. Podia também ocorrer que fossem necessárias muitas repetições da incubação, antes que a pessoa recebesse a visita de Asclepios.

Esse tipo de Medicina religiosa existia também no Egito: os doentes tinham o costume de se encerrar nos templos de Isis e de Serapis, e esperar que essas divindades lhes revelassem, durante o sono, os remédios que lhes eram necessários.

Há várias interpretações possíveis sobre o que ocorria no templo de Asclepios. Em parte, pode ter ocorrido que as pessoas se curassem de problemas psicossomáticos por simples sugestão.

Pode também ter ocorrido que os próprios sacerdotes e encarregados do templo se disfarçassem, à noite, e dessem remédios e fizessem operações cirúrgicas, fazendo-se passar pelo deus.

Pode ser que a parte mais importante do processo fosse posterior aos sonhos: os encarregados do templo talvez fizessem prescrições médicas úteis. De qualquer forma, pode-se dizer que os templos de Asclepios eram muito populares e procurados por muita gente.

O culto a Asclepios e as curas realizadas em seus templos duraram muitos séculos (até depois da era cristã) e se espalharam por vários países. Em Roma, no ano 295 antes de Cristo, foi erigido o primeiro templo a Asclepios por causa de uma epidemia. Conta-se que uma praga “havia infectado o ar, o sangue se corrompia nas veias e os homens se arrastavam como espectros lívidos.

A morte feria sem descanso, e ria-se de todos os esforços humanos e de todos os recursos da arte… “. A peste já durava há muito tempo, e foram enviados emissários a um templo grego de Apolo, em Delfos, em busca de conselhos. O oráculo diz que não é o próprio Apolo quem deve ser consultado e sim seu filho (Asclepios).

Os embaixadores vão ao templo de Asclepios em Epidauro e pedem que se permita transportar a Roma a estátua do deus. De noite, Asclepios aparece em sonhos e lhes diz que vai acompanhá-los sob a forma de uma cobra. Surge uma grande serpente, que sai do tempo, depois vai até o porto e entra no navio romano. Chegando ao porto de Roma, a serpente mergulhou na água e nadou até uma ilha, no meio do rio Tibre. Lá foi erguido um templo a Asclepios, e a epidemia desapareceu.

A corrente médica religiosa, associada a Asclepios, foi muito popular e duradoura. Certamente existia na Grécia uma medicina prática, lado a lado com essa Medicina religiosa. Como vimos, o próprio mito de Asclepios indica que ele utilizava ervas, poções e mesmo cirurgia.

Mas era muito forte a crença de que as doenças eram enviadas pelos deuses como punição por algum erro e de que a cura dependia da benevolência divina. Uma Medicina independente, naturalista, só poderia ter começado a se desenvolver quando a própria religião começou a se enfraquecer. Vamos ver como isso aconteceu, na Grécia.

O SURGIMENTO DA MEDICINA NATURALISTA GREGA

O enfraquecimento das crenças mitológicas gregas começou a ocorrer, na Grécia, aproximadamente no século VI antes da era cristã. Nessa época, surgem os primeiros filósofos gregos importantes que conhecemos: Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Pitágoras, e outros. Esses filósofos começam a propor um novo tipo de conhecimento, que não provém da tradição religiosa e sim do próprio raciocínio humano.

Não foram conservados os escritos dos médicos anteriores a Hipócrates. No entanto, sabe-se alguma coisa sobre a medicina naturalista pré-hipocrática.

Um exemplo é o pensamento do médico Euryphon de Cnidos, que viveu em torno de 450 A. C. Ele atribuiu as doenças a distúrbios de alimentação: “Quando o ventre não se livra do alimento que foi tomado, são produzidos resíduos que se elevam à região da cabeça e então produzem doenças.

Quando, no entanto, o ventre é esvaziado e limpo, a digestão ocorre como deve (…)”.

Essa idéia de resíduos impuros e a necessidade de evacuar e limpar os intestinos, é uma provável influência egípcia. Note-se que é uma concepção naturalista, bem diferente da idéia de impurezas religiosas, utilizada pelos hebreus e indianos.

É possível que os egípcios tenham notado, através de sua prática de embalsamamento, que após a morte os cadáveres começam a apodrecer a partir dos intestinos.

Daí talvez tenha se originado a doutrina de que a principal causa da doença é o apodrecimento dos alimentos no ventre. Esse apodrecimento produziria substâncias nocivas, que se espalhariam pelo corpo, através do sangue, produzindo doenças. A doença poderia ser evitada, no entanto, pela limpeza dos intestinos ou por sangrias, retirando com o sangue as substâncias nocivas.

Heródoto, no quinto século antes da era cristã, informa que os egípcios tinham o hábito preventivo de purificar seus intestinos três vezes por mês, através de purgantes ou de clisteres. Durante três dias sucessivos, em cada mês, eles purgam seu corpo por meio de eméticos e clisteres, o que é feito por respeito à saúde, já que eles acreditam que toda doença a que as pessoas estão sujeitas é causada pelas substâncias de que se alimentam.

A lavagem intestinal através de clister parece ter passado do Egito para a Grécia. Atribuia-se a descoberta do clister (e de outros processos) à observação dos animais. Supunha-se que o pássaro íbis (semelhante à cegonha), com seu longo bico, fazia sua própria lavagem intestinal. Observando-o, os egípcios aprenderam a imitar essa prática. Havia também uma conotação simbólica: o íbis era um pássaro associado ao deus egípcio da medicina, Toth.

Os outros processos de purificação do corpo também teriam sido aprendidos de animais. Contava-se que o hipopótamo, quando se sente pesado, sai do Nilo, abre uma veia na própria perna com um espinho, deixa correr o sangue e depois a fecha com lodo.

A preocupação com a limpeza dos intestinos, que era uma obcessão dos egípcios, existiu também entre os gregos. A palavra grega “katharsis” (de onde vem “catarse”, purificação) significava inicialmente a purificação dos intestinos, através de purgantes ou clisteres.

Uma outra idéia central que se desenvolve nesse período e que aparece nos escritos de vários filósofos, como Pitágoras e Alcmeon, é a de que a saúde é o resultado do equilíbrio e harmonia do corpo: excessos e desarmonia produzem doenças. Os escritos dessa época não foram conservados, mas um autor grego posterior assim descreveu a teoria de Alcmeon:

Alcmeon sustenta que o que estabelece a saúde é o equilíbrio dos poderes: úmido e seco, frio e quente, amargo e doce, e os demais. Pelo contrário, a supremacia de um deles é a causa da doença, pois a supremacia de qualquer um é destrutiva. A doença surge diretamente pelo excesso do calor ou frio, indiretamente pelo excesso ou deficiência de nutriente. E seu centro é ou o sangue ou a medula ou o cérebro.

Ela [a doença] algumas vezes aparece nesses centros por causas externas: umidade de algum tipo, ou ambiente, ou exaustão ou causas semelhantes. Saúde, por outro lado, é a mistura proporcional das qualidades.

Novamente, essa é uma doutrina médica totalmente naturalista, ou seja, sem a intervenção de conceitos sobrenaturais, mágicos ou religiosos. Teorias semelhantes, que interpretavam a doença como ruptura do equilíbrio de diversas substâncias ou poderes, surgiram também em outros locais, na Antigüidade: na China e na Índia, por exemplo.

Na filosofia chinesa tradicional, supunha-se a existência de cinco elementos básicos (madeira, fogo, terra, metal e água), que estavam associados às cinco cores, cinco estações do ano, e cinco órgãos do corpo humano.

A doença era considerada como uma desarmonia dos cinco órgãos, produzida pela interferência do clima, planetas, etc. Também na Índia, em livros médicos escritos no início da era cristã, são encontradas idéias semelhantes. Mas não se sabe se existe alguma ligação entre a teoria grega e as de outras civilizações.

Na escola pitagórica, dava-se grande importância à alimentação para conservar a saúde ou curar doenças. A dieta normal era vegetariana, certos alimentos (como lentilhas) eram proibidos e recomendava-se alguns outros, como couve e aniz, como importantes para conservar a saúde. A terapia pitagórica parece ter se baseado principalmente em dieta, exercícios físicos, música e meditação.

Entre os pitagóricos, também deve ter existido a idéia de que a saúde resulta do equilíbrio físico interno. Esse conceito aparece em uma obra de Platão (o “Timeu”), em que ele descreve as concepções de um filósofo pitagórico:

Todos podem ver de onde surgem as doenças. Há quatro naturezas a partir da qual se forma o corpo: terra e fogo, água e ar. O excesso ou falta destes, contrariamente à natureza, ou a mudança de qualquer um deles de seu lugar natural para outro ou a transformação de algum deles em um tipo errado, ou qualquer outra irregularidade semelhante, produz desordens e doenças.

Quando cada processo ocorre em sua ordem, resulta comumente a saúde; quando na ordem oposta, doença.

Idéias como essas serão centrais no pensamento médico de Hipócrates, o mais famoso médico grego da Antigüidade. Supõe-se que ele viveu em torno do ano 400 antes da era cristã.

Platão e Aristóteles falam sobre ele como sendo o mais importante médico da época. Tornou-se uma figura lendária, e posteriormente foram inventadas histórias sobre ele, como a de que seria um descendente de Hércules e de Asclepios.

Existe uma grande quantidade de livros que sobreviveram até hoje, que são atribuídos a Hipócrates. Esse conjunto de obras é chamado “Coleção Hipocrática” (ou, em latim: “Corpus Hippocraticum”). São muitos livros, de estilos diferentes, que não podem ter sido escritos por uma mesma pessoa, pois eles se contradizem e criticam uns aos outros. Eles foram reunídos quando foi criada a grande biblioteca de Alexandria, um século depois da época de Hipócrates. Pode ser que nenhum deles tenha sido escrito pelo verdadeiro Hipócrates. Muitos historiadores já tentaram identificar as épocas e autores dessas obras, mas nenhum desses resultados é seguro. Por isso, vamos nos referir simplesmente às “obras de Hipócrates”, sem no entanto querer dizer que essas obras foram escritas por uma única pessoa chamada Hipócrates.

A medicina hipocrática é totalmente naturalista, ou seja, nunca leva em conta causas sobrenaturais. Esse ponto de vista se torna especialmente claro, por exemplo, em uma obra que discute a epilepsia, que era chamada de “doença sagrada”:

Com relação à doença chamada “sagrada”: ela me parece não ser mais divina nem sagrada do que outras doenças, mas tem uma causa natural da qual ela se origina, como as outras perturbações.

Os homens consideram sua natureza e causa como divinas por ignorância e espanto, pois ela não é como as outras doenças. E essa noção de sua natureza divina é mantida pela incapacidade de compreendê-la e pela simplicidade do modo pelo qual ela é curada, pois os homens se libertam dela por purificações e encantamentos.

A obra de Hipócrates recusa toda explicação sobrenatural e associa a epilepsia a problemas hereditários do cérebro.

Uma idéia básica que aparece em muitas obras de Hipócrates é a de que o organismo humano é composto por um certo número de líquidos ou “humores”.

Quando esses humores estão distribuídos corretamente pelo corpo, e em quantidades corretas, existe a saúde. Mas quando um deles está em excesso ou acumulado em um local ou não tem as propriedades corretas, ocorre a doença.

A saúde é, assim, um estado de harmonia e a doença corresponde a uma desarmonia interna. Em grande parte, a saúde e a doença resultam da alimentação, pois é dos alimentos que se originam todas as substâncias do corpo, incluindo os humores. Os alimentos precisam ser transformados nas substâncias corporais, e isso ocorre através de seu “cozimento”, digestão ou “maturação” no organismo. Se o alimento não é bem “cozido” no corpo, resultam humores inadequados e a doença.

O processo de cura exige que esses humores sejam “cozidos” e que os excessos sejam excretados pela urina, suor, excrementos ou catarro. O tratamento é feito principalmente pela dieta, exercícios físicos, banhos quentes, assim como remédios destinados a retirar os humores em excesso (como laxativos ou vomitórios).

Em algumas das obras hipocráticas, os remédios são também vistos como devendo ser dotados de propriedades opostas às dos humores que estão causando a doença. Nesse caso, os remédios poderiam anular os efeitos desses humores no corpo. No entanto, em outras obras, critica-se esse método de terapia.

Nas obras hipocráticas, não se descreve de modo totalmente claro as idéias que depois se tornaram clássicas, como a doutrina dos humores. Foi depois, a partir de Galeno, que passaram a ser aceitos como fundamentais os quatro humores: sangue, fleugma (catarro), bilis negra e bilis amarela. Nas obras hipocráticas esses humores aparecem, mas há também menção a outros, como o salgado, o humor amargo, etc.

A doença se manifesta quando um dos humores não é cozido adequadamente pelo corpo, permanencendo “cru”. Então, ele se separa dos demais e produz um desequilíbrio.

A degeneração dos humores ocorre ou por dieta incorreta, ou por alguma mudança nas condições atmosféricas. Na obra hipocrática “Sobre a natureza do homem” aparece uma descrição bastante clara dessas idéias:

O corpo do homem tem dentro dele sangue, fleugma, bílis amarela e bílis negra. Eles constituem a natureza desse corpo e por eles surge a dor ou a saúde.

Ocorre a saúde mais perfeita quando esses elementos estão em proporções corretas um para com o outro em relação a composição, poder e quantidade, e quando eles estão perfeitamente misturados.

Sente-se dor quando um desses elementos está em falta ou excesso, ou se isola no corpo sem se compor com todos os outros.

É possível que a concepção de quatro humores fundamentais tenha surgido a partir da teoria dos quatro elementos de Empédocles. Ele ensinava que tudo é constituído a partir de quatro elementos básicos: terra, fogo, água e ar. Essa idéia será depois aproveitada por vários outros autores, assumindo grande importância na medicina.

No decorrer da doença, o organismo procura “cozinhar” o humor que está cru, através do calor natural, que pode se intensificar (manifestando-se pela febre). A febre não é, portanto, um sinal negativo, mas um sinal positivo de reação do organismo. Durante a doença, existe uma luta entre o poder da doença e o poder do corpo. O processo de cozimento ou maturação do humor cru termina por uma “crise”, que pode ser favorável ou negativa. Para acompanhar a evolução da doença, é por isso de grande importância examinar todo tipo de excremento ou secreção (vômito, fezes, urina, catarro, suor, etc.).

O doente pode se recuperar com a expulsão ou transformação do humor cru; pode morrer; ou pode haver uma recuperação parcial, quando o humor cru ou parcialmente cozido fica isolado sob a forma de um abcesso, de uma inflamação ou inchaço localizado.

O seguinte exemplo da descrição de Hipócrates mostra o papel da expulsão dos humores:

(…) houve quatro sintomas principais que indicavam a recuperação: uma hemorragia adequada pelas narinas; descarga copiosa de urina com muito sedimento de caráter adequado; intestinos desarranjados com evacuações de bilis no momento certo; aparecimento de características de disenteria. Em muitos casos a crise surgia não apenas com um desses sintomas mas, na maioria dos casos, com todos eles e os pacientes pareciam estar pior; mas todos os que tinham esses sintomas melhoravam.

As técnicas terapêuticas descritas nos textos hipocráticos se baseiam nesse tipo geral de concepção. Em certos estágios da doença, deve-se ajudar o organismo através de laxativos, vomitórios, expectorantes, diuréticos, regime, sangrias. Em outras fases, deve-se deixar que o organismo atue sozinho.

A teoria hipocrática de doença e cura não utiliza nenhuma suposição semelhante à de contágio. A causa da doença é sempre algo associado à alimentação, ao clima, às características da região, ao modo de vida, à idade e sexo da pessoa. A hepatite, por exemplo, é causada pela bílis negra e ocorre no outono. O tifo ocorre no verão, quando a bílis é colocada em movimento.

Com relação às estações, se o inverno for seco e soprar vento do norte, e a primavera for úmida e soprar vento do sul, haverá necessariamente no verão febres agudas, doenças dos olhos e disenteria, especialmente entre as mulheres e nos que tenham constituição úmida.

Os escritos hipocráticos nunca supõem que alguma coisa capaz de produzir doenças penetra dentro do doente, ou que a doença possa passar de uma pessoa para outra.

Quanto muitas pessoas adquirem a mesma doença, a causa é alguma mudança do ambiente, que afetou a todos do mesmo modo.

Nota-se especialmente esse tipo de concepção em uma obra hipocrática denominada “Sobre as epidemias”. Nessa obra, o autor se dá ao trabalho de descrever cuidadosamente o clima, os sintomas da doença e a sua evolução, mas em nenhum instante fala sobre contágio. Cada epidemia descrita nesta obra tem uma “constituição” particular, associada às condições ambientais que a produziram.

Em Thasus, aproximadamente no equinócio de outono, quando as Plêiades ainda apareciam [isto é, entre 21 de setembro e 8 de novembro], houve chuvas suaves contínuas e abundantes, com ventos do sul.

O inverno teve predominância [de ventos] do sul, com poucos ventos do norte. Houve seca. Em geral, o inverno se assemelhou à primavera.

A primavera foi fria e teve predominância do sul, poucas chuvas. O verão, em sua maior parte, enevoado, sem chuva; ventos da estação foram raros e curtosl, soprando de modo irregular.

A constituição anterior teve predominância do norte, enquanto que a tendência geral [nesse ano] foi de ventos do sul e secas. Por isso, no início da primavera, houve alguns poucos casos de febre ardente, todos muito leves; em alguns houve hemorragia, mas nenhum foi fatal. Muitos tiveram inchações ao lado das orelhas, em muitos casos dos dois lados, em geral sem febre e não necessitando ficar acamados. (…)

Essas condições ocorreram em crianças, jovens e adultos; principalmente os que se exercitavam em ginásios e que lutavam. Raramente atacou mulheres. (…)

Esta descrição de uma “epidemia” é típica da obra hipocrática. Não há nenhuma discussão detalhada sobre a relação entre o clima e os sintomas, embora às vezes se possa adivinhar a conexão que se poderia tentar estabelecer, utilizando a teoria dos humores. E, como já foi dito, em nenhum caso aparece qualquer referência à transmissão de doenças de uma pessoa para outra.

Em que sentido, então, se pode falar aqui sobre “epidemias”? É preciso recordar o significado primitivo dessa palavra. “Epidemia” era uma palavra inicialmente utilizada para indicar a residência temporária em uma cidade, de uma pessoa que não era daquele local. Pelo contrário, “endemia” se referia à residência permanente de alguém nativo daquele mesmo local. Essas palavras não diziam respeito a doenças e não tinham nenhuma conotação de algo que passasse de uma pessoa para outra. Assim, utilizando o significado original da palavra, o texto hipocrático está descrevendo corretamente como “epidemia” uma doença que não é própria de um local, mas que permanece durante algum tempo naquela cidade.

A PESTE DE ATENAS: O CONTÁGIO NA TRADIÇÃO GREGA

Vimos que, na teoria hipocrática, as epidemias eram causadas por algum tipo de influência (em geral, climática) que atingia ao mesmo tempo toda a população.

Não ha-via menção ao contágio. Em contraste com a visão “científica” de Hipócrates, a popula-ção em geral admitia a transmissão de doenças de uma pessoa para outra.

Pode-se ob-servar isso na famosa e impressionante descrição que o historiador Tucídides fez da peste que assolou Atenas.

A peste descrita por Tucídides ocorreu no ano 430 antes da era cristã, logo após a invasão da cidade pelos espartanos, durante a guerra do Peloponeso.

Havia notícia de que a doença já havia ocorrido antes em outros locais, mas em Atenas a epidemia foi muito mais grave, matando milhares de atenienses.

A doença se estabeleceu repentina-mente e atingiu rapidamente muitas pessoas.

Tucídides conta que os médicos ignoravam como tratar essa doença e que ne-nhuma tentativa de tratar os doentes tinha sucesso. As pessoas recorreram às preces e consultas aos oráculos, mas isso de nada serviu. Inicialmente, os atenienses pensaram que os invasores haviam envenenado os poços de água, pois a região onde a doença surgiu não tinha fontes, e utilizava poços.

Mas logo a doença se espalhou pelas outras partes de Atenas, e ficou claro que não se tratava de envenenamento, mas de uma terrí-vel peste.

O próprio Tucídides foi acometido pela peste, mas sobreviveu. Ele não se preo-cupa em especular sobre a causa da doença, mas descreve com grande cuidado os seus sintomas:

Se alguém já estava doente antes, sua enfermidade se transformava na peste. Os outros, sem nenhum sinal de aviso, em plena saúde, eram tomados inicialmente por um forte calor na cabeça, vermelhidão e inflamação dos olhos. As partes in-ternas, como a garganta e a língua, ficavam sanguinolentas e emitiam um hálito fétido e repugnante. Esses sintomas eram seguidos por espirros e rouquidão, e logo depois a doença descia ao peito, manifestando-se por uma tosse violenta. Depois, fixava-se na boca do estômago, revolvendo-o; e seguiam-se descargas de bílis de todos os tipos catalogados pelos médicos, acompanhados por sofrimento atroz.

A maior parte dos doentes era tomada por ânsia de vômito, que provocava fortes espasmos. Em alguns isso logo cessava, em outros demorava. O corpo, na superfície, não dava a impressão de um calor excessivo, nem ficava pálido, mas um pouco avermelhado, lívido, e rompiam pequenas úlceras e pústulas. Os órgãos internos, no entanto, queimavam tanto que os enfermos não suportavam o contato das roupas e tecidos, mesmo os mais finos; desnudavam-se completamente e queriam jogar-se na água fria. E muitos de fato o faziam, jogando-se nos poços, oprimidos por uma sede insaciável; mas não fazia diferença se bebiam muito ou pouco.

A impossibilidade de repousar e de dormir os atormentava continuamente. O corpo inicialmente não se desgastava, mas resistia ao trabalho da doença.

Os que morriam após sete ou oito dias ainda conservavam uma certa força. Mas os que passavam desse estágio, quando a doença descia ao ventre, tinham grandes ulcerações acompanhadas por fortes diarréias e por causa desta muitos morriam de fraqueza.

A terrível doença, quando não matava, produzia graves danos e mutilações nas mãos, pés e órgãos genitais. Alguns sobreviventes ficavam cegos. Outros, perdiam toda a lembrança de seu passado, não conhecendo mais seus familiares. Os cadáveres ficavam jogados pelo chão. Os pássaros e os animais que normalmente se alimentariam desses corpos, ficavam longe deles, ou, se os comiam, morriam logo depois.

Temendo o contágio, os próprios parentes abandonavam as pessoas doentes. Segundo Tucídides, as pessoas que ficavam doentes e sobreviviam não eram mais atacadas pela peste e podiam atender sem perigo aos doentes.

Tantas pessoas morriam que já não se conseguia mais enterrá-las ou queimar adequadamente seus corpos. A morte atingia a todos e a proximidade do fim fazia com que as pessoas se tornassem imediatistas, durante a praga. Ninguém mais se importava com as leis, com a honra ou a religião. Todos queriam apenas aproveitar da maneira mais agradável possível os seus últimos momentos.

Há estimativas de que tenha morrido a metade ou mais da metade dos habitantes de Atenas.

A peste desapareceu como havia surgido: sem que se soubesse sua causa ou como curá-la. Parecia algo sobrenatural. Pouco depois da peste, os atenienses colocaram no altar uma estátua de bronze de Atenea Hygieia, a quem foi atribuída a salvação da cidade.

Na descrição de Tucídides, percebe-se claramente que ele acreditava que a peste era transmissível.

Note-se que a idéia de que a doença passava de uma pessoa para outra não é apenas uma hipótese do próprio Tucídides. Ele descreve que as pessoas abandonavam os doentes por medo de adquirirem a peste.

É evidente, por essa descrição, que o conceito de contágio da peste era extremamente difundido entre as pessoas.

Provavelmente, Hipócrates presenciou essa peste. Há narrativas de que ele próprio teria acabado com ela, acendendo grandes fogueiras por toda a cidade de Atenas (ou seja, mudando o seu clima, de modo artificial). Porém, se vivenciou essa assustadora experiência, ela não lhe passou a idéia de contágio.

Por que motivo Hipócrates não aceitou a concepção popular de contágio nas epidemias? Não podemos sabê-lo com certeza, pois ele nem chega a discutir essa idéia.

Mas pode-se tentar compreender sua posição com base na atitude geral que é mostrada nos textos hipocráticos. De um modo geral, nesses livros não se tenta adivinhar aquilo que não pode ser observado.

Aquilo que se pode conhecer de uma doença é o que é mostrado pelos sintomas, e pouco mais além disso. Ao invés de especular sobre o que não se vê, os textos hipocráticos se concentram nos aspectos que podem ser mais úteis para a prática médica: descrição dos sintomas, desenvolvimento da doença, prognóstico, tratamento.

Essa atitude empírica pode ter sido um dos motivos para evitar qualquer discussão sobre uma coisa invisível que pudesse estar passando de um doente para uma pessoa sadia, transmitindo a doença.

Pode ser também que essa noção de contágio parecesse a Hipócrates uma mera superstição, como as noções de magia e religião com as quais ela sempre esteve associada na Antigüidade.

Como a medicina hipocrática é decididamente naturalista e despreza qualquer explicação sobrenatural, talvez a idéia de contágio tenha sido recusada e atirada ao lixo juntamente com as outras idéias supersticiosas com as quais estava associada.

Pode ter havido ainda um terceiro motivo. A concepção geral de saúde e doença de Hipócrates é incompatível com a idéia de contágio. Se a saúde é um equilíbrio dos humores, como esse equilíbrio poderia ser rompido pelo contato físico com outra pessoa? Como um desequilíbrio dos humores em um doente pode passar para outro? É difícil imaginar uma coisa desse tipo. Pode ter sido, portanto, por motivos teóricos, que o contágio foi excluído do pensamento médico de Hipócrates.

A SITEMATIZAÇÃO DA MEDICINA RACIONALISTA GREGA

Um dos mais importantes filósofos de todos os tempos foi, sem dúvida, Aristóteles. Ele viveu em uma época pouco posterior a Hipócrates. Seu pai era médico, e ele deve ter adquirido certo conhecimento da medicina da época. Embora nunca tenha se dedicado mais especialmente a esse estudo, sua obra filosófica teve grande influência indireta nas teorias médicas posteriores.

Para Hipócrates, a medicina era uma arte ou técnica, um conhecimento empírico – isto é, adquirido pela experiência, pela observação, por tentativa.

Embora houvesse uma vaga teoria por trás dos ensinamentos de Hipócrates, suas obras nunca dão grande ênfase à tentativa de explicar os sintomas das doenças através de causas internas, por exemplo.

Parece mais importante fazer previsões corretas e obter sucesso no tratamento do que compreender o que está acontecendo dentro do doente.

Esta atitude geral da medicina hipocrática era coerente com a visão de Platão a respeito do conhecimento. Segundo Platão, não é possível se obter um conhecimento racional, exato, das coisas que pertencem ao mundo material. Qualquer concepção sobre o mundo que percebemos à nossa volta, para Platão, é apenas uma opinião mais ou menos provável e que nunca pode ser segura. Assim, quando se trata do mundo material, torna-se mais importante a prática do que a teoria.

No entanto, essa visão sobre o conhecimento do mundo se altera completamente com Aristóteles. Ele defende a possibilidade de um conhecimento científico, racional, seguro, exato, do mundo material, pelo estudo das causas dos fenômenos.

Aristóteles diferencia claramente o conhecimento, propriamente dito, da técnica, considerando esta última como inferior, por não ter uma base sólida. A experiência prática, a observação, as generalizações, são para Aristóteles o ponto de partida do conhecimento científico, mas não o seu final. O final seria um conhecimento seguro, baseado na intuição das verdadeiras causas dos fenômenos observados.

A enorme influência de Aristóteles fez com que, entre as pessoas com formação filosófica, o mero conhecimento prático ou empírico passasse a ser desprezado.

O verdadeiro conhecimento tinha que ser sistemático, exato, formando uma estrutura demonstrativa semelhante à matemática. O ponto central desse conhecimento era a etiologia – o conhecimento da causa (“aitia”, em grego, é causa) . A própria medicina deveria ser um sistema filosófico racional, para ser um conhecimento e não uma mera arte.

É claro que a medicina de Hipócrates não satisfazia a esse ideal. Por isso, um importante ramo da medicina pós-hipocrática procurou fornecer uma base racional, sistemática, para o pensamento médico.

Essa base exigia uma teoria elaborada, capaz de explicar a causa dos sintomas das doenças e dos efeitos dos procedimentos terapêuticos.

A própria filosofia de Aristóteles forneceu uma base geral para a medicina racionalista. Ele desenvolveu e sistematizou a doutrina dos quatro elementos de Empédocles, analisou a relação entre os elementos e as quatro qualidades básicas (quente-frio, úmido-seco) e estabeleceu relações entre essas qualidades e elementos com os humores e com alguns órgãos.

Os quatro elementos materiais básicos (fogo, ar, água e terra) representam, no pensamento grego, aquilo que chamamos de estados da matéria: “água” não se refere apenas à água propriamente dita, mas a qualquer líquido (vinho, vinagre, óleo, etc.), assim como “terra” representa qualquer sólido. A água, ao se congelar, vira terra (gelo); ao ser aquecida, vira ar (vapor); e o fogo é o estado de maior aquecimento do ar, que se torna luminoso. Essas quatro possibilidades esgotam tudo o que se conhecia e serviam para descrever todos os tipos de materiais da natureza.

Segundo Aristótles, existem quatro poderes básicos, que formam dois pares de opostos: quente-frio, úmido-seco. Uma coisa não pode ser quente e fria ao mesmo tempo, nem úmida e seca ao mesmo tempo; essas qualidades são opostas. Mas podem existir as combinações de quente com úmido e seco, e de frio com úmido e seco.

Isso forma quatro e somente quatro possibilidades:

Quente e seco
Quente e úmido
Frio e seco
Frio e úmido

e cada uma dessas quatro combinações corresponde a um dos elementos básicos da matéria. O fogo é quente e seco; o ar é quente e úmido (pois, como já foi dito, o ar é equivalente ao vapor d’água); a água é fria e úmida; a terra é fria e seca.

Esta análise permite compreender, “teoricamente”, por que existem quatro e apenas quatro elementos: o motivo é que existem quatro e apenas quatro combinações possíveis das qualidades básicas.

Essas relações podem ser representadas por meio de um diagrama, como o que vemos ao lado:

Aristóteles estabelece relações entre os quatro elementos e os quatro humores do corpo humano. O sangue é quente e úmido, podendo ser associado ao ar; a fleuma é fria e úmida, podendo ser associada à água; a bílis negra é considerada fria e associada à terra, enquanto a bílis amarela é “ardente” e associada ao fogo.

Note-se que existe também uma relação bastante razoável entre as cores dos humores e os quatro elementos: a bílis amarela tem a cor do fogo; a bílis negra tem a cor do solo; a fleuma tem a cor da água.

Apenas no caso do sangue não é possível estabelecer uma relação com a cor do ar.

Aristóteles não desenvolveu uma teoria médica; mas sua concepção geral de ciência e seus princípios básicos sobre a natureza dos componentes orgânicos serviram de base para os médicos que, após ele, tentaram formular uma medicina racionalista.

Entre 350 e 250 antes da era cristã, houve vários médicos importantes que seguiram esse caminho. Os mais conhecidos são Diocles, Praxagoras e Mnesitheos.

Eles enfatizam a relação entre os quatro humores, os quatro elementos e as quatro qualidades básicas. Procuram dar as causas das diversas doenças, atribuindo-as às perturbações desses humores; e recomendam tratamentos baseados na teoria, de um modo muito mais sistemático do que havia sido feito pelos escritos hipocráticos.

De acordo com essa tradição, a melancolia, por exemplo, é produzida quando a bílis negra se acumula em torno do coração. Resfriados violentos são devidos ao acúmulo de uma fleuma muito fria. A paralisia é devida ao bloqueio das artérias pela fleuma fria.

Uma vez que se conheça cada doença, pode-se estabelecer racionalmente o processo de sua cura. Se um humor está em quantidade excessiva, ele deve ser reduzido pela expulsão, com diuréticos, vomitórios, sangrias, clisteres, etc. Se o que está desequilibrado não é a quantidade, mas a qualidade de um humor (por exemplo, se a fleuma está “muito fria”), a terapia deve consistir em alterar essa qualidade, pelo seu oposto.

Aquilo que está frio deve ser aquecido, o que está seco deve se tornar úmido, etc. O “aquecimento” pode ser produzido, por exemplo, por banhos quentes ou banhos de vapor, por alimentos “quentes” (com muito tempero), pelo vinho (que dá sensação de calor), etc.

Em toda essa teoria, não há lugar para um conceito como o de contágio. As influências externas podem produzir doenças apenas através do frio, calor, umidade ou secura.

Não se pode imaginar que o toque de um doente possa alterar essas qualidades em uma pessoa sã e, por isso, o contágio é impensável, irracional e não poderia existir. Na corrente médica racionalista, portanto, as epidemias só podem ser devidas a uma influência externa (climática) que atinge ao mesmo tempo um grande grupo de pessoas. Sendo mais sistemática do que o pensamento hipocrático, a medicina racionalista se torna ainda mais fortemente incompatível com as “superstições” sobre contágio.

A medicina racionalista não foi a única corrente médica posterior a Hipócrates.

Houve outras teorias opostas e existiu também uma importante corrente empírica que negou totalmente a possibilidade de se formular qualquer teoria para explicar a prática médica.

Não é possível neste livro, no entanto, explorar todas as correntes que existiram. Nenhuma delas deu uma contribuição importante para a compreensão do contágio; e a corrente que predominou e teve mais forte influência nos séculos posteriores foi a racionalista. Por isso, vamos nos concentrar em sua seqüência.

A medicina racionalista de base hipocrática teve seu ápice nas obras de Galeno. Cláudio Galeno nasceu em Pérgamo, no ano 129 da era cristã. Morreu aos setenta anos, em 199 ou 200, provavelmente em Roma.

De certa forma, pode-se dizer que ele era romano, pois viveu nesse império. No entanto, toda sua formação se baseou na medicina grega, e ele preferiu escrever suas obras em grego – não em latim. Pode, por isso, ser considerado um continuador da tradição médica grega.

Galeno foi fortemente influenciado por Aristóteles. Embora ele critique várias concepções aristotélicas, seu ponto de vista geral sobre a ciência é o mesmo exposto por Aristóteles. Defende que o verdadeiro médico deve ser também um filósofo; defende o conhecimento de física, astronomia, fisiologia, lógica e outras ciências, como base para a medicina.

A obra de Galeno é muito vasta. Escreveu enormes tratados sobre cada assunto. De um modo geral, fundamentou-se nas obras hipocráticas, desenvolvendo alguns de seus pontos.

Uma doutrina que tem raizes nos escritos de Hipócrates mas só ganhou forma definitiva em Galeno, é a teoria dos temperamentos.

Cada pessoa já nasceria com certa combinação ou “tempero” dos quatro humores básicos. Poderiam existir pessoas em que os quatro estivessem perfeitamente equilibrados, mas normalmente haveria predominância de um ou de dois humores. Daí surgiriam certos tipos físicos, havendo também repercussão na própria personalidade da pessoa.

Os quatro temperamentos mais importantes são aqueles em que predomina um único humor.

Os nomes desses quatro temperamentos provêm dos nomes dos humores correspondentes:

Temperamento sangüíneo: aquele em que há predomínio do sangue;
Temperamento bilioso ou colérico: aquele em que há predomínio da bílis amarela (“khole”, em grego);
Temperamento melancólico: aquele em que há predomínio da bílis negra (“melankhole”, em grego);
Temperamento fleumático: aquele em que há predomínio do muco ou fleugma (“phlegma”, em grego).

Os diversos climas, as regiões geográficas, as atividades, os alimentos e remédios – tudo, enfim, poderia ser classificado a partir da concepção dos quatro elementos, das quatro qualidades e dos quatro humores.

Conhecendo-se essas propriedades, seria sempre possível compreender as situações de equilíbrio ou desequilíbrio, a saúde e a doença. Tudo se torna perfeitamente compreensível, dentro de um sistema filosófico racional.

A partir dessa concepção, Galeno recomenda cuidados para a preservação da saúde.

Os principais pontos a serem observados são seis:

Ar e ambiente
Comida e bebida
Sono e vigília
Movimento e repouso
Excreções
Paixões da alma

Mantendo moderação e equilíbrio em relação às características de cada uma dessas seis coisas, seria possível manter o equilíbrio interno e a saúde.

As concepções de Galeno eram tão coerentes, tão bem fundamentadas sob o ponto de vista filosófico, que se tornava difícil negá-las. Tudo se encaixava com perfeição. Sua obra era tão impressionante, que foi aceita com entusiasmo nos séculos seguintes, durante mais de mil anos.

Essa aparente perfeição da medicina de Galeno foi, justamente, o seu maior defeito. Quando tudo parece estar correto e compreendido, diminui ou cessa o desejo de investigar e descobrir coisas novas.

Quando se dispõe de um sistema racional completo, a experiência se torna desnecessária. A teoria nunca é colocada em questão, por ser perfeita – mesmo se na prática as pessoas morressem.

OS ROMANOS E OS VENENOS (“VÍRUS”)

O império romano foi o herdeiro da cultura grega. Os romanos não desenvolveram um pensamento muito original, mas há vários aspectos da medicina romana que nos interessam, por sua relação com a transmissão de doenças e com as fases posteriores de nossa história.

Na antiga medicina de Roma, nota-se uma preocupação com venenos, que não existe na medicina grega. Em parte, isso pode se dever ao grande contato dos romanos com a África e com serpentes.

Outro possível motivo é a difusão da prática de envenenar os inimigos. Os venenos mais poderosos possuem uma característica estranha, sob o ponto de vista médico: uma pequena quantidade deles é capaz de matar uma pessoa.

Plínio, chamado “o Velho”, em sua grande obra “História Natural” (século I D.C.), fez uma compilação de tudo o que se sabia em sua época sobre animais, vegetais e minerais, descrevendo-os e dando seus uso médicos. Plínio diz que, entre os Romanos, o estudo de remédios só se desenvolveu após a divulgação dos trabalhos do rei Mitridates, de Pontos. Esse rei, segundo vários autores posteriores, foi o primeiro a fazer um estudo sobre antídotos.

Mitridates, o maior rei de seu tempo, que foi depois vencido por Pompeius, conforme se conta e conforme as evidências, foi um atento investigador dos problemas da vida, superando os que nasceram antes dele.

Por seus esforços solitários, ele elaborou um plano de beber veneno diariamente, depois de tomar remédios, para se acostumar a eles e para que se tornassem inócuos. Foi o primeiro a descobrir vários antídotos, um dos quais é conhecido por seu nome. Ele também descobriu a mistura dos antídotos com o sangue dos patos de Pontos, pois eles se alimentam de substâncias venenosas.

Segundo Plínio, Pompeius, que venceu Mitrídates, coletou seus remédios e seus escritos, que foram traduzidos para o latim por Lenaeus. Esse teria sido o primeiro trabalho médico original, em latim.

Um primeiro aspecto interessante no estudo dos venenos é que uma pessoa pode se acostumar ou habituar aos mesmos, de tal forma que depois eles não façam mais efeito (fenômeno que será, muito depois, chamado de “imunização”). Sabia-se, na época, que algo semelhante podia ocorrer com algumas doenças. Na peste de Atenas, que já foi descrita antes, as pessoas que adquiriam a doença e escapavam com vida (como o próprio Tucídides), ficavam protegidas contra a peste: podiam ter contato com os doentes, sem correr risco nenhum.

É interessante assinalar que muitos povos “primitivos” já conheciam o processo de habituação contra venenos. Em 1560, José de Anchieta descreve como os indígenas brasileiros praticavam a habituação ao veneno das cobras venenosas. Ao se referir à jararaca brasileira, Anchieta afirma que os índios, quando “mordidos sucessivamente, não só não correm risco de vida, como mesmo sentem menor dor, o que tivemos mais de uma vez ocasião de observar”.

Da mesma forma, no século XIX, o coronel português M. de Serpa-Pinto conta o modo pelo qual foi vacinado pelos Vatuas, da costa oriental da África, contra as serpentes: eles extraiam o veneno e preparavam com ele e com substâncias vegetais uma pasta escura que era introduzida em incisões feitas na pele.

A operação era muito dolorosa e era seguida por um inchaço que durava uma semana. Os Vatuas asseguram que o procedimento produzia imunização contra a picada de serpentes.

Além desse aspecto, o estudo dos venenos levou à busca de antídotos – remédios específicos contra cada tipo de veneno, capaz de anular os seus efeitos.

Essa idéia de antídoto era completamente diferente da concepção hipocrática dos remédios, que se destinavam a reestabelecer o equilíbrio dos humores corporais e não a combater alguma substância estranha que entrou no organismo.

Um terceiro aspecto importante é que, na busca de antídotos eficazes, começou a elaboração de misturas extremamente complexas de muitas substâncias diferentes – enquanto que, inicialmente, buscava-se utilizar apenas uma ou duas substâncias, capazes de produzir vômito, evacuação, etc.

Desenho de um manuscrito árabe sobre remédios, mostrando a coleta de cobras para a preparação de antídotos.

CONCEPÇÕES DOS ROMANOS SOBRE EPIDEMIAS E CONTÁGIO

No império romano, ocorriam muitas epidemias que chamaram a atenção dos médicos. Em geral, seguindo a tradição hipocrática, eles consideravam que a epidemia se devia a uma mudança climática que produzia um desequilíbrio dos humores. Um autor do primeiro século antes da era cristã, Celsus, faz uma descrição dos cuidados que deveriam ser tomados durante as epidemias:

Há precauções indispensáveis, que se deve tomar, durante o reinado de uma epidemia, por aquele que ainda não foi atingido mas que não está a salvo de seus ataques. O mais seguro é então viajar ou navegar.

Se isso não é possível, deve fazer-se transportar em liteira, levar-se docemente em pleno ar, antes da hora dos grandes calores; utilizar unções leves e, como se aconselhou mais acima, evitar a fatiga, as indigestões, o frio, o calor e os excessos venéreos. Deve-se tomar muito mais cuidado ainda se ocorrer algum mal estar, e nesse caso não se levantar pela manhã, nunca caminhar de pés nus, sobretudo quando acaba de comer ou tomar um banho, renunciar a produzir vômitos tanto em jejum quanto após o jantar, não produzir evacuações alvinas, tentar mesmo interrompê-las se aparecerem, e remediar preferivelmente pela abstinência a plenitude excessiva do corpo.

Igualmente, deve-se suprirmir os banhos, não ficar suado, manter-se em guarda contra o sol do meio-dia, sobretudo se ele vier depois da única refeição que se deve fazer no dia.

Essa refeição será por fim muito moderada, para não se expor às indigestões; e em dias alternados deve-se beber água e vinho. Tomando-se essas precauções, não se mudará mais nada em sua maneira de viver.

Todas as doenças pestilenciais, e principalmente aquelas que são trazidas pelos ventos do meio dia, exigem que se conforme a esses preceitos.

Celsus recomenda, na prevenção contra as epidemias, os procedimentos gerais que já apareciam em Hipócrates e outros autores para manter a saúde: cuidar especialmente da alimentação e da bebida, utilizar moderação nas atividades, etc. Quando a pessoa fosse atingida pela epidemia, os procedimentos de cura consistiam em reestabelecer o equilíbrio dos humores:

Nas febres, o caráter pestilencial exige também uma atenção especial. A dieta, os purgativos ou lavagens [intestinais] não são nesse caso de utilidade nenhuma, e quando as forças o permitem, o melhor é tirar sangue, sobretudo se a febre é acompanhada pela dor. Se esse meio não oferecer segurança, deve-se, logo que a febre estiver menos forte, desembaraçar o estômago fazendo vomitar.

Nessa época, entre os romanos, generaliza-se a idéia de que as epidemias são produzidas por fenômenos celestes. A astrologia estabelecia uma conexão entre os astros e os fenômenos terrestres.

Eram especialmente os cometas que eram vistos como os anunciadores das maiores tragédias. O astrólogo romano Marcus Manilius, do primeiro século da era cristã, indica o significado dos cometas: destruição de colheitas, praga, morte:

Pode ser que por meio desses aspectos e incêndios do céu, deus nos envie, por piedade, sinais de uma sorte miserável. Os fogos com que o céu queima jamais foram sem significado. Os homens do campo, com suas esperanças destruídas, choram sobre os campos arrasados. Entre os sulcos estéreis o homem que ara a terra, cansado, em vão estimula o esforço de seus animais. Ou então, quando uma doença grave e uma corrupção lenta dos corpos atingiu os homens, brota uma chama mortal do centro da vida e varre os povos; e pelas cidades se sucedem piras flamejantes para os mortos.

Assim foi a praga que atingiu o povo de Erechteus e que levou a antiga Atenas a se transformar em um sepulcro, sem guerra (…).

Tais são os desastres que os cometas brilhantes em geral proclamam. A morte vem com essas tochas celestes, que ameaçam a terra com o brilho de piras incessantes, pois o céu e a natureza são atingidos e parecem condenados a compartilhar a tumba dos homens. Esses fogos também anunciam guerras e revoltas, e armas erguidas em atos de traição. (…)

Não se considerava que os cometas e os planetas produzissem diretamente as doenças. Pensava-se que eles alteravam a atmosfera, e esta, por sua vez, produzia as epidemias.

Embora não se trate de um autor romano, cabe citar o autor desse período que se tornou a principal autoridade antiga em astrologia: Claudius Ptolemaios (ou Ptolomeu), o famoso astrônomo e geógrafo egípcio do século II D. C. O nome de Ptolomeu é bastante conhecido, por ter sido quem desenvolveu o sistema astronômico geocêntrico (no qual a Terra é o centro do universo) que só foi modificado no século XVI, por Copérnico. Embora mais conhecido como astrônomo, Ptolomeu escreveu também uma obra sobre astrologia, o “Tetrabiblos” ou “Livro quádruplo”, que foi provavelmente o mais influente texto astrológico de todos os tempos.

No Tetrabiblos, Ptolomeu desenvolveu uma teoria sobre a influência dos planetas que toma como ponto de partida a classificação das quatro qualidades básicas de Aristóteles (quente ou frio, úmido ou seco).

Segundo Ptolomeu, cada um dos astros possui um poder específico capaz de influenciar os acontecimentos da Terra, como o clima. O Sol tem poder de aquecer e, em certo grau, de secar.

A Lua umidece e é moderadamente quente, produzindo por causa dessas duas qualidades o amolecimento e a putrefação. Saturno seria um planeta principalmente frio, moderadamente seco.

Marte teria a capacidade de secar e queimar. Esses dois planetas (Saturno e Marte) são considerados maléficos, por Ptolomeu. Seriam os principais responsáveis por doenças e catástrofes. Pelo contrário, Júpiter e Vênus, juntamente com a Lua, seriam os astros benéficos e protetores.

Júpiter é descrito como sendo temperado ou equilibrado, tendo a capacidade principal de aquecer e também a de umidecer de forma moderada, produzindo ventos fertilizantes.

Vênus também seria um planeta equilibrado, capaz principalmente de umidecer e também de aquecer moderadamente.

Mercúrio, por fim, é descrito como um astro mutável, que às vezes seca e às vezes umidece, mudando rapidamente de propriedades, por estar cada vez de um dos lados do Sol.

Mercúrio e o Sol são considerados como astros que às vezes são benéficos, às vezes maléficos, dependendo de suas associações com outros astros.

O Tetrabiblos contém uma descrição detalhada da conexão entre os vários planetas e os órgãos do corpo humano: Júpiter, por exemplo, era o astro que dominava os pulmões, as artérias, o tato e o sêmen.

As doenças ocorreriam principalmente por influência de Saturno e Marte, mas a posição dos outros astros determinaria o órgão que seria afetado. Como exemplo dessas relações, podemos dar essa descrição:

Em geral ocorrem feridas quando a Lua está perto dos signos de solstício ou equinócio [Áries, Câncer, Libra e Capricórnio]; no de equinócio de primavera [Áries], pela lepra branca; no do solstício de verão [Câncer], por líquens; no do equinócio de outono, pela lepra; no solstício de inverno, por verrugas e outros semelhantes.

Em geral Saturno produz ventres frios, aumenta a fleuma, torna as pessoas reumáticas, fracas, magras, ictéricas, e predispostas à disenteria, tosse, cólica e elefantíase; ele também torna as mulheres sujeitas a doenças do útero. Marte faz as pessoas cuspirem sangue, torna-as melancólicas, enfraquece seus pulmões e causa o escorbuto e a sarna.

Além disso ele as torna constantemente irritadas (…), hemorróidas, tumores e também úlceras ardentes ou feridas devoradoras. (…)

Mercúrio os acompanha principalmente para prolongar os efeitos maléficos, tendendo ao frio quando se une a Saturno e estimulando continuamente reumatismos e acúmulo de fluidos, principalmente nopeito, garganta e estômago. Quando se une a Marte, ele adiciona sua força para produzir secura ainda maior, como no caso de olhos com feridas ulcerosas, abcessos, erisipela, erupções de pele, bílis negra, insanidade, epilepsia e coisas semelhantes.

Através das influências dos planetas e de suas posições no céu, seria determinado o clima de cada época do ano. Ptolomeu não faz uma associação entre o clima e doenças, mas ele nem precisava indicar isso: os próprios médicos se encarregavam de fazer a ligação.

Apesar dessa tradição astrológica e hipocrática, outros autores – principalmente alguns que não eram médicos – vislumbravam outras possíveis causas das epidemias. O arquiteto romano Vitruvius, discute a escolha do local par se edificar uma cidade, e indica as seguintes regras:

Como se pode reconhecer se um lugar é sadio, e o que o impede de sê-lo:

Quando se quer construir uma cidade, a primeira coisa que se deve fazer é escolher um lugar saudável. Ora, esse lugar deve ser elevado; além disso, não deve estar sujeito nem às neblinas nem às brumas; que tenha uma boa temperatura do ar; que não esteja exposto nem aos grandes calores nem aos grande frios. Além disso, não deve estar na vizinhança de pântanos; pois deve-se temer que fosse pestilencial e mal-são um lugar onde o vento da manhã possa trazer os vapores que o sol, erguendo-se, tivesse atraído do hálito infecto e venenoso dos animais que são gerados nos pântanos. Da mesma forma, uma cidade construída na margem do mar, e exposta ao meio-dia ou ao poente, não pode ser sadia (…)

Existe aqui a idéia de que o ar pode trazer doenças. É claro que Hipócrates também afirmava isso, mas em outro sentido. Na concepção hipocrática, o ar pode produzir epidemias quando há um desequilíbrio de calor, frio, umidade e secura, que atuam sobre os humores corporais. Em Vitruvius, a idéia é diferente. Ele se refere a vapores venenosos que poderiam ser produzidos nos pântanos, pelos animais lá gerados, e que poderiam produzir a peste (ou seja, epidemias).

Idéias ainda mais próximas das nossas são sugeridas por outros autores romanos do início da era cristã. Marcus Varro sugeriu que nos pântanos “crescem certos animais tão pequenos, que não podem ser captados pelos olhos, que através do ar entram pelas narinas ou pela boca e produzem graves doenças”. E o escritor Lucius Columella, ao falar sobre as atividades do campo, sugere que os mosquitos podem transmitir doenças:

Não devem existir pântanos perto das casas, ou de estradas públicas, pois eles sempre emitem venenos [vírus] nocivos no calor, e geram animais armados com aguilhões, que voam em torno de nós em enxames densos.

Eles [os pântanos] também produzem da lama e do lixo fermentado, a peste venenosa das serpentes e cobras d’água, quando elas ficam privadas da umidade do inverno. E por isso são adquiridas doenças ocultas, cujas causas nem os médicos conseguem compreender.

Guiados por seu bom senso, os romanos deram grande importância a cuidados sanitários e de higiene.

Havia um sistema de esgotos na cidade de Roma que não foi ultrapassado por qualquer sistema semelhante no mundo todo, até o século XIX .

Os esgotos eram levados em condutos subterrâneos até um local, a cloaca maxima, onde eram lançados no rio Tibre. Além de privadas nas casas, havia sanitários públicos, alguns deles muito luxuosos, todos equipados com água corrente.

As casas mais ricas eram providas de banheiras; além disso, existiam muitos balneários públicos, como os banhos de Caracalla, capazes de acomodar mil e seiscentas pessoas de cada vez, ou os de Diocleciano, com três mil quartos de banho. Isso mostra que o asseio era uma prática generalizada, em Roma.

Para proporcionar água destinada ao consumo e à limpeza, a cidade de Roma era provida de 14 grandes aquedutos que traziam água de fontes distantes através de condutos subterrâneos ou suspensos.

No início da era cristã, eles proporcionavam à cidade cerca de 200 milhões de litros de água por dia. Os romanos implantavam também sistemas de água e esgoto nas principais regiões que conquistavam.

Existe um aqueduto em Nîmes, na França, que é utilizado até hoje, dois mil anos depois de sua construção.

Conhecemos muitos detalhes sobre os aquedutos romanos graças à descrição feita pelo engenheiro Sextus Julius Frontinus (século I da era cristã). Ele conta que desde a fundação de Roma até o ano 441 do calendário romano (312 antes da era cristã), os romanos se contentavam em utilizar a água do rio Tibre, de poços e fontes.

Em 312 A. C. foi construído o primeiro aqueduto, chamado “Apia”, totalmente subterrâneo, com extensão de 11.190 passos (cerca de 10 km). Quarenta anos depois foi construído o segundo aqueduto subterrâneo, com 40 km de extensão, chamado “Anio velho”. Aos poucos foram sendo contruídos outros condutos subterrâneos ou suspensos sobre arcadas, trazendo água de distâncias superiores a 50 km. O “novo Anio” tinha 2.000 metros de condutos suspensos, chegando à altura de 30 metros (igual à de um prédio de dez andares). Foram obras fantásticas de engenharia, para a época.

A água era coletada de vários locais e classificada por fiscais, que destinavam as águas do aqueduto “Márcia” apenas para ser bebida; outras eram utilizadas tanto para alimentação quanto limpeza.

Seis dos aquedutos levavam a água até piscinas cobertas, onde se deixava que o limo se depositasse, antes de distribuir a água pela cidade, através de encanamentos. As águas trazidas pelo “velho Anio” tornaram-se muito impuras e, no início da era cristã, eram utilizadas apenas para rega de jardins e usos mais sujos da cidade.

Todos os cuidados com a água, esgoto, asseio pessoal e limpeza da cidade certamente contribuiram muito para preservar os romanos de doenças. É difícil saber, no entanto, até que ponto eles estavam conscientes dos benefícios dessas medidas para a saúde, e até que ponto eram guiados apenas por considerações estéticas (beleza, limpeza, cheiro agradável, etc.).

Talvez a maior contribuição romana para a compreensão das epidemias e doenças transmissíveis tenha sido dada pelo filósofo Lucretius. Esse filósofo, do primeiro século da era cristã, escreveu uma obra em versos, denominada “De rerum natura”, onde expõe a teoria atomística antiga. O atomismo era uma filosofia materialista, que não aceitava a existência de qualquer coisa além de átomos e do espaço vazio.

A própria alma e os deuses deveriam ser meras combinações de átomos. Não existe lugar, nessa filosofia, para a religião, a magia, a superstição.

Por outro lado, o atomismo admite a existência de coisas invisíveis. Os próprios átomos são invisíveis, porém reais e materiais.

Lucretius dedica uma grande parte do seu livro para mostrar que não é absurdo aceitar-se a existência de coisas materiais invisíveis. Não vemos, por exemplo, nada em volta de um ímã, mas deve existir alguma coisa em volta dele que produz o efeito de atração do ferro. Não vemos a água que se evapora de um tecido colocado ao sol, mas essa água certamente continua a existir, dividida em inúmeras partículas invisíveis. E Lucretius fornece muitos outros exemplos semelhantes.

Dentro da teoria atomista, torna-se possível introduzir causas naturais invisíveis que podem produzir doenças. No espaço celeste, existiriam todos os tipos de átomos, que se movem ao acaso.

Eles colidem uns com os outros, podendo se prender uns aos outros. Através de combinações dos átomos, podem ser gerados todos os tipos de coisas, ao acaso. Algumas delas podem ser “sementes” que se desenvolvem e produzem coisas úteis ao homem; outras, podem ser daninhas. Lucretius utiliza esse tipo de idéia para explicar o surgimento das epidemias:

E agora explicarei qual é a razão das doenças e de que causas pode surgir de repente a força da doença e trazer a destruição mortal à raça dos humanos e às tropas dos animais brutos. Em primeiro lugar, eu mostrei que há sementes de muitas coisas úteis à nossa vida; e por outro lado muitas outras que voam trazendo doença e morte. Quando estas, por acaso, se juntam e perturbam o céu, o ar se torna doentio.

E toda a força da doença e dessa pestilência vêm, ou de fora através do céu sob a forma de nuvens e neblina, ou então se agregam e sobem da terra, quando ela se embebeu de líquido e apodreceu, atingida por chuvas e sol intempestivos.

Embora, mais uma vez, o ar seja considerado o veículo das doenças, as epidemias não seriam causadas simplesmente por calor, frio, umidade e secura: haveria certas “sementes” de doenças no ar, provenientes do céu ou da própria terra.

Lucretius concebe diferentes tipos de sementes de doenças. Ele comenta sobre as diferenças de climas e de pessoas nas diversas partes do globo, e afirma que existem doenças específicas de certos lugares:

Existe a doença do elefante que é produzida às margens das correntes do Nilo no meio do Egito e em nenhum outro lugar. Em Atica, os pés são atacados; e nas terras Aqueanas, os olhos.

E assim diferentes lugares são daninhos a diferentes partes e membros. As variações do ar ocasionam isso.

Essa concepção é bem diferente da de Hipócrates e seus seguidores. Logo em seguida, ele explica com mais detalhe o modo como surgem as epidemias:

Portanto, quando uma parte do céu inadequada para nós se coloca em movimento, e um ar maligno começa a avançar, rasteja vagarosamente sob a forma de vapores e nuvem e traz a desordem a tudo em sua linha de ataque e faz com que tudo mude. E quando por fim atinge nosso céu, ele a corrompe também e a faz semelhante a si e inadequada para nós. Esse novo poder pestilencial cai assim imediatamente sobre as águas ou penetra profundamente nos grãos ou em outros alimentos do homem; ou então sua força se mantém suspensa no próprio ar, e quando inalamos dela esse ar misturado, absorvemos em nosso corpo, ao mesmo tempo, essas coisas.

De forma semelhante, a peste geralmente cai também sobre o gado e destempera os carneiros. E não faz diferença se viajamos para lugares desfavoráveis a nós e mudamos a atmosfera que nos envolve, ou se a natureza fora de nós escolhe nos trazer um céu corrompido ou alguma coisa a que não estamos acostumados, e que é capaz de nos atacar logo que chega.

Apesar de considerar as epidemias como causadas por uma mudança do ar, Lucretius reconhece a existência da passagem da doença de uma pessoa para outra.

Ele descreve a grande peste de Atenas e aponta que os corpos jaziam empilhados, sem serem sepultados, mas que as aves de rapina e os animais não se aproximavam deles, ou, se os comiam, logo caiam mortos.

Havia portanto algo nos mortos que podia causar a morte. E os sãos podiam adquirir a doença dos doentes:

Eles não cessavam de pegar o contágio da doença devoradora um do outro, assim como os rebanhos lanudos e os bois. E isso, sobretudo, empilhava mortos sobre mortos.

Quando alguém fugia de seus próprios familiares doentes, essa negligência mortal logo os punia por seu amor excessivo à vida e medo da morte por uma morte maligna e terrível, abandonado por sua vez, esquecido de qualquer ajuda. Mas aqueles que ficavam estavam prontos a prestar asssitência, iam-se pelo contágio e pela fadiga (…).

Aparecem, assim, em Lucretius, algumas idéias sobre a transmissão da doença de uma pessoa a outra. Ele utiliza a palavra “contágio” para se referir a essa transmissão. O contágio é, em Lucrécio, simplesmente alguma influência que passa pelo contato de uma coisa com outra . Coerente com a doutrina atomista, ele supõe que é algo material que produz a doença. Não existe a proposta de que seja algo vivo, nem que essa causa da doença se reproduza dentro dos que são atingidos por ela. No entanto, como ele fala sobre as “sementes” ou “germes” das doenças, pode ser que ele admitisse a idéia de pequenos organismos vivos.

Outros termos importantes passaram a ser utilizados nessa época, como “infecção” e “contaminação”. Essas palavras não possuíam significado médico, inicialmente. “Infectar” significava primitivamente tingir, colorir, impregnar com alguma substância visível. O ar infectado seria, portanto, uma atmosfera colorida, tingida ou impregnada por algo visível (vapores, bruma, poeira); mas daí veio, por analogia, a concepção de que o ar carregado de substâncias ou germes nocivos estaria também infectado, mesmo se essas coisas fossem invisíveis. Por fim, quando alguma causa patológica entra e impregna uma pessoa, também se passou a falar sobre a infecção dessa pessoa.

A palavra “contaminar”, por sua vez, vem do latim contaminare, que significa sujar, poluir, misturar uma impureza. Por analogia, a palavra passou também a significar sujar moralmente, corromper, desonrar.

Essa palavra tem um significado amplo de transmitir uma impureza, tanto no sentido religioso, quanto ético, quanto material. Uma pessoa contaminada pela impureza deve ser evitada, pois a impureza é algo que se transmite de uma pessoa para outra. As idéias de contaminação e de contágio são portanto bastante semelhantes e relacionadas.

Lucretius e outros romanos – em geral, pessoas que não eram médicos – deram importantes contribuições à compreensão das epidemias e do contágio.

Escapando à tradição hipocrática, eles foram capazes de sugerir novas idéias, incompatíveis com a teoria dos humores, que apontavam para meios de transmissão de doenças.

As idéias do atomista Lucretius são especialmente importantes, pois ele fala sobre influências invisíveis, dando ao mesmo tempo a essas causas a interpretação puramente materialista, sem qualquer conotação sobrenatural, como no conceito religioso ou mágico de contágio.

Na época, as idéias de Lucretius não tiveram grande repercussão. No entanto, mais de mil anos depois, a redescoberta de suas obras irá levar ao ressurgimento do conceito de contágio através de sementes materiais invisíveis.

CAPÍTULO 5: O PERÍODO MEDIEVAL

A BAIXA IDADE MÉDIA

Após a queda do império romano, a Europa não desenvolveu nenhuma outra grande nação, durante séculos. O cristianismo se torna a única força que tenta unificar todos os povos europeus.

A fase inicial da Idade Média, na Europa, apresentou uma decadência geral de todos os conhecimentos. Após Galeno, não são conhecidos grandes autores médicos. No século IV, Oribasius de Bizâncio (325-403) escreve uma grande enciclopédia médica, em grego, sem acrescentar muita coisa a Galeno e outros autores antigos.

Apesar do desinteresse geral pelo estudo e pelo conhecimento erudito, alguns autores conservaram a tradição greco-romana. Um dos mais importantes foi Isidoro de Sevilha, que viveu aproximadamente entre os anos 570 e 636. Isidoro procurou compilar todo tipo de conhecimento, escrevendo uma espécie de enciclopédia. Entre muitos outros assuntos, ele tratou também da Medicina.

Isidoro se baseia principalmente em Galeno. Ele expõe e defende a doutrina dos quatro humores, sendo a saúde uma proporção harmoniosa entre as qualidades.

Apesar dessa base teórica, Isidoro aceita a existência de contágio – provavelmente, baseando-se no conhecimento popular. Por exemplo, ao descrever a hidrofobia, ele afirma:

Hidrofobia quer dizer medo da água, pois os gregos chamavam a água de “hudor”, medo de “phobos” (…). Ela surge ou pela mordida de um cão raivoso, ou por causa da espuma que cai do ar ao chão.

Se um homem ou animal a tocar, ele imediatamente se tornará demente ou também ficará raivoso.

Ou seja: o contato direto (pela mordida) ou indireto (pela saliva espumante) pode transmitir a doença. Mas como poderia uma harmonia entre os humores ser quebrada por um contato com a saliva do cão raivoso? É difícil conciliar o fato, de conhecimento popular, com a teoria.

Ao falar da peste, Isidoro também admite o contágio:

A praga [pestilentia] é um contágio que, ao atingir uma pessoa, se espalha rapidamente para várias outras. Ela surge do ar corrompido [corrupto aëre], e penetrando nas vísceras se estabelece nelas.

Embora esta doença geralmente surja por potências aéreas, no entanto ela nunca pode surgir sem a vontade do Todo Poderoso Deus.

Nota-se aqui idéias semelhantes às de Lucretius, embora menos elaboradas.

Houve, no período medieval, um grande aumento da lepra, na Europa. Sabia-se que essa enfermidade era contagiosa, e os leprosos eram banidos da sociedade.

Somente podiam se aproximar de outras pessoas tocando matracas, para que todos pudessem reconhecê-los e prevenir-se do contágio.

A influência do cristianismo na Medicina, durante essa fase, foi negativa. Ressurgiu fortemente a idéia de que a doença era o fruto do pecado.

A possessão pelos demônios e a feitiçaria também eram aceitas como causas de enfermidades. Assim sendo, o tratamento principal era pelo arrependimento, pela oração, sacrifícios, etc.

O uso de remédios se torna secundário, e deveria ser acompanhado pela oração, como esta, recomendada pelo médico cristão Aetius de Amida (século VI): “Que o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, dê a este medicamento o poder.”

Nesse período – e especialmente no século VII – surge o culto popular aos santos curadores. Cosme e Damião, dois irmãos cristãos que haviam sido mártires na Sicília, tornam-se importantes santos médicos.

Posteriormente, São Sebastião e São Roque são invocados contra a praga . As peregrinações ou o contato com objetos sagrados são considerados como excelentes para produzir curas de doenças graves.

Os textos médicos medievais europeus, até o século IX, são em geral compilações simplificadas, tiradas em geral de fontes gregas. Alguns são simples listas de drogas e suas indicações.

Torna-se cada vez mais rara a leitura das obras originais de Hipócrates ou Galeno, nessa época.

A Medicina, como profissão, praticamente desaparece. O povo mantém certo conhecimento popular de uso de ervas, aliado a práticas de magia das curandeiras.

Quando esses recursos não bastam, recorre-se aos mosteiros, onde os religiosos mantinham assistência espiritual e médica aos doentes. É uma época em que predomina, portanto, a Medicina monástica.

Vários mosteiros foram criados especificamente para dar apoio aos doentes. Um deles foi o de Monte Cassino, na Itália, fundado em 529.

Os monges tinham a obrigação de estudar as versões latinas simplificadas de Hipócrates e de Galeno, e estudar a obra sobre remédios de Dioscorides. Os monges copiavam os textos clássicos, para preservá-los e para vendê-los a outros mosteiros. Em outros locais da Espanha, França, Irlanda e Alemanha, surgiram outros mosteiros médicos semelhantes. Alguns formaram grandes bibliotecas, como o mosteiro de S. Gall, na Suiça, que tinha seis mil livros médicos, no século IX.

De um modo geral, o interesse principal dos mosteiros continuava a ser a religião, mas em alguns casos o estudo da Medicina deve ter se tornado excessivamente importante. Assim, em 1130, o concílio de Clermont proibiu a prática da Medicina aos monges, pois ela os distraia das obrigações principais.

MEDICINA ÁRABE

Ao mesmo tempo em que se desenvolvia na Europa a Medicina monástica, formava-se e espalhava-se pelo mundo a grande civilização islâmica.

O islamismo se inicia no século VII. Data de 622 a fuga de Muhammad (Maomé) para Meca. Esse movimento religioso se espalha com enorme velocidade e força, conquistando grande parte do mundo em menos de dois séculos. O domínio árabe se estendeu por todo o norte da África e, para leste, pelo Oriente Médio, Mesopotâmia, Pérsia e norte da Índia. A oeste, os árabes penetraram na península ibérica e tomaram a maior parte do território onde atualmente estão Portugal e Espanha.

No século IX, há dois grandes centros políticos, religiosos e culturais do mundo árabe: Bagdá (da antiga Pérsia) ao leste, com uma população de 800.000 pessoas; e Córdova (na atual Espanha), a oeste, com 500.000 habitantes. A unidade dessa vasta civilização era proporcionada pela religião islâmica e pelo idioma árabe.

A cultura médica dos árabes era, inicialmente, do mesmo tipo que estudamos em outras civilizações: de tipo religioso e mágico. Os escritos do início do islamismo mostram que se dava grande valor a amuletos, talismãs e fórmulas mágicas, na cura de doenças.

Gradualmente, no entanto, a civilização árabe se transforma. Durante sua expansão para leste e oeste, os árabes entram em contato com a tradição grega e helenística, egípcia, mesopotâmica e indiana.

Surge um grande interesse pelo estudo dessas tradições – especialmente pelo pensamento grego. As mais importantes obras antigas são traduzidas e comentadas pelos árabes e passam a circular pelo mundo islâmico.

O idioma árabe se torna, na época, o idioma científico e filosófico mundial.

O estudo e a reflexão sobre o pensamento antigo levaram a um rápido florescimento da cultura árabe. No campo da Medicina, logo surgem não só comentários sobre Hipócrates e Galeno, mas também trabalhos originais.

Na Pérsia, destacam-se Rhazes e Avicena. Rhazes ou Al Rhazi (860-932) nasceu perto do lugar onde agora é Teeran. Escreveu sobre varíola e malária.

Introduziu na Medicina o álcool e a tintura de mercúrio. Avicena ou Ibn Sina (980-1063) escreveu uma famosa obra: o “Qanun” ou “Canon”, que serviu de base à Medicina durante séculos.

No ocidente árabe – em Córdova – os mais importantes autores médicos são de um período posterior: Averroes ou Ibn Ruschd (1126-98) e seu estudante, o judeu Moses Maimonides (1135-1204).

Ambos foram eminentes filósofos, fortemente influenciados pelo pensamento de Aristóteles.

De um modo geral, os pensadores árabes respeitavam e seguiam as autoridades clássicas. Tinham um bom conhecimento de plantas e remédios, mas davam pouca importância à anatomia e cirurgia.

Vamos dar uma amostra da Medicina árabe, através de alguns trechos do “Canon” de Avicena. Ao discutir as febre pestilenciais, Avicena as associa à transformação e apodrecimento do ar e da água. Nesse sentido, suas idéias se assemelham às dos autores romanos que mencionamos anteriormente.

A água não apodrece, segundo Avicena, por sua própria natureza simples, mas sim apenas quando está misturada a corpos terrestres malignos, que a permeiam e que admitem as qualidades ruins. Da mesma forma, o ar não apodrece segundo sua própria disposição simples, mas apenas quando se misturam a ele certos vapores malignos.

Esta é a causa dos ventos que trazem para os lugares bons, fumaças malignas de lugares longínquos, nos quais existe água estagnada ou de pântanos, alterada pela podridão; ou na qual existem corpos de cadáveres corrompidos, das lutas; ou corpos não sepultados nem incinerados de mortos pela peste (…)

Certas causas desconhecidas também poderiam trazer das profundezas da terra para fora a podridão, que se espalharia pela água e pelo ar. De um modo geral, Avicena afirma que as pestes surgem pelo ar úmido e turvo, sendo mais raras no tempo seco – exceto o cólera, que ele afirma se multiplicar exatamente quando o ar está seco.

Dessa forma, segundo Avicena, o clima interfere no surgimento das doenças pestilenciais, apenas de um modo indireto. A causa não é o próprio estado seco ou úmido, frio ou seco.

Isso apenas contribui para o surgimento e difusão da podridão, que seria a verdadeira causa das enfermidades.

Referindo-se à tradição dos hebreus, Avicena indica que vários fenômenos naturais servem para se prever o surgimento da peste: a grande multiplicação de rãs, o surgimento de muitos répteis a partir da podridão, o surgimento de ratos e outros animais subterrâneos sobre a terra, a fuga de pássaros abandonando seus ovos no ninho, e gado caminhando como se estivesse embriagado.

A causa primeira de todas essas doenças, segundo Avicena, vem dos astros e de suas formas. Sempre surgem essas doenças quando há certas configurações celestes e existem as disposições terrestres adequadas.

Os sinais celestes principais seriam o surgimento de halos em volta do Sol e da Lua; aparição de fogos no céu; estrelas cadentes e cometas.

E quando se fazem as virtudes necessárias dos agentes celestes, e as virtudes passivas terrestres, pela forte umidificação do ar, elevam-se para ele vapores e fumaças, que nele se espalham, e o putrefazem com fraco calor.

Avicena dá vários detalhes sobre os sinais atmosféricos da peste, para cada uma das estações. Como a doença é trazida por substâncias putrefatas misturadas no ar, um sinal importante é que a atmosfera fica turva, enevoada ou enfumaçada – por exemplo, frio com pó e sem chuvas. Se no verão faz frio de noite, e durante o dia um calor forte e sufocante, estando o ar conturbado, pode-se esperar o surgimento da peste, febres pestilenciais, varíola e enfermidades semelhantes.

O ar putrefato é inalado e, segundo Avicena, atinge o coração e daí se espalha por todo o corpo, podendo também se comunicar a outras pessoas:

E quando o ar está deste modo, atinge o coração, no qual corrompe a estrutura do espírito que nele está, e putrefaz toda a umidade que o circunda, (…) e espalha pelo corpo sua causa de fluidez, fazendo a febre pestilencial. E ela se comunica a muitos homens, que possuam em si mesmos a propriedade preparatória.

Pois se existe o agente, mas o paciente não está preparado, não ocorrem a ação e o efeito.

É interessante como Avicena tenta explicar a predisposição ao contágio. Aqui, ele faz intervir a teoria dos humores: o corpo está preparado para a doença se estiver cheio de humores maus, ou se estiver debilitado (por exemplo, pelo excesso de atividades sexuais), ou mesmo se os seus poros estiverem dilatados por banhos quentes.

Ao discutir a cura das febres pestilenciais, Avicena indica a necessidade de “secar” o corpo, ou seja, diminuir sua umidade.

A justificativa parece ser a de que toda putrefação só ocorre na presença de umidade e portanto, diminuindo a umidade, diminui-se a possibilidade de que as substâncias do corpo apodreçam. Inicialmente, ele indica que se deve produzir a evacuação do ventre. Se surgir nesse processo alguma matéria sanguínea, isso indicaria a necessidade de sangria. Se surgirem outros humores, seria necessário produzir novas evacuações.

A prevenção das pestes parte do mesmo princípio. Deve-se extrair do corpo toda umidade supérflua. Para isso, é necessário restringir as bebidas, os alimentos e os banhos.

Recomenda fortemente o uso de vinagre nos alimentos, para impedir sua putrefação. Além disso, recomenda a administração dos antigos antídotos: teriaga e mitridata.

Além de cuidados médicos com o próprio doente, Avicena indica que é necessário “refrigerar” sua casa, e corrigir o ar. A “refrigeração” da casa consiste em utilizar substâncias consideradas “frias”.

Ele indica o uso de água de rosas, sândalo, cânfora, limão, água de romãs, vinagre e outras substâncias aromáticas.

Segundo Avicena, a correção do ar pestilencial é útil tanto para os sãos quanto para os enfermos. Consiste em produzir bons odores, impedindo sua putrefação com qualquer coisa disponível – aloé, âmbar, almíscar, láudano, cipreste, louro, etc. Recomenda aspergir a casa com vinagre, e fazer fumigações com sândalo, cânfora, mirra e outras substâncias.

De um modo geral, as recomendações de Avicena são coerentes com a idéia de que as pestes são trazidas pela putrefação. No entanto, como foi indicado acima, ele também indica o uso de antídotos (como a teriaga) para proteger contra a peste. Isso parece indicar uma mistura de duas idéias: a da putrefação e a de venenos. Na verdade, para Avicena, as duas idéias estão intimamente relacionadas. Pode-se verificar isso estudando, por exemplo, sua descrição sobre a raiva.

Segundo Avicena, os cães, macacos e outros animais podem se tornar raivosos “quando sua constituição se transforma em um predomínio da bílis negra maligna, venenosa”. Essa transformação se dá por causa do ar, de alimentos ou da água. O calor excessivo pode endurecer seus humores, produzindo a raiva no outono; ou então, o frio excessivo pode congelar seu sangue, no inverno, produzindo também a raiva pela produção de bílis negra. Porém, a raiva também poderia surgir quando o animal comesse outros animais mortos em decomposição, ou bebesse água podre, pois isso levaria seus humores a se transformarem em bílis negra putrefata.

Portanto, a putrefação produz também venenos, e por isso a indicação de antídotos nas pestes é coerente, de acordo com as concepções de Avicena.

Percebe-se em Avicena um conhecimento e uso da teoria hipocrática e galênica dos humores, acrescentando no entanto muito elementos novos.

O RENASCIMENTO CULTURAL DA IDADE MÉDIA

A partir dos séculos XI e XII, os europeus iniciam a tradução de muitos textos antigos, conservados pelos árabes, e de obras árabes originais, para o latim. O “Canon” de Avicena, por exemplo, foi traduzido por Gerard de Cremona (1140-1187), em Toledo (Espanha). Através dos árabes, os europeus redescobriram Hipócrates, Galeno, Aristóteles e muitos outros autores que já não eram mais lidos.

Foi principalmente por causa dessa influência que ressurgiu o interesse pelo estudo, na Europa. No século XII, são criadas as primeiras universidades: Paris, em 1110; Bolonha, em 1113; Oxford, em 1167; Montpellier, em 1181; Pádua, em 1222. Nas universidades, os estudos médicos seguiam principalmente as obras de Galeno e de Avicena.

Os médicos formados pelas universidades, nesse período, eram poucos. Em Paris, eram apenas 6 em 1296, e 32 em 1395, para uma população de cerca de 250.000 pessoas.

A prática médica continuava na mão de leigos.

Ao mesmo tempo, surgem escolas médicas desvinculadas tanto dos mosteiros quando das universidades, como a famosa escola de Salerno, criada no século XII.

A escola de Salerno produziu, no século XIII, uma obra em versos sobre a manutenção da saúde, que se tornou muito popular, difundindo-se por toda a Europa.

Essa obra se chamava “Regimen sanitatis Salernitanum” . Esse livro constitui uma boa amostra da Medicina européia da alta Idade Média.

Os versos dessa obra dão variados conselhos para a conservação da saúde. Uma parte dos conselhos se refere à alimentação: não beber muito vinho, não comer muito à noite, etc.

A obra contém recomendações detalhadas, como a de levantar cedo pela manhã, lavar as mãos e olhos com água fria, espreguiçar-se de modo suave, pentear os cabelos, esfregar os dentes, caminhar, etc. s

Quanto à alimentação, o “Regimen” apresenta uma série de restrições: só comer quando o estômago estiver vazio da refeição anterior; evitar peras, maçãs, pêssegos, leite, queijo, carnes salgadas, carne de cervo, de égua, de vaca e de bode, especialmente quando estiver doente.

Uma importante preocupação do “Regimen” de Salerno é com alimentos capazes de preservar de enfermidades:

Seis coisas que aqui serão descritas
Possuem um poder secreto contra todos os venenos:
Pera, alho, raizes de rabanete, nozes, nabo e ruta,
Principalmente alho; pois aquele que o comer,
Pode beber, e não se preocupar com quem fez sua bebida;
Pode caminhar todas as horas por ares infectados.
Como o alho possui portanto poderes de salvar da morte,
Suporte-os, embora produzam um hálito desagradável:
E não zombe do alho, como alguns que pensam
Que ele apenas faz os homens piscarem, beberem e federem.

O que são os “ares infectados” de que o “Regimen” fala? O próprio livro explica que são ares impregnados por maus odores, capazes de produzir doenças: “É certo que a infecção vem principalmente pelo cheiro”.

No entanto, ao contrário de Avicena, o “Regimen” não acredita que o uso de perfumes possa superar a infecção do ar. Ele recomenda simplesmente viver longe de qualquer lugar de onde possa provir o ar infectado:

No entanto, para os quartos de sua moradia, dá esta orientação:
Em casas onde você pensa fazer sua residência,
Que perto da mesma não haja cheiros ruins,
Ou água podre, ou excrementos,
Que o ar seja claro e limpo, e livre de fendas
Que venham de passagens secretas e cavernas.

Embora existam certas idéias gerais por trás do “Regimen”, observa-se que nesta e em outras obras populares do período aparecem inúmeras receitas e indicações práticas que não se baseiam em nenhuma teoria.

Vamos mostrar um exemplo tirado de outra obra: o “Tesouro dos pobres”, escrito no século XIII.

Esse livro é de autoria de um português, conhecido como Petrus Hispanus, que em 1277 tornou-se papa (João XXI).

O “Tesouro dos pobres” é um receituário com indicações para muitas doenças comuns. Uma delas é o carbúnculo ou antraz – uma doença atualmente considerada como transmissível e que se caracteriza pelo aparecimento de manchas que lembram carvões.

Contra o antraz. Primeiramente faça-se uma sangria no lugar em que está o antraz. Se a matéria vier da parte de cima do pescoço, faça-se a sangria da veia hepática. Se for do lado do coração, [faça-se da veia] cardíaca; feito isso, prepare para si o seguinte remédio: colocar por cima farelos cozidos com vinagre; da mesma forma, colocar alhos amassados com sal, siler e amoníaco, colocando por cima dissolvido em vinagre.

Também vale beber ou colocar em volta teriaga.

Também vale colocar diamante ou safira perto de qualquer pessoa. Também colocar por cima a crista de galo ou galinha atrai o veneno. Antes de colocar tudo isso, verifique se há lá veneno e atraia o mesmo com linha ou outra coisa. Repita-se, para não ficar lá, e aplique-se em volta ceruso, isto é, alvaiade, diluída com óleo de rosas, suco de erva-moura e um pouco de farinha de cevada; e aplique-se em um ponto sadio. Também dizem que a consolta menor triturada entre duas pedras, por milagre divino, cura o antraz.

Diz-se que aplicar por cima dos carbúnculos gemas de ovo cruas, trituradas com igual quantidade de sal, faz bem.

Esse é o estilo geral dos receituários medievais. Talvez algumas das indicações fizessem algum efeito benéfico. A maior parte era provavelmente inócua ou mesmo prejudicial.

AS GRANDES PESTES MEDIEVAIS

No final da Idade Média e no Renascimento a Europa foi varrida por grandes pestes, de diversos tipos. Existem motivos históricos para o surgimento dessas epidemias, nessas épocas. Durante a Idade Média, as cruzadas cristãs colocaram os europeus em contato com outros povos e com doenças desconhecidas, para as quais o organismo europeu não tinha nenhuma resistência. No Renascimento, as grandes navegações tiveram um efeito semelhante.

Uma das mais terríveis epidemias medievais foi a peste negra. Iniciou-se em 1347 ou 1348 e estima-se que matou 1/3 da população da Europa. Parece ter sido uma combinação de peste bubônica e pneumonia.

Como ocorreu em outras ocasiões semelhantes, as antigas teorias médicas não conseguiram explicar essa peste. Galeno não falava sobre nada parecido. Todos percebiam que a peste passava de uma pessoa para outra, mas a Bíblia falava mais sobre contágio do que qualquer médico grego.

Mesmo sem ter uma base teórica, era necessário agir. Imaginou-se que o melhor modo de impedir que a doença atingisse uma região seria proibir a entrada de pessoas já doentes.

Mas as pessoas poderiam estar doentes sem sabê-lo e sem manifestar nenhum sintoma.

Como distinguir os sãos dos doentes?

A idéia que surgiu foi isolar todas as pessoas que estivessem vindo de locais infectados e esperar durante vários dias, para verificar se surgiam nelas os sinais da peste. Se surgissem, não poderiam entrar. Se não surgissem, a pessoa poderia entrar na cidade.

A cidade de Ragusa, perto de Veneza elaborou nessa época a primeira legislação exigindo uma quarentena (de 40 dias) para viajantes que viessem de lugares infectados. Não havia, é claro, nenhuma base médica para esse número, 40. Provavelmente, os legisladores se inspiraram no período hebraico de impureza das mulheres após o parto.

Um médico da época, Guy de Chaliac, assim descreve a peste negra em Avignon, em 1348:

A mortalidade começou entre nós no mês de janeiro e durou sete meses. Foi de dois tipos. O primeiro durou dois meses. Era caracterizado por uma febre contínua e por cuspir sangue; as pessoas morriam dela em três dias. A segunda durou durante o resto do tempo. Também era caracterizada por uma febre contínua e por apóstemas [inchações], carbúnculos e tumores nas partes externas, principalmente nas axilas e virilhas. E as pessoas morriam dela em cinco dias.

Era tão contagiosa (especialmente a que incluiu cuspir sangue) que um homem a pegava de um outro não apenas quando vivia junto, mas simplesmente por olhar para ele.

Por isso as pessoas morriam sem servidores e eram enterradas sem padres. O pai não visitava o filho, nem o filho [visitava] o pai. A caridade estava morta e a esperança caída.

Havia, portanto, a percepção de que a peste era contagiosa, mas o medo era tanto que se acreditava poder adquirir a enfermidade até pelo olhar.

Guy de Chauliac conta que essa epidemia se iniciou no oriente e se espalhou pelo mundo todo. Ele estima que 3/4 da população morreu com a peste. Ele próprio foi vítima dela, ficando doente durante seis semanas, mas sobreviveu.

Na época, segundo o mesmo autor, houve lugares em que se supeitou que a doença havia surgido porque “os judeus envenenaram o mundo”, e por isso mataram todos os judeus da região.

Outros acreditaram que os pobres mutilados eram os responsáveis, e os expulsaram. Ninguém compreendia a doença e os médicos nada podiam fazer contra ela. No entanto, Guy de Chauliac tinha uma explicação para a peste: a influência dos astros, que modificou o ar e atuou sobre os humores do corpo humano.

Seja o que for que o povo diga, a verdade é que a causa dessa mortalidade era dupla: uma ativa e universal, outra passiva e particular.

A causa ativa e universal foi a disposição de uma certa conjunção importante de três corpos celestes – Saturno, Júpiter e Marte – que ocorreu no dia 24 de março de 1345, no décimo quarto grau de Aquário . Pois (como já disse em meu livro sobre astrologia) as conjunções mais importantes são presságios de eventos maravilhosos, poderosos e terríveis, como mudança de governantes, o surgimento de profetas e grandes mortalidades. Dependem do signo e do aspecto dos corpos em conjunção. Não deve vos espantar, portanto, que tal importante conjunção tenha significado uma horrível mortalidade, pois foi não apenas uma grande [conjunção], mas uma das maiores. O signo era humano e por isso ele anunciou sofrimento para a humanidade. E por ser um signo fixo, significava longa duração. Pois [a mortalidade] começou no Oriente, um pouco depois da conjunção, e ainda estava no Oeste em 1350. Ela [a conjunção] modificou o ar e os outros elementos de tal forma que, como o ímã move o ferro, ela moveu os humores espessos, quentes, venenosos; e reunindo-os dentro do corpo, criou lá apóstemas. Daí decorreram as febres contínuas e o cuspir sangue no início, quando essa matéria corrompida era forte e perturbava o estado natural. Então, quando perdeu sua força, o estado natural não ficou tão perturbado e expeliu aquilo que conseguiu, principalmente nas axilas e virilha, assim causando bubões e outros apóstemas. Assim, os apóstemas externos foram efeitos dos internos.

A causa particular, passiva, foi a disposição de cada corpo, tal como debilidade, cacoquimia ou obstrução, da qual os trabalhadores e os pobre morreram.

O autor afirma que para se prevenir contra a doença, “nada era melhor do que fugir do lugar antes de ficar infectado”. Também recomenda purgantes, sangrias para diminuir o sangue, purificar o ar com fogo e fortificar o coração com a teriaga, frutos e coisas perfumadas; fortificar os humores com o “bolus” da Armênia e resistir à putrefação com coisas ácidas. Para curar os doentes, tentava-se utilizar sangrias e evacuações, além de remédios. Fazia-se os apóstemas externos “madurarem” por meio de figos e cebolas cozidas, misturados com fermento e manteiga. Depois, eles eram abertos e tratados como uma úlcera. Aplicavam-se no tumores ventosas, depois eram escarificados e cauterizados.

Guy de Chauliac elaborou uma teriaga especial para essa peste, seguindo os ensinamentos de Arnaldo de Villanova e dos médicos de Paris e Montpellier. O remédio era composto por mais de 40 substâncias diferentes, incluindo noz moscada, gengibre, zedoária, raiz de genciana, sálvia, menta, limão, “osso de coração do cervo”, raspas de marfim, safira, esmeralda, coral vermelho, aloés, sândalo, conserva de rosas, conserva de nenúfares e outros materiais variados.

Apesar de teriagas milagrosas como essa, de nada adiantou a fértil imaginação dos médicos, diante da peste. A destruição foi imensa.

Esta e outras pestes tiveram enorme efeito sobre o povo, que passou a viver temendo pela próxima epidemia mortal. O desconhecimento das causas das doenças levava a todo tipo de especulação. Nesse período, a astrologia médica fez grande sucesso; a religião utilizou as pestes para lembrar aos pecadores que deviam temer a Deus; e ressurgiram com muita força as crenças em poderes mágicos ou diabólicos como causadores de enfermidades.

Os inquisidores indicam que as bruxas são capazes de causar todo tipo de enfermidades, e que os próprios médicos jamais excluem a possibilidade de que alguma enfermidade seja produzida por feitiçaria:

Ora, não há enfermidade do corpo, nem mesmo qualquer forma de lepra ou de epilepsia, que não possa ser causada pelas bruxas, com a permissão de Deus. Prova-o o fato de que não há uma enfermidade que seja, nesse aspecto, isentada pelos médicos.

Basta a consideração cuidadosa do que já dissemos a respeito dos poderes diabólicos e da perversidade das bruxas para que não encontremos qualquer dificuldade nesse enunciado.
(…)

[Santo Isidoro] acrescenta que, sem fazer uso de qualquer peçonha, pela mera virulência de seus encantos, conseguem tirar dos homens sua própria vida.

O “Malleus maleficarum” está repleto de exemplos do poder das bruxas, como estes:

Na diocese de Constance, entre Breisach e Freiburg, há uma leprosa (…) que costumava contar a muitas pessoas o que lhe acontecera por ter travado discussão com uma outra mulher. Certa noite, após a discussão, teve de ir à frente da casa por algum motivo. No mesmo instante, veio da casa da tal mulher, oposta à sua, um vento quente que aatingiu no rosto e a contaminou com lepra, mal de que padece desde então.

Por fim, na mesma diocese, no território da Floresta Negra, uma bruxa estava sendo suspensa pelo carcereiro sobre a pilha de lenha da fogueira onde seria queimada, quando então lhe disse:

Eu te pagarei! – e em seguida soprou no rosto do homem. Instantaneamente, viu-se o miserável afligido por horrível forma de lepra que lhe cobriu o corpo e não o deixou viver por muitos dias. Por brevidade, os muitos e tenebrosos crimes dessa bruxa e muitos outros casos semelhantes são aqui omitidos.

Basta mencionar os muitos casos que ouvimos de pessoas acometidas de epilepsia ou de mal-caduco que o foram por meio de ritos mágicos: por meio de ovos enterrados junto a certos cadáveres, normalmente com os cadáveres de bruxas, a par de outras cerimônias das quais não podemos falar, em que tais ovos eram dados às ví-timas junto com alimento ou bebida.

Vê-se que mesmo doenças bem conhecidas, que se sabia serem contagiosas, como a lepra, eram atribuídas à magia.

Os poderes das bruxas, é claro, não se limitavam a produzir doenças. O livro descreve vários casos de pessoas transformadas em animais pelas feiticeiras, além de muitos outros poderes fantásticos, como produzir tempestades.

Como todas as enfermidades podem ser causadas pela magia, todas elas podem também ser combatidas por orações e por exorcismos:

Já foi dito que as bruxas são capazes de afligir os homens com todo tipo de enfermidades físicas. Pode-se, portanto, considerar como regra geral que os vários remédios verbais ou práticos a serem aplicados contra essas enfermidades são igualmente aplicáveis a todas as demais, como contra a epilepsia, a lepra, entre outras.

O “Malleus maleficarum” indica alguns dos modos de combater as doenças produzidas pela magia:

Nider, no primeiro capítulo de seu Praeceptorium, diz que é lícito benzer o gado, da mesma forma que o é aos homens doentes (…).

Pois diz que quando uma pessoa ou uma virgem devota benze uma vaca com o sinal-da-cruz, rezando um pai-nosso e a saudação angelical, toda a obra demoníaca que sobre ela se abate é afastada, se tiver sido causada por bruxaria.

As diferenças entre doenças naturais e sobrenaturais ficam muito diluídas.

As ervas e outros remédios podem servir para preservar ou curar de doenças, mas como elas funcionam?

Os inquisidores sugerem que elas servem para fortalecer a pessoa e aumentar sua resistência ao demônio. Dessa forma, se uma pessoa se cura através de remédios, isso não quer dizer que a enfermidade era natural – poderia ter sido também um efeito de feitiçaria. Por precaução, era conveniente acompanhar qualquer tratamento médico por orações e por apelos aos santos e a Deus, para que eles fossem realmente eficazes.

Nessa época, o número de supostas bruxas capturadas e queimadas pelo Inquisição atingiu dezenas de milhares. É natural que, nesse tipo de clima cultural, a busca de uma compreensão médica das doenças e de sua transmissão ficasse em segundo plano.

Alguns trechos do Malleus maleficarum mostram que os inquisidores aceitavam, nessa época, algumas concepções astrológicas. Desde o final da Idade Média, por influência árabe, a astrologia havia adquirido grande influência na Europa. Um dos astrólogos árabes mais influentes foi Albumasar, ou Abu Ma’shar de Bagdá (século X). Traduzido para o latim, ele influenciou fortemente o desenvolvimento da astrologia européia. Na Espanha e depois em Portugal, após a invenção da imprensa de tipos móveis, surgiram obras muito populares, os chamados “Reportórios dos tempos”, que divulgaram essas idéias. Essas obras davam indicações sobre as épocas e condições adequadas para o plantio e colheita, relações entre os astros e o clima, etc.

Grande parte dessas obras era destinada à astrologia médica, indicando as condições celestes capazes de produzir doenças, bem como as épocas adequadas para utilizar sangrias ou purgantes.

Em 1585, o português André do Avelar publicou um “Reportório dos tempos” que copiou do espanhol Jerônimo Cortês, que por sua vez se baseou em Abulmasar.

A obra é repleta de indicações sobre os sinais que anunciam o surgimento das tão temidas pestes:

Em tempo de algum eclipse, se aparecer algum sinal de cor negro, verde ou ruivo, ou de muitas cores, denota peste.

Peste é certa quando venta sul, e não chove, e se vai e torna, e não chove, e a pedaços faz frio, e às vezes calma, e começa a chover, e se vai, então é sinal de peste, pintas e ruins enfermidades.

Peste se espera quando no verão faz seco, e no estio frio e úmido, e no outono muita calma e fogos, e no inverno muita secura e calor.

Rãs e ratos, e todos os répteis, quando se multiplicam e andam por cima da terra, e há muitas moscas, é sinal de peste.

Quando as aves abandonam seus ninhos e fogem, denota peste.

Aves noturnas se saem de dia muitas, como atônitas, denota peste.

Observando-se os acontecimentos atmosféricos ou astronômicos dos primeiros dias do ano, seria possível prever tudo o que aconteceria nos meses seguintes. Por exemplo:

No 11o dia, se ventar pela manhã, haverá muita abundância de peixes, com guerras, e se de noite ventar, haverá peste. O 12o dia se for sereno, denota multidão de ovelhas, e se for ventoso significa peste. O 13o dia se for sereno, promete grandes tempestades, e se de noite correrem ventos, morrerão muitas ovelhas e cabras. O 14o dia se tiver o sol um resplandor excessivo, extraordinário, e de noite ventar significa peste, e cópia de enfermidades. O 15o dia se for sereno e com ventos de noite significa guerras.

Os eclipses eram sempre sinal de catástrofe. Seu significado dependia do signo em que ocorresse. Se houvesse um eclipse nos signos do fogo (Áries, Leão, Sagitário), haveria guerras, lutas, “desterro de algum príncipe, prisões em gente vulgar por muitas discórdias, incêndios, roubos, destruições, febres agudas, destruição dos frutos” e outras calamidades. Se o eclipse ocorresse nos signos do ar (Gêmeos, Libra, Aquário), haveria “fome com muitas doenças, corrupção do ar, e peste”.

Os cometas, igualmente, sempre anunciariam desgraças.

Essa tradição astrológica, iniciada na Antigüidade, manteve-se muito forte até o século XVII, declinando mas não desaparecendo nos séculos seguintes.

Houve ocasiões em que as autoridades religiosas se manifestaram contra a astrologia. Isso ocorreu, em particular, no início do século XVI.

Havia sido feita uma previsão astrológica de um grande dilúvio que aconteceria em 4 de fevereiro de 1524, quando haveria uma conjunção de Saturno, Júpiter e Marte no signo de Peixes, provocando chuvas torrenciais.

Muitos livros foram escritos para combater a previsão. Um deles é o do Frei Antonio de Beja, português. Um dos argumento que ele utiliza é que, se os astros determinassem os acontecimentos na Terra, todos os locais seriam igualmente atingidos pelas mesmas calamidades – e isso não ocorre. Uma cidade pode ser atingida pela peste sem que ela apareça nas cidades vizinhas.

Observamos aqui cada dia ser uma cidade e vila destruída por peste, e outra muito chegada e vizinha dela, ficar totalmente sadia, sem nenhum dano. Como há pouco tempo, que por castigo celestial e merecimento de nossas maldades vimos na nobre cidade de Lisboa, onde morreram milhares cada dia. Em alguns lugares muito chegados a ela, esse mal não tocou.

Apesar de críticas religiosas à astrologia, pode-se dizer que a religião católica foi muito tolerante e jamais perseguiu os astrólogos como fez com as bruxas e feiticeiros. A Medicina, por sua vez, admitia a importância da astrologia para explicar as epidemias, através de influências climáticas, pois isso estava de acordo com a tradição galênica e hipocrática. Certamente essa tradição astrológica dificultou a compreensão das causas bem terrestres de doenças transmissíveis.

BRUXARIA, ASTROLOGIA E DOENÇAS

Durante a Idade Média e no Renascimento, a crença nos poderes mágicos ou demoníacos como causa de enfermidades se torna muito forte. Foi especialmente durante a Inquisição, com a caça às bruxas, que se tornou claro como essas crenças eram fortes e difundidas.

Um dos mais importantes documentos sobre o assunto é o “Malleus maleficarum” (o martelo das malditas, ou das feiticeiras). Esse livro, escrito em 1484, foi um manual escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger – dois dominicanos, professores de teologia. Parece ter sido o trabalho mais utilizado pelos inquisidores de toda a Europa, que o empregavam como orientação para interrogar e julgar as feiticeiras. Apesar de escrita em uma época em que a cultura européia já estava bem mais desenvolvida, essa obra mostra antigas idéias sobre o poder da magia.

Os autores do “Malleus maleficarum”, Kramer e Sprenger, receberam para seu trabalho amplos poderes do papa Inocêncio VII. Ao incumbi-los de sua missão inquisitorial, o papa escreve em uma bula de 9 de dezembro de 1484:

(…) Chegou-nos recentemente aos ouvidos, não sem que nos afligíssimos na mais profunda amargura, que em certas regiões da Alemanha do Norte (…), muitas pessoas de ambos os sexos, a negligenciar a própria salvação e a desgarrarem-se da Fé Católica, entregaram-se a demônios, a Íncubos e a Súcubos , e pelos seus encantamentos, pelos seus malefícios e pelas suas conjurações, e por outros encantos e feitiços amaldiçoados e por outras também amaldiçoadas monstruosidades e ofensas hórridas, têm assassinado crianças ainda no útero da mãe, além de novilhos, e têm arruinado os produtos da terra, as uvas das vinhas, os frutos das árvores, e mais ainda: têm destruído homens, mulheres, bestas de carga, rebanhos, animais de outras espécies, parreirais, pomares, prados, pastos, trigo e muitos outros cereais (…)

Como se vê, o próprio Papa acreditava que as bruxas e feiticeiros, com auxílio do demônio, destruiam plantações e arrasavam animais e pessoas. Kramer e Sprenger discutem, com ampla erudição, se de fato existe esse poder e se as doenças e epidemias não teriam apenas outras causas naturais, como por exemplo a influência dos astros:

Há quem defenda que toda tansformação que se dá no corpo humano – para a saúde ou para a doença, por exemplo – pode ser reduzida à questão das causas naturais, conforme Aristóteles demonstrou no sétimo livro da sua Física. E dessas causas a maior é a influência dos astros em cujo movimentoos demônios não têm o poder de interferir: isso só Deus pode fazer.

No entanto, contra essa opinião, os inquisidores apresentam a autoridade religiosa:

Santo Agostinho nos serve de testemunha ao dizer: “Existem, com efeito, feitiços, malefícios e encantamentos diabólicos, que não só fazem adoecer os homens como também os matam”.

Os inquisidores não colocam em dúvida a influência dos astros sobre as enfermidades. Eles aceitam, por exemplo, que os cometas são criados por Deus para prenunciar a morte dos reis:

São João afirma que os cometas não são criação natural, nem são astros encontrados no firmamento; por isso nem seu significado nem sua influência são naturais.

Diz-nos ele que os cometas não são astros criados desde o princípio, mas sim criados para uma ocasião particular, depois se dissolvendo por ordem divina. Essa a opinião de S. João Damasceno. Deus, porém, através desses sinais, prenuncia a morte de reis e não de outros homens não só porque os reis são pessoas públicas, mas também porque da sua morte pode sobrevir a confusão em seus reinos.

E os Anjos são mais diligentes na sua atenção para com os reis para o bem geral. Pois os reis nascem e morrem sob o cuidados dos Anjos.

Ao mesmo tempo que reconhecem a importância dos astros, os inquisidores afirmam que as pragas e enfermidades podem ser causadas pelos demônios:

Ninguém há de negar que certos flagelos e males que de fato e visivelmente se abatem sobre os homens, os animais e os frutos da terra – e que não raro decorrem da influência dos corpos celestes – podem ser muitas vezes causados pelos demônios, desde que Deus o permita.

Pode nos parecer, hoje em dia, totalmente absurdo que se atribuissem as epidemias e doenças às bruxas; isso nos parece fruto da imaginação doentia da época.

No entanto, os inquisidores reafirmam que esses poderes são reais:

Quisera Deus que tudo isso fosse irreal e meramente fantasioso para que livrássemos nossa Santa Madre Igreja da lepra dessas abominações. Infelizmente, o julgamento da Sé Apostólica, única Soberana e Mentora de toda a verdade, expresso na Bula de nosso Santo Padre, assegura-nos e nos torna cientes do florescimento entre nós de tais crimes e malefícios, e não havemos de nos abster de prosseguir com a inquisição para que não ponhamos em risco nossa própria salvação.

CAPÍTULO 6: DO PERÍODO DAS GRANDES DESCOBERTAS AO SÉCULO XVIII

AS GRANDES NAVEGAÇÕES E AS NOVAS DOENÇAS

No final do século XV e início do século XVI, as grandes navegações européias em direção à Ásia e América produziram, entre outros efeitos, grande intercâmbio de enfermidades.

Febre Amarela

A febre amarela era desconhecida na Europa, antes da época da descoberta da América. É possível que a doença seja originária da própria América, embora alguns acreditem que os próprios europeus a levaram para lá, da África.

Em 1493, por ocasião da segunda viagem de Colombo à América, houve uma epidemia no Haiti, possivelmente de febre amarela. Cerca de 80% dos espanhóis morreram.

Foi o primeiro contato dos europeus com essa enfermidade. Posteriormente, a doença se tornou bastante conhecida entre todos os conquistadores. Era caracterizada pela coloração amarela da pele do doente (que dá o nome à doença), vômitos negros, fortes dores lombares (como se tivesse levado uma pancada nas costas, na altura dos rins). Entre o terceiro e o quinto dia, a maior parte dos doentes morria.

Em 1545, houve uma grande epidemia no México, que talvez tenha sido de febre amarela. Estima-se que na cidade do México morreram 800.000 pessoas, 150.000 em Tlaxcala e 100.000 em Cholula. Em 1598, os ingleses tiveram que abandonar Porto Rico por causa da febre amarela. E bem mais tarde, Napoleão teve que desistir do Haiti e da conquista da América, pois 23.000 dos 30.000 soldados que enviou para lá, morreram de febre amarela.

A primeira descrição detalhada da enfermidade data de 1648. Um cronista da época, Lopez de Cogulludo, descreveu os sintomas da doença, que começava com uma gravíssima e intensa dor de cabeça e de todos os ossos do corpo, tão violenta que parecia que se desconjuntavam e que uma prensa os comprimia. Pouco depois, sobrevinha um calor muito intenso, ocasionando delírios em muitos, mas não em todos. Em seguida, alguns apresentavam-se com vômitos como de sangue podre, e deste, poucos ficavam vivos.

Em geral, no terceiro dia a febre cedia e os doentes pareciam bem, mas não conseguiam comer nem beber. Depois de mais um ou dois dias, morriam.

O nome “febre amarela” foi dado à doença apenas no século XVIII, para descrever um de seus sintomas – a coloração amarela da pele dos doentes. Antes disso, ela recebeu vários outros nomes, como “golpe de barra”, por causa das dores que se sentia no início e que eram semelhantes às produzidas por uma forte pancada.

Da América Central, a febre amarela se espalhou pelo mundo, levada pelos navegantes. Atingiu a América do Norte, América do Sul, Espanha, França, Inglaterra e Itália.

Cólera

Outra enfermidade que se tornou conhecida na época das grandes navegações foi o cólera. Desde o início das expedições dos portugueses à Índia, eles tomaram conhecimento do cólera que parece sempre ter grassado na região do rio Ganges. Em 1543, por exemplo, houve uma epidemia tão forte, que o escritor Gaspar Correia conta que “todos o dia dobravam sinos, e enterravam mortos de doze a quinze cada dia; e em tanta maneira que mandou o Governador que não se tangessem sinos nas igrejas, para não fazer pasmo à gente”.

A doença era chamada de “moryxy” entre os indianos, “hacaiza” entre os árabes, e recebeu o nome de “cholerica passio” entre os médicos, pois se supunha que estava envolvido o humor colérico (bílis amarela).

Os sintomas descritos pelo próprio Gaspar Correia e, na mesma época, pelo médico português Garcia de Orta, eram os seguintes: início repentino, fortes dores no abdomen, vômitos, diarréia, sede, câimbras, suor frio, pulso fraco, olhos afundados, coloração azulada sob as unhas das mãos e dos pés. Nada se fazia contra a doença, exceto vomitórios e clisteres. A morte era muito rápida: muitas vezes a pessoa morria poucas horas depois dos primeiros sintomas; outras vezes, durava dois ou três dias.

Nessa época, o cólera não se espalhou pelo mundo. Apenas no século XIX, como veremos mais tarde, a enfermidade produziu sucessivas epidemias na Europa e no restante do mundo, produzindo grande mortalidade.

Sífilis

No final do século XV, a doença que chamamos de sífilis tornou-se conhecida em toda a Europa. Ela chamou a atenção pública, pela primeira vez, durante o cerco que os franceses fizeram à cidade de Nápoles.

Por isso, os franceses chamavam a enfermidade de “doença de Nápoles”, enquanto os italianos a chamavam de “doença francesa” (morbo galico, em latim).

Muitos autores supõem que se trata de doença antiga na Europa, mas que ainda não tinha sido descrita. Outros acham que a enfermidade foi trazida da América, pela frota de Colombo.

O escritor espanhol Gonçalo Herñandez de Oviedo escreveu, em 1535:

Muitas vezes na Itália eu ria, ouvindo os italianos nos falarem sobre o mal francês e os franceses chamarem-no de mal de Nápoles. Na verdade, uns e outros acertariam o nome se dissessem o mal dos índios.

Segundo Oviedo, um dos companheiros de viagem de Colombo (Vicente Pinzon), lhe contou que no ano de 1493, quando a esquadra de Colombo regressou à Espanha, a doença começou a se manifestar entre os espanhóis e que já se sabia que ela era transmitida nas relações sexuais. Muitas pessoas morriam, pois “como a doença era coisa nova, não a entendiam nem sabiam curar os médicos”. No ano seguinte, os espanhóis enviaram tropas para auxiliar o rei Fernando de Nápoles, contra Carlos VIII da França. Entre os espanhóis devem ter ido vários sifilíticos, e a enfermidade se espalhou entre os franceses e italianos.

Com as viagens dos portugueses à Índia, a enfermidade se espalhou por lá, onde se tornou conhecida como “paranque rere”, que significa “a doença do português”.

No Brasil, já existia uma doença semelhante à sífilis. José de Anchieta diz que os índios muitas vezes tinham feridas nos órgãos sexuais, e que essa doença era transmitida às mulheres: “Não só se tornam eles feios com o aspecto horrível da moléstia, como também mancham e infeccionam as mulheres com quem se põem em contato”.

Segundo Anchieta, essa enfermidade não surgia ao acaso, mas por causa de um costume dos índios. Eles utilizavam certas lagartas finas e peludas, de corpo negro e cabeça vermelha, chamada “socaúna”.

O veneno dos pelos dessas lagartas fazia inchar a região tocada. Anchieta diz que os índios aplicavam tais lagartas aos órgãos genitais, de tal modo a estimular a ereção.

O cronista Gabriel Soares também descreve esse costume dos índios. Anchieta atribui a doença a esse costume.

Não é impossível que o microorganismo causador da sífilis tenha passado de uma lagarta à espécie humana, mas nunca foi feito um estudo científico sobre isso.

A febre amarela, o cólera e a sífilis, são doenças atualmente consideradas transmissíveis. No entanto, nada se sabia sobre elas ou sobre outras enfermidades novas, da época.

Escorbuto

Outra doença que afetou fortemente as navegações foi o escorbuto. Embora essa doença já existisse antes, foi durante as grandes viagens que se tornou conhecida, produzindo grande terror entre os marinheiros.

Na viagem de Vasco da Gama à Índia, em 1497, entre Moçambique e Sofala, começou a aparecer o escorbuto na tripulação. O cronista Lopes de Castanheda descreve que, depois de transpor o Cabo das Tormentas, Vasco da Gama acreditou já estar encontrando sinais da Índia que procurava. Por isso, colocou o nome de Bons Sinais no rio a que chegou, nas costas de Moçambique, e resolveu consertar aí os seus navios,…

(…) o que foi feito em trinta e dois dias, e o consertaram muito bem: e neste passaram nossos assaz de trabalho com uma doença que lhes sobreveio (parece que do ar daquela região) que a muitos lhes inchavam as mãos, e as pernas e os pés. E com isto lhes cresciam tanto as gengivas sobre os dentes que não podiam comer e apodreciam-lhe, de maneira que não havia quem suportasse o fedor da boca, e com estes males padeciam dores mui grandes, e morreram alguns o que pôs a gente em grande desmaio.

Na volta da Índia, a enfermidade reapareceu entre os portugueses:

(…) e mais por adoecerem os mais deles de lhe incharem as gengivas e lhes apoderecerem assim como no rio dos bons sinais e faziam-se-lhe medonhas chagas nas pernas e nos braços de que morreram trinta pessoas e os outros tanto montavam como mortos que não se podiam bolir, e com isto ia faltando a água e apertava-se a regra.

Vasco da Gama tinha 148 homens ao partir de Lisboa e retornou com 55. A maior parte dos 93 mortos pereceu de escorbuto. Como se vê, Castanheda acreditava tratar-se de uma doença do próprio local (“do ar daquela região”). João de Barros descreve a enfermidade, à qual não se dava ainda nenhum nome, e a explica de outra forma:

Por espaço de um mês que ali estiveram no corregimento dos navios adoeceu muita gende, de que morreu alguma. A maior parte foi de erisipela e de lhes crescer tanto a carne nas gengivas, que quase não cabia na boca dos homens, e assim como crescia apodrecia, e cortavam dela como em carne morta; coisa muito piedosa de ver. A qual doença vieram depois a conhecer que procedia das carnes, pescado salgado, e biscoito corrompido de tanto tempo.

Essa terrível enfermidade foi também descrita por Camões, nos Lusíadas:

E foi que de doença crua e feia
A mais que eu nunca vi, desempararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que sem o ver o creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gengivas na boca, que crescia
A carne e juntamente apodrecia.
Apodrecia com fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho infeccionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Surugião sutil menos se achava:
Mas qualquer neste ofício pouco instruto
Pela carne já podre assim cortava
Como se fora morta; e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.

Esta terrível doença, ao contrário do que se pensou na época, não é causada nem por alimentos podres, nem pelo ar infectado. Trata-se de uma carência nutricional, que atualmente descrevemos como falta de vitamina C. De certa forma, João de Barros estava certo ao associar a enfermidade aos alimentos, mas ninguém na época podia adivinhar a necessidade de frutas e de verduras na alimentação, para evitar o escorbuto.

A TEORIA DE CONTÁGIO DE FRACASTORO

A reflexão sobre diversas doenças que produziam epidemias na Europa levou alguns médicos a repensarem sobre o contágio. Talvez o mais importante deles tenha sido Girolamo Fracastoro , de Verona (1484-1553).

Como vimos no capítulo anterior, no final do século XVI a sífilis começou a se espalhar pela Europa. Transmitida sexualmente, ela se difundiu com enorme rapidez, por todas as classes sociais. Após o contágio, a enfermidade podia demorar vários meses para se manifestar – o que fazia com que se espalhasse sem ninguém notar. Produzia fraqueza, palidez, frio e dor nos membros, manchas da pele, feridas nos órgãos genitais, pústulas pelo corpo, queda de cabelo, feridas profundas e incuráveis, úlceras nos olhos, deformidades e, por fim, a morte.

Diz-se que a sífilis até mesmo influenciou a moda: o surgimento das perucas teria sido o resultado do grande número de nobres carecas, por causa dessa doença.

Embora não produzisse efeitos tão rápidos quanto as pestes, tornou-se um enorme problema social e apavorou a população.

Em 1530, poucas décadas após o surgimento da doença na Europa, Fracastoro publicou uma famosa obra, na qual introduziu o próprio nome da enfermidade: Syphilis, sive Morbus Gallicus (“Sífilis, ou doença francesa”). Este curioso livro tem um estilo pouco comum em obras médicas: é escrito em versos, com estilo literário. Tudo indica que Fracastoro se inspirou na obra de Lucretius, “De rerum natura”, também em versos, para compor seu trabalho. As próprias idéias de Fracastoro, como veremos, possuem semelhança com as de Lucretius.

Em uma linguagem rebuscada, Fracastoro conta uma série de histórias, uma das quais introduz o nome da enfermidade. Ele conta que o pastor Syphilus, do Haiti, havia prestado homenagens divinas ao seu rei, Alcithous.

Por isso, teria sido castigado pelo deus Sol, que enviou a nova doença aos homens. Daí vem o nome da enfermidade, sífilis. A história é tola, mas o nome foi adotado por todos.

No princípio de sua obra, Fracastoro expõe seu objetivo:

Meus cantos vão ensinar que germe e que reunião de acidentes diversos produziram uma doença estranha, ignorada durante muitos séculos, que, depois de fazer em nossos dias estragos em toda a Europa, e em uma parte da África e da Ásia, veio cair sobre a Itália, e unir-se aos funestos exércitos dos Franceses, dos quais esse mal recebe o seu nome. (…) Enfim, procurarei as causas secretas desse flagelo nas influências do ar, e dos astros.

Como vamos ver, Fracastoro introduz algumas concepções novas, mas mantém a crença no poder dos astros na produção da sífilis.

Fracastoro expõe a crença existente na época, de que a doença tivesse sido introduzida por Colombo e se espalhado pelo contato sexual. No entanto, ele nega essa explicação, pois diz que ela apareceu simultaneamente em muitos países da Europa e só depois na Espanha e Portugal. Afirma, também, que muitos “foram atacados por esse contágio, sem haver se comunicado com ninguém, e sem o ter obtido no seio do prazer.”

Essas circunstâncias devem nos ensinar, creio, que essa doença tem uma origem mais ampla e mais importante do que se apresenta inicialmente, e que seu princípio deve ser buscado em causas menos conhecidas e mais elevadas.

Para explicar o surgimento desta enfermidade, Fracastoro irá utilizar uma teoria astrológica, bem ao gosto da época. Inicialmente, ele afirma que uma doença tão geral só pode ter sido transmitida pelo ar:

(…) Se quereis conhecer pela ordem o princípio e as causas; começai por dirigir vossos olhares sobre a parte imensa do universo, e sobre a multidão de cidades que foram infectadas por esse contágio.

Considerando depois que o germe de um flagelo tão geral não pode ser guardado nas águas dos mares, nem no seio da terra; vós vos convencereis que os princípios e a séde do mal estão no ar, esse elemento que abraça nosso globo inteiro, e que é o veículo orginário dessas pestes mortais que afligem a natureza humana. O ar é o pai e a fonte das coisas. É ele quem produz entre os homens as maiores doenças, sendo de uma natureza própria para se corromper de cem modos diferentes, por causa da maciez de suas partes; sendo igualmente pronto a receber todos os tipos de impressões, e a comunicá-las depois de recebê-las.

Mas como o ar se corrompeu e produziu essa enfermidade? Por uma influência celeste, já que os astros agitam e movem os elementos terrestres:

O Sol e os planetas são os primeiros móveis que regem e agitam o mar, a terra e o ar. À medida que esses astros fazem suas revoluções, e mudam de lugar no céu, os elementos submetidos a suas leis sofrem diversas mudanças. Vêde como no inverno, quando o Sol, levado por seu carro rápido para o Sul, se afasta de nosso globo, o frio logo exerce sua violência (…)

Não existe dúvida, de modo semelhante, que a tocha da noite, a Lua, tem grande domínio sobre os mares, e sobre toda a umidade espalhada no universo; que o planeta sinistro de Saturno, o de Júpiter, mais favorável ao mundo, Marte e a bela Vênus – que, em uma palavra, todos os astros presidem aos elementos, que eles atormentam sem cessar. Por isso eles são causa de grandes agitações, em toda parte, sobretudo se encontramos vários que atuem juntos, ou se ocorrer que eles se afastem de seu caminho ordinário para percorrer novas rotas. Esses acidentes aparecem sem dúvida depois de várias revoluções do céu, e são obras do tempo; assim os deuses se servem dos astros para a realização dos destinos.

Sempre que existem novas situações nos céus, podem surgir também novos efeitos na Terra: “(…) Deveis vos surpreender que o ar alterado produza em algumas épocas novas doenças, e que os mortais infelizes sofram no curso do século as influências de um astro rigoroso?”

Como evidência de que os astros podem trazer novas doenças, Fracastoro lembra a peste negra de dois séculos antes, e que havia sido causada pela união de Marte e Saturno. Convida, por isso, seus leitores a elevarem os olhos para os céus, para descobrir a origem do novo flagelo. E logo identifica a causa: uma conjunção de Júpiter, Marte e Saturno na constelação de Câncer.

Embora Júpiter seja um planeta benéfico, ele não é capaz de impedir a ação de Saturno e Marte reunidos.

[Júpiter] não pode se impedir de lamentar os infelizes mortais, prevendo as guerras, a destruição das coisas e dos impérios, as devastações e as mortes funestas que devem desolar a terra.

Ele é atingido pela dor sobretudo à vista dos efeitos contagiosos de uma nova enfermidade, cuja violência não pode ser interrompida por nenhum recurso da indústria humana. Os outros deuses aplaudem; o Olimpo treme, e o ar fica carregado por um novo veneno. Suas influências malignas se espalham pouco a pouco e infectam logo o espaço imenso dos céus. Talvez os planetas, unindo seus fogos ao Sol, tenham puxado dos mares e da terra vapores que, insinuando-se nas partículas do ar, o tenham alterado e carregado desse veneno, rarefeito demais para ser sensível aos olhos; talvez algum outro vício do ar tenha corrompido nossa atmosfera.

Segundo Fracastoro, o ar pode ser afetado de diversas maneiras pelas “sementes celestes” que aí se espalham, e podem influenciar às vezes só as plantas, às vezes só alguma espécie de animal. No caso da sífilis, “ela só quer o homem. Ela se insinua em seus membros para consumi-lo. Sem dúvida esse veneno, circulando em todo o corpo, se prendeu à parte espessa do sangue, aos humores que lá residem, às matérias gordurosas e fétidas; que ele, em uma palavra, se nutriu de tudo o que aí havia de impuro; é a razão que devemos dar para essa doença que encontrou seu alimento no sangue.”

Fracastoro não associa a sífilis ao contato sexual. Como a enfermidade viria pelo ar, ele sugere vários cuidados para se preservar dela, tais como: escolher um ar conveniente; fugir dos ventos quentes; fugir dos lugares lamacentos ou pantanosos; viver no cambo aberto, ou numa colina agradável, onde o ar é sempre renovado pelos ventos. Recomenda evitar o repouso e ócio. O trabalho e os exercícios são saudáveis; suar faz bem. Não se deve fatigar o espírito. Deve-se respeitar um regime no qual são evitados os peixes e pássaros que se alimentam de peixes. Não se deve utilizar freqüentemente nem o vinagre, nem o leite.

Quanto ao vinho, só devem ser usados os provenientes de solo úmido. As plantas odoríferas, que purificam o ar, também são úteis. Quando, apesar de todos os cuidados, a enfermidade surgir, o tratamento consiste em purificar o corpo:

Se a doença se mostra na primavera ou o outono, se aquele que foi atacado está na força da idade e se é de um temperamento sangüíneo, será conveniente picar-lhe a veia basílica ou a mediana, para desembaraçá-lo do sangue supérfluo e corrompido. Mas seja em que estação for, deve-se apressar em lançar para fora, por meio de purgações, os maus humores, conseqüências do mal contagioso, após ter o cuidado de se preparar para isso por poções resolutivas, atenuantes e diluentes.

Logo após o aparecimento da sífilis, os médicos experimentaram muitos remédios e descobriram que o mercúrio, embora seja uma substância venenosa, pode curar essa doença.

Fracastoro sugere várias explicações para a eficácia do mercúrio.

Talvez as partículas agudas de que ele se compõe, encontrando-se extremamente divididas depois de haver penetrado nas diferentes partes do corpo, tornam-se capazes, por esse meio, de dissolver e de destruir a semente da peste; talvez, enfim, porque os destinos e a natureza lhe deram qualquer outra qualidade, que nos é desconhecida.

Fracastoro recomenda misturar o mercúrio com várias substâncias, quase todas elas de cheiro desagradável: raízes de eléboro negro e de íris em pós, galbanum, assafétida, óleo de lentisque e óleo tirado do enxofre.

A pessoa deve cobrir todo o corpo com esse ungüento e depois se deitar e cobrir bem, até transpirar abundantemente. Essa operação deveria ser repetida dez vezes.

A absorção do mercúrio pelo corpo produzia uma salivação incessante, que obrigava o paciente a cuspir sem parar. Isso era interpretado como um bom sinal: parecia que era a própria doença que saia do corpo, com a saliva. “O humor espesso e maligno que vos atormentava se dissolverá pouco a pouco. Vós o sentireis flutuar com a saliva, e tereis a satisfação de vê-lo escoar-se como um riacho e cair a vossos pés.”

Em meio a todas as descrições de Fracastoro, podemos perceber os seguintes elementos importantes: os astros podem influenciar e produzir combinações novas dos elementos terrestres; isso ocorre principalmente quando eles se reúnem em uma constelação (conjunção); o ar se torna então corrompido ou envenenado, ficando repleto de germes ou sementes da enfermidade, provenientes do céu; esse ar produz a corrupção do sangue, que pode ser combatida por processos gerais de purificação (sangria, evacuações) ou por remédios cuja ação não é compreendida.

Embora Fracastoro utilize repetidas vezes a palavra “contágio” em suas descrições, em nenhum instante ele esclarece em que sentido a doença é contagiosa.

Embora o livro sobre a sífilis seja a mais conhecida obra de Fracastoro, foi em outro trabalho que ele desenvolveu o seu conceito de contágio. Em 1546, ele publicou um estudo “Sobre doenças contagiosas”.

Nesse trabalho, ele aceita a existência de enfermidades – entre as quais inclui a varíola, lepra, tifo, pneumonia, peste bubônica e outras – que podem passar de uma pessoa para várias outras.

Como o número de pessoas doentes pode ir aumentando, sem que a doença se enfraqueça, Fracastoro concluiu que essas doenças epidêmicas eram causadas por pequenos germes ou sementes que possuem o poder de se multiplicar no corpo do paciente. Um veneno, pelo contrário, não se multiplica sozinho e não pode produzir uma epidemia.

Se, portanto, nos permitirmos definir a febre pestilencial, nós diremos: É uma febre de putrefação profunda e impura; contém germes do mais agudo contágio; por isso é uma doença mortal, e é contagiosa para outra pessoa. Isso, portanto, e não a putrefação, é a raiz de seu conteúdo, é a característica essencial da febre pestilencial. (…)

Aquilo que é sua causa essencial e diríamos formal, é que se trata de uma febre que contém em si os germes do contágio causador da morte. Por estas razões, as febres que são causadas por venenos, embora mortais, não são pestilenciais, pois não são contagiosas. Pois lhes faltam as características essenciais e formais da praga.

Esses germes são denominados de “contagion”. Trata-se de uma corrupção que se desenvolve dentro da substância, passa de uma coisa para outra, e é causada originalmente pela infecção por partículas imperceptíveis.

Os germes são descritos como pequenos demais para serem vistos.

De acordo com Fracastoro, há três modos de contágio: pelo contato direto de uma pessoa com outra; por agentes intermediários fomentadores (fomites), impregnados por material infeccioso, tais como roupas velhas, às quais aderem os germes das enfermidades; e à distância, pelo ar.

Cada tipo de semente ou germe causaria uma doença diferente. No entanto, os germes poderiam se modificar, transformando-se nas sementes de outras doenças, assim explicando diferentes epidemias.

Partindo dessa concepção, Fracastoro indica como método terapêutico tentar destruir rapidamente os germes que invadem o corpo.

Não há dúvidas de que Fracastoro se aproximou muito de nosso conceito de enfermidades transmissíveis. No entanto, não se deve pensar que ele seja um cientista moderno. Como vimos, ele continua a aceitar todo tipo de concepções sobre a influência dos astros na atmosfera; e não se pode dizer que sua idéia de contágio tivesse uma boa fundamentação. Como Fracastoro apela para coisas invisíveis (os germes ou sementes), a hipótese não podia ser testada. No fundo, era uma hipótese como muitas outras – com uma desvantagem: era nova e contrária à teoria galênica.

OS PORTUGUESES E AS PESTES NO SÉCULO XVI

No século XVI, continuavam a predominar as concepções de Hipócrates e Galeno, na medicina. As pestes continuam a se suceder, atingindo fortemente Portugal.

Podemos verificar quais as idéias mais comuns no período, estudando alguns escritos de médicos portugueses desse século, sobre a peste.

Manuel Álvares (1545-1612) foi um importante médico português, que tornou-se professor da Universidade de Toulouse (de 1572 até sua morte). Em 1585, houve uma peste bubônica em Toulouse, e Álvares escreveu um livro em que tentava explicar a enfermidade e indicar como se podia evitá-la e curá-la. Ele começa respeitosamente associando as pestes à religião:

As doenças populares, que os médicos chamam de epidêmicas, vêm comumente pela expressa vontade de Deus, como um flagelo enviado pelos pecados dos homens, e disso temos vários exemplos na santa escritura (…)

Seria muito demorado discorrer aqui sobre o número das pestilências que foram memoráveis, desde a criação do mundo até nossa época. Delas, a maior parte foi enviada pelos pecados dos homens, sem que nelas houvesse qualquer aparência de causas secundárias que as houvessem produzido, a não ser apenas a expressa vontade de Deus.

Em seguida, Álvares discorre sobre várias hipóteses a respeito do surgimento das epidemias:

Algumas vezes as mesmas doenças provêm da infecção do ar gerada pelas imundícies, inundações, chuvas, umidade, tremores de terra, vapores ou abundância de corpos mortos.

Essa é perniciosa não apenas aos homens mas também aos animais, como ocorreu em Roma nos tempos de Tarquinius Superbus, quando o ar se infectou pela má nutrição das pessoas.

Como vimos, a idéia de que o ar transmite as epidemias era já bastante antiga. Não poderia faltar também, é claro, a menção a fatores astrológicos:

Esses contágios são geralmente precedidos por algumas conjunções de astros ou eclipses com aspectos funestos, como foi a conjunção de Saturno e Marte, no signo de Aquário, casa própria do dito Saturno, (…) que os médicos que não ignoram Astrologia notaram ter muitas vezes sido causa de doenças populares, e também um antes da coqueluche do ano 1580. Pois, embora muitos autores antigos digam que os astros são por si todos bons e não enviam nada de mau aos corpos inferiores, no entanto nosso Senhor, servindo-se de causas secundárias como instrumentos da justiça, permite que por suas influências que por si são boas e salutares, os quatro elementos se alterem tanto, que o ar, do qual nos servimos mais, absorvendo-o continuamente pela respiração, adquira alguma intemperança ou má qualidade contrária à nossa vida.

Álvares admite também a existência do contágio – no entanto, utiliza uma concepção exagerada e fantasiosa do fenômeno:

Essas mesmas doenças também provêm muitas vezes sem qualquer corrupção do ar, pelo simples contato e toque das coisas infectadas. Isso é muito comum e citarei um só exemplo disso. Na cidade de Selêucia, na Babilônia, no tempo do imperador Antonino, alguns soldados da companhia de Avidius Cassius, movidos pela avareza de roubar, abriram certo cofre de prata, do qual saiu um vapor ou ar infecto e aí guardado há muito tempo, que infectou todo o império, do oriente até o ocidente. Na mesma ocasião ocorreu a grande peste de Roma no tempo do imperador Commodus, em que todos os dias morriam mais de 1.000 pessoas, e isso por meio de certos homens abomináveis, que jogavam pela cidade certas coisas impregnadas de veneno, por cujo toque uma infinidade de pessoas foi surpreendida pela peste.

Conhecidas as causas das epidemias, pode-se tentar evitá-las. Como elas são enviadas por Deus, a primeira providência é abolir a causa principal, que é o pecado:

Para remediar esse grande mau que começa a invadir a nossa cidade (…) evemos em primeiro lugar tentar por todos os meios, continuando nossas devoções e preces santamente instituídas, corrigir nossas vidas, apagar nossos pecados por uma verdadeira penitência, e com um coração suplicante pedir a sua divina magestade [que tenha piedade da cidade] (…)

Como Álvares admite que a enfermidade possa passar de uma pessoa para outra, recomenda que se cuide das portas da cidade: “evitar que nenhuma pessoa entre de qualquer lugar infectado, para não aumentar o contágio”. Pelo mesmo motivo, os doentes deviam ser isolados; e devia-se evitar também confusões ou aglomerações.

Não se deve falar sobre os doentes, nem ir ver nenhum, a não ser estando seguro de que não há doença contagiosa; e a esses de longe. E ao falar às pessoas, manter-se um pouco afastado.

Embora a enfermidade venha pelo ar, Álvares recomenda que se faça varrer as ruas e que se limpem as imundícies. É importante observar que, nessa época, praticamente não existiam esgotos nas cidades.

Os dejetos eram lançados das casas para as ruas. Não havia, também, coleta de lixo, que era igualmente lançado às ruas ou empilhado nas praças públicas. O mau cheiro exalado das ruas devia ser terrível.

Como se associava as doenças a um ar corrompido e podre, tudo o que piorava o cheiro do ar devia ser evitado.

Como se acreditava que o principal meio de transmissão das pestes era o ar, a doença podia ser carregada pelo ar preso às roupas. Por isso, Álvares recomenda a proibição de venda de tecidos ou vestimentas.

Além disso, “deve-se manter os porcos longe das casas, assim também como os cachorros e gatos; pois eles com freqüência trazem o mau ar”. As roupas também deveriam ser periodicamente purificadas:

É bom mudar com freqüência de roupas, e fazê-las passar sobre o fogo, como também manter fogo aceso no quarto, sem se aquecer demais.

Como também tereis cuidado de que vossa habitação seja mantida limpa e que os de vossa família não fiquem descalços; pois daí provêm muitos males que não se nota.

A freqüente troca de camisa e roupas é também extremamente exigida contra esse mal, desde que as que tirardes sejam colocadas no ar, a fim de que se tiverem alguma coisa de mau, o ar, passando em cima, o leve e dissipe sem perigo.

Álvares dá grande importância ao estado de espírito: uma pessoa alegre parecia menos sujeita a adquirir a enfermidade do que uma triste ou receosa: Deve-se evitar todo peso do espírito, dor, cólera, tristeza – e sobretudo o medo do mal.

Há uma infinidade de outros remédios preservativos da peste da qual poderás facilmente coligir os autores. É verdade que o principal remédio, ímpar, para esse mal é manter-se alegre, e beber de manhã antes de sair de sua casa.

Para se proteger do ar maligno, Álvares recomenda também tomar um alho com um pouco de vinho, ou levar na boca um pouco de angélica, zedoária, genciana, ou outras substâncias aromáticas. O vinagre, que impede a putrefação dos alimentos, era especialmente recomendável contra as epidemias:

Antes de sair de casa, as pessoas comuns lavarão as mãos, o nariz, as orelhas e o rosto com vinagre ou vinho, mesmo no caso de crianças pequenas.

Era recomendável também adicionar vinagre aos alimentos, e embeber nele uma esponja, para cheirar com freqüência ou colocar sobre o coração, “como um remédio soberano contra toda corrupção do ar”.

Pode-se também adicionar ao vinagre canela e outras substâncias aromáticas.

Vários tipos de substâncias podiam ser carregadas em saquinhos, pendurados ao pescoço, para proteger da peste.

Por fim, adiciona vários procedimentos médicos preventivos: as pessoas cheias de sangue devem fazer sangrias da veia média do braço direito, depois usar um purgante leve, e por fim um remédio de acordo com os humores que abundam em seu organismo. Também recomenda as “pílulas de Refus”, às quais se adiciona açafrão, ou amoníaco, ou outras substâncias boas para “retirar o veneno”. Não poderia deixar de receitar um antídoto tradicional: o remédio de Mithridates, contra todos os venenos, do qual fornece uma receita simples particular – duas nozes, dois figos, 20 folhas de arruda, um grão de sal. Ou então, abre-se um figo, coloca-se dentro o cerne de uma noz, oito folhas de arruda e um grão de sal, depois tempera-se com bom vinho; deve-se tomar em jejum.

Álvares indica uma série de remédios populares da época, como a teriaga, o “opiato vulgar de Salomão”, o óleo de vitríolo (ácido sulfúrico), etc. Sugere também vários outros procedimentos estranhos, como esfregar os pulsos, têmporas e coração com óleo de escorpiões, ou usar presa ao corpo uma pedra de lápis-lazuli. E depois de uma série de regras das mais variadas, termina o seu livro assim:

Fim. Aceite-o quem quiser.

Todas as crenças e recomendações de Álvares são típicas da época. Algo muito semelhante pode ser encontrado em um folheto publicado em Lisboa em 1569:

“Recompilação das coisas que convém guardar-se no modo de preservar a Cidade de Lisboa e os sãos, e curar os que estiverem enfermos de peste”.

Este pequeno livro, composto pelos médicos Tomás Álvares e Garcia de Salzedo, “Medicos do Serenissimo Rey de Portugal, Dom Sebastião Primeiro, nosso Senhor”, não contém qualquer discussão teórica.

É apenas um conjunto de normas a serem respeitadas contra a peste, compiladas, como o próprio nome diz, de muitas fontes.

A “Recompilação” dá enorme importância ao ar da cidade. No caso de Lisboa, recomenda-se especialmente que sejam feitas fogueiras pelas ruas, por causa da grande umidade da cidade, “que é causa potentíssima desta enfermidade”. São indicados para o fogo as madeiras de cedro, cipreste, oliveria, pinho, aroeira, zimbro, alecrim “e todos os mais bons cheiros que cada um quiser deitar”.

Os fogos devem ser feitos especialmente pela manhã e no início da noite.

E estas duas coisas são muito louvadas na física [medicina], tanto para o remédio, como para a purificação do ar, no qual consiste grande parte da cura e preservação deste mal, porque como o ar corrupto é a causa dele, a sua retificação será o remédio.

Com o mesmo objetivo, a “Recompilação” recomenda a limpeza das ruas e das praças, e que as imundícies e excrementos sejam levados à noite ou de madrugada para serem jogados ao mar, pois durante o dia o ar ficaria mais impregnado com o mau cheiro.

É necessário tomar cuidados com as roupas: não se deve utilizar roupas com pregas, ao caminhar ou visitar os enfermos, pois elas carregariam mais ar infectado dentro delas.

O Sol é considerado muito benéfico, recomendando-se que não se saia de casa nem se abram as janelas antes do nascer do Sol. “Em tempo de inverno, e em dia frio e claro, se podem abrir as janelas ao meio dia, em horas em que entre o Sol, e purifique os aposentos, e casas.”

As casas devem ser mantidas limpas, lavadas com água e vinagre, sendo ainda melhor utilizar vinagre e água de rosas, em partes iguais. É conveniente também perfumá-las com rosas, benjoim e outras substâncias aromáticas. Recomenda-se fazer fogos, dentro de casa, no verão, de noite e pela manhã, com madeiras de bom cheiro, como cipreste, zimbro, alecrim, murta, oliveira, loureiro, videira; pode-se ir também colocando perfume, nas cinzas, quando acabar a chama. No inverno, o fogo pode ser feito a todas as horas. Pode-se espalhar ervas e ramos de bom cheiro pela casa; colocar frutas como laranjas, limões, marmelos, etc.

A “Recompilação” recomenda, como Álvares, que se façam saquinhos de substâncias aromáticas, que podem ser cheirados durante o dia, ou pendurados sobre o coração. Enfim: a maior parte das indicações se refere à purificação do ar e ao combate contra os maus odores.

Os autores da “Recompilação” reconhecem o perigo do contágio, e por isso proibem bailes, danças e qualquer ajuntamento de pessoas. As casas onde tenha havido três ou mais doentes devem ser esvaziadas; é preciso queimar fogos e perfumes dentro dessas casas e mantê-las vazias “porque está claro que aquele ar está mais danado que outro”.

As roupas de pessoas empesteadas devem ser queimadas ou lavadas com água do mar, depois com água doce, e por fim com água e vinagre, para purificá-las.

O sangue das sangrias deve ser imediatamente mandado para o mar, pois supõe-se que ele também pode transmitir a enfermidade.

Os enterros devem ser feitos o mais depressa possível. A “Recompilação” sugere que se faça uma cova muito alta e comprida para lá serem colocados todos os corpos.

O doente deveria ser envolvido no lençol ou manta na qual morrer, e o corpo deveria ser coberto primeiro com cal, depois com terra, “seja muito calçado, para que não saia mau vapor; porque depois de Deus, o remédio deste mal consiste na retificação do ar, e em impedir que se corrompa.”

Todo tipo de podridão ou mau cheiro precisa ser evitado. Deve-se proibir a venda de carne de animais que morrerem, ou que começarem a ter mau cheiro, e o mesmo com pescados e para outros mantimentos.

Recomenda-se dar preferência à carne do que aos peixes, especialmente os pescados perto da cidade, “onde comem muitas imundícies”.

Os pobres que tenham feridas pelo corpo devem ser impedidos de andar pelas ruas: deve-se combinar com eles para que recebam alimentos em algum lugar recolhido, de maneira que não andem pela cidade, porque com suas chagas não há dúvida senão que ajudarão a danar mais o ar.”

Há várias regras sobre alimentação: deve-se preferir alimentos secos, evitar gordura e todos os produtos de leite, exceto queijo velho, “do muito bom dalentejo”.

Os doces e misturas de comidas são nocivos. Deve-se preferir vinho branco, bebido com moderação.

Vários cuidados devem ser tomados com a água: buscar água de fonte conhecida, ou de rio que corra por terra limpa, no qual não se curta linho ou cânhamo. Deve-se evitar água de poço, ou então fervê-la com certas substâncias purificadoras – no inverno, canela, erva doce, ou cravo; no verão, azedas, ou sementes dela, ou um pouco de vinagre. “Ajuda também na retificação da água, ou vinho que se houver de beber, apagar na água ou no vinho uma lâmina ou barra de ouro ardendo”.

Os exercícios devem ser moderados, pois além de excitar e aquecer os humores, produzem mau cheiro. Devem ser feitos em aposento fechado e perfumado.

A “Recompilação” considera muito importante um estado de espírito positivo: evitar ira, nojo, tristeza, etc. As roupas devem ser alegres, cheirosas e limpas, sem pregas.

O uso de pedras preciosas em contato com o corpo também ajuda a proteger da peste – principalmente esmeraldas e jacintos. Como fortificantes, são indicadas a triaga e outros remédios.

Deve-se eliminar do corpo tudo o que é supérfluo, através das fezes (purgantes). Também é conveniente fazer sangrias moderadas, especialmente nos que estejam muito vermelhos, ou com excesso de sangue, ou que se sentem pesados, etc. “A estes tais convém a sangria, e se podem sangrar no crescente da Lua das duas veias da arca”, ou nos pés.

Se apesar de todos os cuidados, a doença se instalar, há vários procedimentos médicos indicados. Logo no início, indica-se a importância de grandes sangrias; mas quando a pessoa já está fraca, a sangria deve ser evitada, pois apenas produz a morte mais rápida. O sangue deve ser extraído do mesmo lado e lugar onde surgem os inchaços, com o objetivo de ajudar a natureza a “tirar o veneno”, pelo mesmo lado e lugar onde ela opera.

Além da sangria, recomenda-se purgantes, sempre posteriores à sangria. Os purgantes devem ser muito suaves: rosas, violetas em conserva, e polpa de tamarindos. Em alguns casos, aconselha-se o suadouro, que também pode eliminar o veneno; mas não é muito recomendado, pois “o veneno é grosseiro e sangüíneo”.

A “Recompilação” indica vários medicamentos que devem ser colocados sobre os inchaços, “para atrair o veneno” e para aliviar a dor.

E para isto é remédio muito conveniente a cebola assada com a teriaga, e azeite de açucenas, pisada, e posta no inchaço, e tornando a por de duas em duas horas, ou de hora a hora: e ponha-se mais, ou menos assada, segundo for a dor; porque se a dor é pouca, asse-se pouco, para que tenha mais virtude atrativa: e se a dor é grande, asse-se mais, porque quanto mais se assar, mais mitiga a dor, e sempre tem virtude atrativa.

Também se podia depenar um galo vivo, polvilhá-lo com sal moído, e colocar sobre o inchaço, para atrair o veneno. Era recomendado também o uso de sanguessugas, capazes de sugar grande quantidade de sangue, de modo indolor.

De um modo geral, os procedimentos curativos pareciam se basear na idéia de que havia alguma substância nociva no organismo (o “veneno”), que precisava ser retirada através de evacuações, sangrias, ou por “atração”.

SÉCULOS XVI E XVII: TENTATIVA DE QUEBRA DA TRADIÇÃO

Os séculos XV e XVI presenciaram muitas mudanças na Europa. É o período em que se dá a invenção da imprensa, a redescoberta da pólvora, as grandes navegações.

Ocorre um enorme desenvolvimento econômico e cultural.

Embora nas universidades a tradição continue a ser respeitada e seguida como antes, começa a surgir um amplo movimento de renovação científica e cultural.

O Renascimento é um período durante o qual se percebe uma tentativa de valorizar o homem, a iniciativa individual, o realismo.

No campo religioso, ocorre no século XVI o movimento de reforma de Lutero, que dividiu a igreja cristã e questionou os valores tradicionais. Na mesma época, surge a teoria astronômica de Copérnico, que tira a Terra do centro do universo e a transforma em um dos vários planetas circulando em torno do Sol.

A impressão de livros permitiu uma maior difusão de obras de todos os tipos, incluindo as científicas e médicas. Foram publicadas edições das obras clássicas, que antes circulavam apenas sob forma de manuscritos.

Enquanto que antes os estudos nas universidades eram rígidos, limitados a alguns poucos autores e textos selecionados, torna-se disponível uma grande variedade de idéias de diferentes épocas e tendências.

Tudo isso deve ter estimulado o surgimento de uma renovação nas ciências.

O próprio trabalho de Fracastoro, já estudado, que pertence a essa época, mostra esse tipo de renovação, através da influência do atomista romano Lucretius.

No entanto, outros autores do século XVI e XVII representam melhor a tentativa de revolucionar a Medicina. Nesse período, surgem críticas diretas e globais à tradição antiga. Andreas Vesalius (1514-1564) funda a anatomia moderna, através da cuidadosa observação, descrição e representação artística do corpo humano. Seus estudos mostram que Galeno havia povoado a antiga anatomia com muitos erros graves, que durante mil anos foram aceitos como verdade, pois ninguém era capaz de se dedicar à própria observação da natureza. Mais tarde, William Harvey (1578-1657) irá revolucionar a fisiologia, mostrando que o sangue circula por todo o corpo, bombeado pelo coração, ao contrário do que se acreditava até a época. Talvez o autor médico mais característico desse movimento de renovação seja Paracelso. Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim (1493-1541), que se auto-denominava Paracelso , atacou de modo direto e violento toda a tradição.

Sua ruptura com as autoridades antigas foi mostrada de modo formal quando ele queimou publicamente os livros de Galeno e Avicena, numa praça de Basle, em 1527.

O maior obstáculo ao desenvolvimento do conhecimento lhe parecia ser o respeito aos livros tradicionais. Era necessário retornar ao “livro da natureza” e adquirir conhecimento pela experiência.

Para diferenciar-se dos médicos da época, que só escreviam em latim, Paracelso redigiu seus livros no idioma popular: alemão.

Paracelso não se tornou o Copérnico da Medicina, no entanto: não conseguiu edificar uma nova teoria que substituisse a antiga. Sua obra foi uma estranha mistura de idéias místicas, astrológicas, alquímicas e médicas.

O homem é, para ele, uma miniatura do universo (um microcosmo) e por isso os conhecimentos médicos não podem ser separados de uma filosofia sobre toda a natureza. Ele foi mais um mago do que cientista, no conceito moderno da palavra. Talvez a maior contribuição que ele tenha dado à Medicina tenha sido o impulso para buscar algo novo, através de todos os meios disponíveis.

A formação básica de Paracelso era alquímica – a química da época. Familiarizado com muitas substâncias que não eram utilizadas pelos médicos, ele as introduziu em seus tratamentos.

Foi por sua influência que se começou a utilizar chumbo, enxofre, ferro, arsênico, sulfato de cobre e sulfato de potássio, dando início a uma farmacopéia mais baseada em minerais do que em substâncias orgânicas.

Paracelso interessou-se pouco pela anatomia, que florescia na época. O corpo humano, para ele, era um tipo de laboratório alquímico, regido por um princípio vital misterioso, ao qual deu o nome de Archeus.

Esse princípio, localizado na região do estômago, dirigia o processamento dos alimentos, separando a parte boa para o organismo da parte maléfica.

Esse mesmo princípio eliminava as substâncias já utilizadas pelo organismo, através das excreções. Quando ocorria alguma perturbação do Archeus, a separação não era bem feita e o corpo podia se envenenar, ou começar a acumular “tártaro” – o resíduo dos processos orgânicos.

Isso seria uma das mais importantes causas das enfermidades.

A ênfase na utilização da alquimia na medicina faz de Paracelso o iniciador de uma corrente que, depois, foi chamada de “iatroquímica” – a medicina química.

Outro pensador médico pouco posterior, que pode ser enquadrado na linhagem de Paracelso, foi Jan Baptista Van Helmont (1577-1644). Como outras pessoas da época, Van Helmont se decepcionou com a medicina que era praticada e procurou novos caminhos.

Aos 24 anos, antes de se tornar um famoso médico e alquimista, Van Helmont contraiu sarna e procurou a ajuda de dois famosos médicos. Os médicos, como era usual na época, seguiam a corrente humoral e, como o próprio Van Helmont conta, logo afirmaram conhecer a causa do problema:

Os médicos (…) julgaram que existia em mim uma abundância de cólera [bílis] queimada ou seca, juntamente com uma fleugma salgada, de tal modo que havia se desregulado a capacidade do fígado de produzir sangue. Alegrei-me, porque essas coisas que os autores haviam me transmitido eram confirmadas por dois mestres experientes, pois eu, que havia aprendido que na ciência matemática todas as especulações são muito verdadeiras, acreditei que essas coisas eram também comuns e inseparáveis das regras de curar (…).

De acordo com minha antiga credulidade, perguntei que tipo de desregulagem do fígado podia ser essa que, ao mesmo tempo, aquecia a cólera amarela mais do que ela merecia, e também gerava mais fleugma do que devia, percebendo que um ato da mesma raiz e da mesma sanguinificação, não poderia produzir ao mesmo tempo, no mesmo ventre, um produto duplo ou bifurcado – ou seja, emitir abundantemente uma cólera ardente e também uma fleugma fria e aquosa.

Os mestres experientes ficaram em dúvida e se interrogaram com suas sombrancelhas arqueadas, olhando um para o outro. Por fim, o mais jovem deles respondeu que a mesma desregulagem de um fígado inflamado não podia produzir fleugma verdadeira, mas uma fleugma abundando em sal, e a temperatura do sal era quente e fria (…)

Apesar de não ficar muito convencido do valor da teoria, Van Helmont precisava se curar da sarna e aceitou o tratamento recomendado: tomar purgativos, para se purificar.

No sexto dia evacuei quinze vezes. Enquanto isso, eles bendiziam minha transformação, pois meu corpo havia se tornado ão fluido.Depois de mais dois dias, como a coceira não havia aliviado sua crueldade, tomei de novo o mesmo remédio, com uma notável revolta de meu estômago, e ocorreu um processo semelhante de evacuação. Eles disseram que a juventude costumava produzir o desenvolvimento da cólera.

E quando viram que apesar disso a coceira e as feridas não estavam diminuindo, decretaram que dois dias depois eu deveria tomar o remédio purgativo pela terceira vez.

Um pouco antes da noite, minhas veias estavam exauridas, meu queixo havia caído, minha voz era rouca, todo o meu corpo estava arruinado e fraco. Era difícil para mim descer de meu quarto e andar, pois meus joelhos quase não me suportavam (…).

Percebi tarde demais que antes dos remédios purgativos meus intestinos eram saudáveis; mas que agora, por falta de apetite e digestão falha, eu havia adquirido muita fraqueza, embora a sarna se mantivesse firme e segura.

Abandonando o tratamento dos grandes médicos, Van Helmont acabou por se curar utilizando enxofre aplicado ao local da sarna.

Como outros, Van Helmont se dedicou à medicina mas afastando-se da tradição e procurando chegar a um novo tipo de conhecimento. Estudou Paracelso mas também não aceitou suas doutrinas, embora aproveitasse algumas de suas idéias.

A concepção de Van Helmont sobre as doenças é bastante obscura. Ele defendia a existência de dois tipos de princípios vitais no corpo. O mais importante era chamado por ele de “Archeus” (nome que já havia sido utilizado por Paracelso). O Archeus produz a estrutura, a forma, a imagem do organismo. Esse Archeus, segundo Van Helmont, estaria centralizado no estômago ou no fígado, e governaria todo o corpo através de um tipo de alento vital ou ar, que ele denominou “blas”. Esse “blas” não seria exatamente igual ao ar que respiramos, mas algo mais espiritual. É semelhante ao conceito grego de “pneuma” ou ao conceito indiano de “prana”, que representava ao mesmo tempo a respiração, o alento vital, e também as forças vitais dentro do corpo.

Os processos vitais básicos, segundo Van Helmont, estão associados à fermentação, que transforma os elementos e produz ar. A fermentação, para ele, é algo produzido por certas partículas dotadas de vida.

Toda a matéria viva provém de fermentos, que atuam na água e produzem suas sementes. O funcionamento desses fermentos é dirigido pelo Archeus. De certa forma, essas sementes são semelhantes à idéia atual de micróbios – embora diferentes em outros aspectos.

As doenças também seriam processos vitais regidos por fermentos. Como o funcionamento do corpo é regido pelo Archeus, ele é um intermediário no estabelecimento de enfermidades. De certa forma, o Archeus se deixa impregnar por uma “imagem” da doença, que o contamina como um veneno. Ele afirma que essas “imagens” são as sementes dos seres que produzem a doença, ou sementes da natureza corrupta.

Assim como o organismo vivo é movido por um “blas”, existe também um “blas” que é a causa do movimento das estrelas. Todo o universo é, em certo sentido, um grande organismo.

Como as estrelas atuam através do seu “blas”, elas podem influenciar os corpos terrestres. Por isso, as sementes estão sujeitas a influências astrológicas. Van Helmont tenta explicar, assim, o efeito dos astros sobre as enfermidades.

Parece haver uma oscilação entre a idéia de que essas sementes sejam algo material e a de que sejam algo espiritual, mas em alguns pontos Van Helmont afirma claramente que são “idéias” e, portanto, imateriais. Essas “idéias” se implantam no Archeus e passam a controlar os órgãos e a produzir os sintomas das doenças.

O calor e o frio, os humores e outras coisas que aparecem nas doenças não são causas, mas efeitos.

O Archeus de uma pessoa ou animal conserva o fermento do qual essa pessoa ou animal nasceu. Por isso, cada pessoa ou animal pode formar outra igual a si mesma, pela reprodução. No entanto, em uma pessoa doente, o Archeus se altera. As sementes das enfermidades podem se prender tão fortemente à força vital do organismo, que podem também passar aos descendentes (doenças hereditárias).

A enfermidade pode surgir sem a influência de nenhum fator físico direto (calor, umidade, etc.), exatamente por ser causada por uma “idéia”: “Um medo da peste cria a peste”.

A cura também pode ser feita indiretamente, de um modo “magnético”, quase mágico. Se uma pessoa se fere, pode-se aplicar um remédio à sua ferida ou então aplicar o remédio sobre o sangue de uma toalha com a qual ele se limpou. Nos dois casos, o remédio produz o mesmo efeito.

Existe em Van Helmont um conceito de contágio, mas bem diferente do moderno. Podemos dizer que seu conceito está mais próximo do utilizado na magia do que do nosso, pois as doenças são causadas por idéias imateriais.

No século seguinte, Frederick Hoffmann (1660-1742) irá utilizar algumas idéias semelhantes às de Van Helmont. Ele adota uma visão fisico-química do corpo humano.

Hoffmann acredita que as doenças malignas são causadas por um veneno e “surgem de um princípio venenoso diminuto que se multiplica como um fermento, e perverte e atrapalha completamente o movimento do sangue”.

À medida que os conceitos químicos iam surgindo, tentava-se utilizá-los na medicina. François de la Boe (1614-1672), conhecido como “Sylvius de Leiden”, tentou explicar as enfermidades através das noções de alcalinidade e acidez. Para ele, a fonte das enfermidades era puramente química, podendo também ser combatida por meios químicos.

Mas tentativas desse tipo eram prematuras e grosseiras, fracassando completamente.

Ao mesmo tempo em que a química (ou alquimia) adquiria importância na medicina, a física também começou a conquistar um espaço nesse campo. Este é o período em que Giordano Bruno, Galileo Galilei, Johannes Kepler, Simon Stevin e muitos outros pesquisadores estão procurando construir uma nova física. O médico Santorio Santorio , de Padua (1561-1636) foi um dos primeiros a estudar alguns dos aspectos físicos do corpo humano, procurando medir todos os fenômenos estudados. Ele inventou o termômetro clínico, para comparar de modo mais objetivo as temperaturas dos doentes e dos sãos; desenvolveu um relógio para medir a pulsação; e – o aspecto que mais nos interessa – realizou um estudo sobre a transpiração.

Ao longo de experimentos feitos durante 30 anos, consigo próprio e com outras pessoas, Santorio procurou medir os efeitos da transpiração.

Ele pesava diariamente todos os alimentos e bebidas ingeridos e todas as excreções. Observou que, embora o peso da pessoa (adulta) permanecesse praticamente constante, a quantidade de substâncias ingeridas era bem maior do que a quantidade de urina e excrementos. A diferença deveria ser devida à transpiração.

Segundo suas medidas, um homem forte e robusto, que realiza exercício físico moderado, que come e bebe oito libras por dia, perde cinco libras de líquido pela transpiração insensível diária.

Até essa época, ninguém havia percebido que a transpiração era tão significativa. Baseando-se em sua descoberta, Santorio imaginou que esse processo deveria ter grande importância para o organismo.

De tanto se dedicar a esse estudo, passou a imaginar que toda a saúde dependia unica e exclusivamente da transpiração.

Segundo Santorio, se o corpo retorna todos os dias ao mesmo peso, pois transpira na mesma medida, a saúde se conserva.

Mas a saúde declina quando o corpo diminui seu peso ordinário por uma evacuação mais abundante de excrementos ou de urina do que de costume, ou quando, pelo contrário, o peso aumenta pelo motivo inverso.

Se depois de alguns dias, o corpo não recupera o seu peso ordinário, seja por uma transpiração copiosa, seja por evacuações sensíveis, deve-se aguardar uma febre ou qualquer outra doença próxima.

Santorio diz que, cuidando da transpiração, por controle do peso dos alimentos, das excreções e do corpo, pode-se manter uma saúde perfeita e chegar aos 100 anos de idade; deve-se no entanto notar que ele próprio só chegou à idade de 75 anos.

De acordo com suas idéias, Santorio recomenda purgantes leves para todo aumento de peso. Ele observa que ligeiros purgativos não diminuem a transpiração, mas “ajudam docemente a se descarregar de um peso inútil”. Pelo contrário, os purgativos violentos impedem a transpiração e são por isso considerados extremamente perigosos.

Tudo o que possa perturbar a transpiração é prejudicial à saúde. Segundo Santorio, diversas causas contribuem a parar a transpiração, mas as principais são um frio úmido, uma alimentação viscosa, o jejum, o pavor, as noites inquietas, e evacuações muito abundantes. Santorio tenta explicar a influência do clima na produção da enfermidade, associando essa influência às mudanças da transpiração.

O ar frio sempre tende a suprimir a transpiração, mas se ele é seco, não ocorrem perturbações danosas à saúde. Pelo contrário, em um ar úmido e insalubre ou tempestuoso, a transpiração é retida, e a matéria obstruída pode causar grande desordem e males.

As pessoas robustas transpiram mais durante o dia, no verão, e durante a noite, no inverno. E enquanto que no verão a supressão da transpiração predispõe às febres malignas, no inverno, pelo contrário, ela tem poucas conseqüências, pois a matéria que se transpira é mais azeda no calor do que no frio.

De todas as estações, o outono é para Santorio o menos sadio, “pois a matéria da transpiração é facilmente interrompida e se corrompe facilmente”. Para evitar esse duplo mal, deve-se andar bem vestido e usar um regime conveniente. Dessa maneira manter-se-á o corpo sempre com o peso constante.

Através desses estudos, Santorio acaba por reinterpretar a doutrina das epidemias de Hipócrates. O calor, o frio, a umidade e a secura do ar produzem enfermidades, mas não por agirem diretamente sobre os humores corporais e sim modificando a transpiração. A visão de Santorio também se opõe à crença em venenos ou germes do ar produtores de doenças, pois são apenas as condições físicas da atmosfera que produzem a supressão da transpiração e as enfermidades. O processo é puramente físico.

A teoria de Santorio pode ser considerada o início de uma nova corrente na Medicina, tentando estudar o corpo humano como uma máquina, medindo suas propriedades e tentando explicar as doenças apenas pela física. Essa corrente foi mais tarde chamada de “iatrofísica” ou “iatromecânica” – a Medicina física.

Durante o século XVII, a iatrofísica recebeu um grande apoio teórico pelos trabalhos do filósofo René Descartes (1596-1650) e do médico Julian de la Mettrie (1709-1751). Para eles, o corpo humano é uma simplesmente uma máquina material. Todo o funcionamento do corpo deve poder ser compreendido pelas leis da física. Outro pesquisador da época, Giovanni Borelli, analisa a ação dos músculos a partir das leis das máquinas. Como a física estava se desenvolvendo muito, na época, houve certo otimismo com essa corrente de pensamento, mas ela não produziu efeitos relevantes na Medicina.

VERMES E ANIMAIS MICROSCÓPICOS, PARTÍCULAS VENENOSAS E MIASMAS

No início do século XVII foram inventados os primeiros microscópios e telescópios, que logo abriram aos pesquisadores novos universos. No mundo astronômico, tornou-se possível descobrir que a Lua era cheia de montanhas e que Júpiter tinha satélites. No mundo microscópico, descobriu-se uma imensa quantidade de seres minúsculos, que antes eram invisíveis.

Foi o desenvolvimento desses estudos que levou a novas hipóteses sobre a causa das enfermidades, no século XVII.

Não poderiam existir vermes ou insetos microscópicos capazes de invadir o corpo humano e produzir enfermidades?

Um dos mais influentes autores da época que desenvolveu esse tipo de hipótese foi o padre Athanasius Kircher (1602-1680). O padre Kircher não era médico: foi um intelectual de interesses muito amplos, que se dedicava a todas as novidades científicas da época. Em 1658, ele publicou uma obra denominada “Pesquisa físico-médica sobre a doença contagiosa, que se chama de peste”. Nesse livro, Kircher assume que todo tipo de substância ou objeto está continuamente emitindo em todo seu redor partículas que contêm suas propriedades essenciais:

Todo composto natural exala certas emanações de sua natureza essencial. Não se deve supor neste ponto que elas correspondam às próprias qualidades, nem a algo propagado pelo objeto em questão como se fosse por acidente. São realmente, falando estritamente, pequenos corpos de tamanho excessivamente pequeno, incapazes de serem percebidos mesmo pela visão mais poderosa. Eles, por assim dizer, são transportadores das propriedades essenciais e não essenciais que emanam do corpo em questão, e são idênticos em natureza à totalidade da coisa da qual eles fluem.

Todos os tipos de emanações de compostos concordam com a natureza de suas esferas respectivas. Assim, se uma coisa odorífera, saborosa, com mau-cheiro ou desagradável atinge os sentidos, deve-se dizer que isso é a emanação de um composto do mesmo tipo.

Kircher supõe que a partir de todas as substâncias – até mesmo metais, pedras preciosas e outros minerais, vegetais ou animais – saem emanações com suas propriedades.

Essas partículas saem principalmente por causa do calor ou fricção, e podem retornar ao corpo se ele for resfriado.

Apesar dessa evaporação contínua dos corpos, eles não diminuem de tamanho, pois “as partículas do ar próximo substituem as que sairam, por causa de uma certa atração natural, e se transformam em um germe da substância nativa do composto” – isso é, o ar adere ao corpo e adquire suas propriedades, deixando de ser ar.

Kircher aplica essa idéia para explicar o contágio das enfermidades. Quando uma pessoa ou animal morre, o corpo é dominado pelo poder que causa sua deterioração e que produz o aparecimento de vermes e da putrefação. Esse poder produz, como todas as outras coisas, um tipo de emanação em volta do corpo, constituída por pequenas partículas. Essas partículas possuem o poder característico da putrefação e da produção de vermes.

O maior poder desse tipo de contágio se manifesta nos cadáveres. Pois, depois que o calor nativo se foi e o domínio dos espíritos naturais foi superado, e quando apenas prevalece a destruição no corpo sem vida, ocorre a seguinte situação: o poder de jurisdição sobre o corpo é agora exercido por aquela coisa que, expalhando-se a todos os órgãos internos e externos, faz o cadáver como um todo se dissolver e destruir.

Por trás dessa destruição estão as verdadeiras sementes da praga. E estas, ativadas pelo efeito maléfico da destruição, de dentro e de fora, ou do calor que reside no ar em volta, são propelidas em todas as direções pelas emanações de pequenos corpos acima referidas e logo espalham o contágio em proporção à sua quota de vigor e eficácia.

Seja a matéria desses pequenos corpos dotada ou não de vida, logo, pela ação do calor que os banha e que já está infectado com uma sujeira semelhante, separam-se germes incontáveis de pequenos vermes imperceptíveis.

Com certeza nascerá um número de vermes igual ao dos pequenos corpos que são transportados com as emanações e por isso pode-se dizer que a emanação é animada, e não lhe falta vida.

Kircher indica que, embora essas coisas pareçam inacreditáveis, quem tiver presenciado experimentos com microscópios, ficará certo de sua verdade.

Mas ele não descre-ve tais experimentos. Pelo contário: logo em seguida, apresenta como fundamentação de suas idéias, a menção da suposta geração espontânea de animais. Ele descreve que nas cavernas e porões, a partir da corrupção e de “refugos virulentos”, a terra produz todos os tipos de insetos, animais venenosos como cobras e lagartos, etc. Afirma também que o mesmo ocorre pelo efeito do calor sobre águas estagnadas, lagos e mares.

“A experiência diária ensina, tanto em viagens marítimas como entre as paredes de nossas casas, que a água, fechada em um recipiente, logo que é exposta se enche de vermes”. Da mesma forma, o aparecimento de vermes nos cadáveres e nas pessoas doentes seriam evidências das idéias de Kircher:

Alguém ignora que, dentro das vísceras do corpo humano, a partir da destruição causada por alimentos estragados, logo surgem muitos vermes?

Logo em seguida, Kircher retorna à questão das enfermidades contagiosas.

Assim que os espíritos internos de um homem são perdidos, com seu calor natural, o veneno produtor da praga, que ele atraiu e absorveu, dirige seu humor natural à corrupção, por sua virulência.

Depois disso segue-se um fedor pelo qual são corrompidos aqueles que se aproximam do pobre homem ou de roupas já infectadas por essa exalação. A exalação, no entanto, nada mais é do que uma evaporação do humor que está sendo destruído. Essa evaporação (composta realmente por inúmeros pequenos corpos imperceptíveis) logo se expande quando atinge o ar livre e infecta tudo em volta pelo poder virulento de seu contágio.

Esses pequenos corpos ou são respirados para dentro do corpo, ou rastejam para dentro de seus lugares internos mais ocultos entre as roupas, e logo produzem na pessoa os mesmos efeitos que naquele de onde sairam (pois eles possuem o mesmo poder virulento que está na matéria em destruição da qual são partículas).

Em cadáveres, onde todo o corpo realmente se dissolve na destruição, essas emanações de pequenos corpos não infectam tanto os que estão próximos.

Mas eles se transformam em germes animados de pequenos animais diminutos e imperceptíveis. Esse germe permanece por um tempo nos objetos de madeira, tecidos e roupas, assim como em outros tipos de matéria porosa ou matéria de baixa densidade.

Respirados mais tarde, eles impregnam o humor latente interno misturando sua própria substância nele. Daí vem que no próprio contato inicial – especificamente, no contato com a oleosidade – após encontrar seu caminho através dos poros das mãos e dos dedos, eles comunicam sua virulência àquele que estabeleceu contato com eles. Ou então, quando as pessoas usam roupas contaminadas por tal prole, esses, ativados pelo calor e absorvidos pelos poros da pele em alguma parte do corpo ou pela inalação do ar, produzem os mesmos exatos efeitos aos quais tais indivíduos estão expostos, por causa da grande periculosidade da praga para eles.

A exposição de Kircher não é totalmente clara, mas podemos perceber vários aspectos em sua hipótese:

a) o cadáver de uma pessoa morta por uma doença é decomposto e apodrece por causa do veneno que o matou;
b)
 o corpo que começa a apodrecer desprende uma exalação, que se pode perceber pelo seu mau cheiro, que é constituída por partículas invisíveis;
c)
 essas partículas invisíveis representam, em miniatura, o corpo do qual se originaram, e possuem as suas propriedades;
d)
 por isso, essas partículas possuem as mesmas propriedades virulentas do veneno que matou a pessoa, que está produzindo o seu apodrecimento e que produz o aparecimento de vermes no seu interior;
e)
 essas partículas podem ser consideradas vivas, pois elas podem também produzir novos vermes, nos materiais em que penetrarem;
f)
 as partículas podem ser inaladas pela respiração, produzindo o contágio da doença, já que elas contêm todas as propriedades do cadáver;
g)
 ao invés de vermes, as partículas podem produzir pequenos germes (sementes), que ficam nos corpos porosos (tecido, madeira, etc.);
h)
 esses germes podem depois penetrar nas pessoas pela respiração ou pelos poros da pele e reproduzir a doença e a morte.

Kircher parece apenas se preocupar com cadáveres: ele não menciona que os doentes vivos possam transmitir a peste.

Os vermes invisíveis de Kircher são diferentes dos nossos atuais micróbios. Eles não se reproduzem dentro dos doentes: produzem a enfermidade, e essa enfermidade produz uma emanação de partículas, as quais, por sua vez, produzem novos vermes.

Embora Kircher tenha se inspirado em observações microscópicas – como ele mesmo diz – não apresenta nenhuma observação que mostre essas partículas do ar, nem a formação dos vermes, ou os germes contidos nos corpos porosos e depois penetrando pela pele. Trata-se de uma teoria baseada na imaginação de Kircher e não em observações.

O mais importante microscopista dessa época foi Anton van Leeuwenhoek (1632-1723). Foi o primeiro a descrever, em 1675, o enorme número de seres vivos microscópicos que podem ser observados na água estagnada. Ele os chamou de “pequenos animais” ou “animálculos” (animalculum). Observou também os “animais do esperma” (espermatozóides) e percebeu em sua própria boca, em meio ao resto de alimentos, um grande número de microorganismos. Leewenhoek, no entanto, não associa os animálculos às enfermidades.

Vários autores posteriores aderiram às idéias de Kircher. Em 1699, Nicolas Hartsoeker assim explicou a sífilis:

Creio que os vermes causam a maior parte das enfermidades que atacam o gênero humano, e que até mesmo os que possuem os males chamados venéreos, nutrem em seus corpos uma infinidade de insetos invisíveis que fazem todos esses danos que conhecemos.

Em 1711, uma peste desastrosa atacou o gado em muitos locais da Europa e se propagou pela Itália; ela matou quase todos os grandes animais da Lombardia, do duque de Ferrara, do campo de Roma, e do reino de Nápoles. A peste bovina chamou a atenção dos médicos, das academias e dos governos. Congrossi, um médico de Crême, apoiando-se sobre a concepção de Kircher sobre a peste do homem, admitiu que o princípio da enfermidade consistia em uma infinidade de vermes invisíveis. Sua interpretação foi adotada pelo naturalista Antonio Vallisneri, que lhe deu a autoridade de seu nome.

Partindo dessa idéia sobre a causa, a enfermidade foi combatida por fumigações sulfurosas, betuminosas e por remédios antiverminosos, destinados a afastar os animais invisíveis ou a matá-los.

Esses pequenos vermes ou insetos, no entanto, eram puramente hipotéticos. Ninguém sequer tentou observá-los. Eram, portanto, semelhantes aos germes de Fracastoro.

Embora essas idéias se tornassem conhecidas e fossem aceitas por alguns autores, não foram adotadas pela maioria da comunidade médica.

De um modo geral, continuava-se a aceitar que a atmosfera podia ser portadora de certas partículas ou emanações causadoras de doenças, mas não se interpretava essas partículas como germes vivos.

Pouco depois da divulgação do trabalho de Kircher, Thomas Sydenham (1624-1689) publicou um livro sobre as “febres”. Nessa época, esse era o nome dado a um conjunto de enfermidades epidêmicas, muitas delas associadas à proximidade de pântanos – incluindo a malária. Elas eram caracterizadas pela periodicidade: a febre terçã, por exemplo, era aquela que reaparecia a cada três dias.

Sydenham estudou durante 15 anos (de 1661 a 1676) o clima e as doenças de Londres. Concluiu que não era possível explicar apenas pelo calor e frio, umidade e secura, as enfermidades que surgiam a cada ano.

Elas pareciam ter alguma regularidade, mas de outra origem. Sydenham toma então o conceito de “constituição” utilizado por Hipócrates para caracterizar as epidemias, e lhe dá um novo significado.

Existem diferentes constituições em diferentes anos. Elas não se originam em seu calor ou frio, sua umidade ou secura; mas dependem de certas mudanças ocultas e inexplicáveis que ocorrem dentro das entranhas da terra. Pelos seus eflúvios, a atmosfera fica contaminada e os corpos dos homens se predispõem e determinam, conforme o caso, a esta ou aquela enfermidade.

CAPÍTULO 7: A VARÍOLA E A DESCOBERTA DA VACINAÇÃO

A VARÍOLA E SUA PREVENÇÃO

A varíola (também chamada antigamente de “bexiga”) era uma enfermidade que hoje se considera extinta em todo o mundo. Foi, no entanto, um terrível problema durante séculos.

A manifestação da varíola se inicia pela febre, seguida pelo aparecimento de muitas erupções com a forma de pequenos pontos. Eles aumentavam durante uma semana, podendo também atingir a laringe.

As pústulas se espalhavam pelo corpo todo, inclusive pelo rosto. Quando o doente sobrevivia, as pústulas secavam e caiam duas ou três semanas depois.

O início da varíola era semelhante à popular catapora. No entanto, a doença era muito mais perigosa: matava uma grande parte das pessoas atingidas, produzindo danos permanentes nas que se salvavam: deformações físicas, cegueira e grandes cicatrizes.

O nome da doença vem do latim “varius”, usado por Plínio e Celsus para indicar uma enfermidade com pontos na pele. No entanto, a varíola propriamente dita não parece ter sido conhecida na Europa, antes da Idade Média. Nessa época, aparecem as primeiras descrições da doença por médicos árabes: Rhazes e Avicena.

Supõe-se que os árabes tenham espalhado a varíola pela Palestina, Síria, Egito, Pérsia e depois Espanha. Os cruzados levaram a enfermidade para a Europa, onde ela se tornou comum a partir dessa época.

Posteriormente, os europeus se encarregaram de espalhar também a doença. No México, a varíola foi introduzida por um escravo negro das forças espanholas e matou a metade dos habitantes.

A doença foi chamada Matla-zahuatl. Segundo Torquemada, morreram 800.000 nativos em 1545 e 2.000.000 em 1576. Atribui-se também à varíola grande parte da redução dos índios da Califórnia.

Mas a enfermidade não surgiu no mundo na Idade Média. Algumas múmias egípcias, como a de Ramsés V, morto em 1157 antes da era cristã, apresentam erupções que são atribuídas à varíola. Em muitos povos, a doença era tão importante que era associada a divindades específicas. Na Índia, a deusa Sitala Mata era invocada para a cura dessa doença. No Japão, uma figura do herói Tametomo, que se contava ter vencido o demônio da varíola, era colocado no quarto dos doentes para ajudar na sua recuperação. Na China, os deuses Ma-Chen e Pan-Chen estavam associados à doença. Na África, o deus da varíola entre os Yorubás era Sopona, que foi depois introduzida no Brasil com os nomes de Omolu e Obaluaê.

Na Índia e na China, a varíola era conhecida desde tempos muito antigos. Ela estava sempre presente, aumentando de intensidade no verão. Nessas duas regiões, foi descoberto um modo de evitar a perigosa enfermidade. O processo, que muito tempo depois iria levar à descoberta da vacinação, consistia em produzir nas pessoas sadias um ataque atenuado de varíola.

As pessoas ficavam depois protegidas contra a doença, pois ela só atinge uma vez cada pessoa.

Na Índia, havia sacerdotes (brâmanes) itinerantes, que se dedicavam à prevenção dessa doença. A cada ano, eles cuidavam recolhiam o líquido que aparecia nas pústulas das pessoas atacadas pela varíola, impregnando com esse pus pequenos pedaços de algodão. Esse material era guardado durante um ano ou mais.

Antes da época em que a varíola costumava aparecer, os brâmanes iniciavam seu trabalho. As pessoas se preparavam, evitando comer peixe, leite e um tipo de manteiga feita de leite de búfala.

Os brâmanes escolhiam uma parte do corpo para introduzir o pus da varíola – geralmente a parte externa do braço, sendo os homens entre o pulso e o cotovelo e as mulheres entre o ombro e o cotovelo.

O operador primeiro esfregava essas partes com um pano seco, durante oito a dez minutos; depois, com um pequeno instrumento feito como um bico de corvo agudo na ponta, fazia em um pequeno espaço, do tamanho de uma pequena moeda, vários arranhões leves, de modo que aparecesse um mínimo de sangue.

Aplicava-se então um pouco de algodão impregnado com matéria variólica, depois de ser molhado com um pouco de água sagrada do rio Ganges. Enrolava-se em cima uma atadura.

Seis horas depois a bandagem era removida e deixava-se o algodão cair. Surgiam em geral de 50 a 100 pústulas pelo corpo, pela inoculação. Essas pústulas eram menores do que as que surgiam na doença espontânea, e embora a pessoa tivesse febre, recuperava-se com relativa facilidade, sem que a enfermidade deixasse marcas.

Um outro processo para proteger contra a varíola foi desenvolvido na China. Conta-se que uma monja chinesa vivia como eremita em uma montanha próxima ao Tibet. Para proteger as crianças, ele preparou um pó utilizando cascas secas das feridas de varíola, que eram pulverizadas e misturadas com uma planta (Uvularia grandiflora). Em dias propícios, especialmente escolhidos, esse pó era soprado na narina de crianças sadias, utilizando-se um canudo de prata. Para as meninas, era utilizada a narina esquerda, e para os meninos, a direita. Essas crianças, após alguns dias, desenvolviam uma forma branda de varíola, recuperavam-se e ficavam depois protegidas durante o resto da vida contra a doença.

Não se sabe atualmente como essa monja chegou a tal prática. A população da época a atribuiu a uma inspiração divina.

Os procedimentos desenvolvidos na Índia e na China são diferentes e parecem não ter se inspirado um no outro. Nos dois casos, pode-se supor que as pessoas perceberam que a varíola era transmissível e que o contato com as feridas aumentava a possibilidade de contágio. Devia existir, então, nas feridas, algum material que transmitia a doença.

Por outro lado, sabia-se também que a enfermidade nunca atacava duas vezes a mesma pessoa. Podia-se portanto tentar transmitir a doença a pessoas fortes, sadias, para que elas ficasse protegidas da doença.

No entanto, era impossível prever o que aconteceria. Poderia acontecer que as pessoas que fossem artificialmente contagiadas morressem. Por sorte, verificou-se que isso não acontecia, e os processos passaram a ser aplicados com sucesso.

A varíola artificial não era totalmente segura. Na Índia, aparentemente, uma pessoa em cada 500 inoculadas morria. No entanto, a doença era tão comum e tão grave, que o risco parecia pequeno e valia a pena arriscar-se.

Sistemas semelhantes de inoculação da varíola foram descobertos independentemente em outros locais – inclusive na Europa – mas não tiveram grande difusão. Sabe-se que no principado de Gales, muitos séculos atrás, fazia-se “enxerto” de varíola. O procedimento eram chamado “comprar bexiga”, pois se pagavam duas ou três moedas à pessoa que fornecia a doença aos outros. O procedimento era popular entre os estudantes: a mão ou braço eram arranhados, esfregando-se sobre o arranhão a matéria da varíola. Na Dinamarca, havia um costume semelhante no século 15. No entanto, tudo isso parecia apenas superstição ou folclore.

A Medicina erudita ignorava o processo.

Em meados do século XVII, missionários jesuítas que estavam na China comunicaram aos europeus o método de inalação das cascas de feridas para prevenção da varíola. Mas o método não sucitou muito interesse.

Nessa mesma época, o método indiano é adotado na Grécia, no Egito e depois na Turquia, e de lá acabou chegando à Europa.

O processo utilizado nesses locais consistia em passar a doença diretamente de um doente para uma pessoa sadia. Arranhava-se ou perfurava-se o braço ou a testa da pessoa com uma agulha, que estava embebida no líquido de uma pústula “madura” (tendendo a secar).

Na Turquia, os maometanos não aceitaram o processo de inoculação. Os cristão turcos utilizavam o processo, e observava-se uma enorme diferença de mortalidade pela varíola, entre as duas populações.

O fato foi observado e impressionou o médico grego Emanuel Timoni, que estava na Turquia em 1713. Ele enviou uma carta à Inglaterra, comunicando suas observações, e seu trabalho foi publicado pela principal sociedade científica da época: a Royal Society, de Londres. Mesmo assim, o processo não despertou interesse. Ele só foi difundido graças ao esforço de uma mulher: Lady Mary Wortley Montague.

Lady Montague era esposa do embaixador inglês em Constatinopla. Em 1717, diante do perigo da varíola, fez inocular seu filho naquela capital por Maitland, um cirurgião inglês. Em 1722 ela retornou à Inglaterra e sua jovem filha foi inoculada por uma pequena incisão em cada braço. Foi a primeira pessoa inoculada na Inglaterra. A notícia se espalhou e, graças ao prestígio de Lady Montague, alguns meses depois, a princesa e outros membros da família real foram inoculados, com sucesso.

Os médicos ingleses resolveram estudar o método. Em 1725 foram feitos experimentos com criminosos condenados, em Newgate, que se ofereceram como voluntários, ganhando como prêmio o perdão real, caso não morressem. Sete foram inoculados pelo método chinês e seis pelo método turco. Notou-se que cérebro de um dos prisioneiros do primeiro grupo foi afetado; por isso houve um preconceito contra o método chinês, que não foi adotado. Começou-se a fazer inoculações pelo método turco. O processo foi chamado de “variolação” ou de “inoculação de bexigas”.

Não devemos chamar esse processo de “vacinação”.

Mais adiante veremos o significado exato da palavra “vacina”.

À medida que a notícia se divulgou pelo mundo, muitos começaram a adotar esse processo. No Brasil, um missionário carmelita do Pará leu uma notícia sobre a variolação e resolveu aplicá-la, pois a metade dos seus índios já havia morrido com a enfermidade.Outros missionários seguiram seu exemplo, com bastante sucesso.

No caso da varíola natural, observava-se nessa época que uma de cada cinco ou seis doentes acabava morrendo. Em alguns casos, a metade das pessoas doentes morriam. No caso da variolação, havia um certo risco.

Estudos publicados em 1727 mostraram que, de 764 pessoas inoculadas, 15 haviam morrido. As vítimas eram geralmente crianças e idosos, que tinham consulsões e morriam. A proporção era muito alta: uma para cada 50 pessoas. Houve também acidentes graves, em Boston, em 1723, por exemplo, onde uma grande parte dos variolados morreu.

Qual era a gravidade da enfermidade, nessa época? Em torno de 1700, cerca de 0,5% da população de Londres morria de varíola, a cada ano. Através de estatísticas oficiais, pode-se conhecer a taxa anual de mortalidade por essa doença, em Londres, no final do século XVII:

Período Porcentagem de Habitantes Mortos Por Varíola, em Londres
1650 a 1660 4,8 %
1660 a 1670 3,6 %
1670 a 1680 7,1 %
1680 a 1690 7,4 %
1690 a 1700 5,1 %

O risco de adquirir varíola e ficar cego ou deformado devia ser muito maior. Por isso, a maior parte da população achava que era melhor se arriscar com a variolação do que ser atingido ela varíola natural.

Na França, houve inicialmente forte reação contra o procedimento. Uma folheto anônimo, denominado “Razões de dúvidas contra a inoculação”, questionava se podia deixar de ser criminosa a inoculação de uma doença sobre um corpo humano. Afirmava que não se conhecia se o processo era realmente antigo ou apenas uma invenção recente.

O autor do folheto dizia que o procedimento adotado era arbitrário, injusto, falso, irregular. A variolação era totalmente contrária a tudo o que se sabia em Medicina (ou seja: contrária à teoria dos humores), pois não produzia a evacuação das matérias nocivas ao organismo. Por fim, reprovava o processo por vários motivos: a variolação “é contrária aos olhos do Criador”; não preserva da varíola natural; é contrária às leis civis; e parece mais pertencente à Magia, do que à Medicina.

Quem se horrorizasse com o processo, na época, não podia ser criticado. Sob o ponto de vista mais intuitivo, é repugnante fazer uma ferida no braço e passar sobre ela o pus tirado de uma pessoa doente.

Sob o ponto de vista racional, como se podia entender que o virus (veneno) da varíola produzida artificialmente se tornava mais fraco do que quando era recebido naturalmente, pelo contágio, em quantidade muito menor? E sob o ponto de vista teórico: por que motivo a pessoa que já adquiriu a enfermidade fica protegida depois contra ela? Nada era compreendido.

A resistência na França foi vencida graças principalmente ao esforço do astrônomo e naturalista Charles-Marie de la Condamine, que escreveu a favor da variolação, em 1755, influenciando muitos nobres a se deixar inocular.

Aproximadamente na mesma época, outros países da Europa aceitaram o processo.

O método sofreu várias adaptações e mudanças. Na Itália, era seguido o seguinte processo: inicialmente, a pessoa devia se preparar, por alguns dias, seguindo um regime equilibrado, tomando um ou dois laxativos brandos, e, dependendo do temperamento da pessoa, fazendo uma sangria . Depois, fazia-se um corte na pele do braço, com o comprimento de uma polegada.

Nesse corte era introduzida uma linha impregnada pelo líquido de uma pústula “madura”. Depois de 40 horas, a linha era retirada.

À medida que o processo se difundia e era utilizado por pessoas mais experientes, o risco foi diminuindo. Na segunda metade do século XVIII, morria apenas uma de cada 400 pessoas inoculadas.

Seria um risco aceitável?

Na segunda metade do século XVIII, na Europa, um de cada 300 habitantes morria de varíola, a cada ano. Como a varíola podia atacar em qualquer idade, era um risco contínuo, para quem não passasse pela variolação. Parecia portanto válido o processo. Mas nem todos se deixavam inocular: era um processo de uso voluntário.

Depois de algum tempo, no entanto, ressurgiram as críticas. A varíola não estava desaparecendo da Europa. Parecia estar até aumentando. Em Londres, por exemplo, os dados mostravam isso claramente:

Período Nº de Mortos Por Varíola em Londres
1701 a 1716 22.219 Antes da Inoculação
1717 a 1731 34.448 Início da Inoculação
1732 a 1746 29.462 Uso da Inoculação
1746 a 1761 29.165 Uso da Inoculação
1762 a 1776 36.276 Uso da Inoculação

Em 1772, observou-se o máximo de mortes de varíola em Londres: 3.992 em um único ano. Agora, a cada década, 10% dos habitantes de Londres morriam de varíola, um número nunca alcançado no século anterior.

Período Porcentagem de Habitantes Mortos Por Varíola, em Londres
1750 a 1760 10,0 %
1760 a 1770 10,8 %
1770 a 1780 9,8 %
1780 a 1790 8,7 &
1790 a 1800 8,8 %

O que estava acontecendo?

Logo surgiu uma terrível suspeita: a própria variolação estava espalhando a doença. Antes desse processo ser introduzido, as pessoas estavam sujeitas apenas a se contagiar de pessoas doentes pelo processo natural.

Mas agora, muitas pessoas adquiriam a varíola artificialmente, e as pessoas que não eram inoculadas podiam adquirir o contágio também delas. Ou seja: as fontes de contágio aumentaram.

Embora a enfermidade artificial fosse mais fraca, talvez ela mantivesse todo o seu poder quando passasse pelos processos naturais para outras pessoas.

Felizmente, no final do século XVIII, foi descoberto um modo mais seguro de prevenção da varíola: a vacinação. Essa descoberta é tão importante, que merece uma descrição detalhada.

A DESCOBERTA DA VACINA

Foi no final do século XVIII que o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) realizou estudos que levaram à substituição da variolação pela vacinação.

Em um artigo publicado em 1802 em um jornal médico, o próprio Jenner conta a sua descoberta. Ele trabalhava com pessoas do campo, e praticava a variolação.

Sua atenção foi chamada para uma enfermidade parecida com a varíola, chamada em inglês “cow pox”, que acometia as vacas:

Minha investigação sobre a natureza da varíola das vacas começou mais de 25 anos atrás. Minha atenção para essa doença singular foi excitada observando que, entre aqueles que, no campo, eu era freqüentemente chamado a inocular [com a varíola], muitos resistiam a todos os esforços de lhes dar a varíola. Estes pacientes, descobri, tinham sofrido uma doença que chamavam de cow-pox, contraída ordenhando va-cas afetadas com uma erupção peculiar de suas tetas.

Em suas obras, Jenner descreve um grande número de casos desse tipo. O primeiro exemplo foi o de um fazendeiro, Joseph Merrett. Em 1770, alguns cavalos de sua fazenda começaram a ter feridas nos joelhos.

Logo depois, as vacas foram afetadas por varíola de vaca, e em seguida apareceram feridas nas mãos de Merrett, que as ordenhava. Surgiram os vários sintomas, e ele ficou incapaz de trabalhar durante vários dias.

Depois, sarou.

Em abril de 1795, ocorrendo aqui uma inoculação geral [variolação], Merrett foi inoculado com sua família. Já se havia passado um período de 25 anos desde que ele tinha tido a cow-pox. No entanto, embora se inserisse repetidamente a matéria variólica em seu braço, descobri que era impossível infectá-lo com ela, aparecendo apenas uma eflorescência na pele, com aparência erisipelosa no centro, próxima às partes perfuradas. Durante todo o tempo que sua família teve a varíola – e um dos seus membros a teve de modo muito forte – ele permaneceu na casa com eles, mas não recebeu dano pela exposição ao contágio.

Jenner testou a resistência à varíola de várias pessoas. Um viajante chamado John Phillips teve cow-pox aos 9 anos de idade. Quando tinha 62 anos, Jenner o inoculou com a varíola, “tendo o cuidado de usar a matéria em seu estado mais ativo”. Logo se produziu um efeito semelhante ao de uma picada de inseto, que cresceu, tornando-se uma eflorescência grande. John sentiu dor, ficando com o ombro endurecido, no quarto dia. Mas logo depois de alguns dias os sintomas desapareceram, sem que surgissem as pústulas características da variolação.

Ou seja: as pessoas que adquiriam a varíola de vaca não adquiriam a varíola humana no processo de inoculação . Se isso fosse verificado, seria de grande importância, pois Jenner sabia que a doença das vacas, embora produzisse feridas nas pessoas, não era tão grave quanto a varíola, e nunca era mortal. No entanto, o efeito observado não parecia ser uma regra geral:

No curso da investigação desse assunto, que, como todos os outros de uma natureza intrincada e complexa, apresenta muitas dificuldades, descobri que alguns daqueles que pareciam ter sofrido de cow-pox, apesar disso, ao serem inoculados com a varíola, sentiam sua influência exatamente como se não lhes tivesse sido comunicada a doença pela vaca.

Isso me levou a inquirir os praticantes médicos no campo em torno de mim, e todos concordaram com essa opinião, que a cow-pox não devia ser confiada como um preventivo certo da varíola.

Por algum tempo isso diminuiu, mas não extingüiu o meu ardor; pois, à medida que prosseguia, tive a satisfação de aprender que a vaca estava sujeita a certa variedade de erupções espontâneas nas tetas; que elas eram capazes de comunicar feridas às mãos dos ordenhadores; e que todas as feridas transmitidas pelo animal eram chamadas pelas ordenhadoras de cow-pox. Assim eu transpus um grande obstáculo, e, em conseqüência, fui levado a formar uma distinção entre essas doenças, uma das quais denominei de cow pox verdadeira e as outras de espúrias, pois não possuem poder específico sobre a constituição.

A situação, como se vê, não era muito clara. Logo surgiram outras dúvidas. Jenner tomou conhecimento de que, de várias pessoas que haviam ordenhado a mesma vaca, na mesma ocasião, e que tinham adquirido a varíola de vaca, algumas depois não mostravam nenhum efeito ao serem inoculadas com a varíola humana, mas outras mostravam todos os sintomas.

Isso, como o obstáculo anterior, forneceu um cheque doloroso a minhas esperanças; mas, refletindo que as operações da natureza são geralmente uniformes, e que não era provável que a constituição humana (tendo sofrido a cow-pox) devesse em alguns casos ficar perfeitamente protegida da varíola, e em muitos outros ficar desprotegida, reiniciei meus trabalhos com ardor redobrado.

Jenner logo chegou a uma nova conclusão: o efeito da enfermidade das vacas dependia do estágio em que ela era transmitida às pessoas. Em certas fases da doença da vaca, ela transmitia às pessoas uma mudança constitucional que as protegia contra a varíola. Em outras fases, a pessoa podia ficar doente e podiam surgir ferimentos em seu corpo, mas ela não ficava protegida contra a varíola. Jenner interpretou essa diferença a uma mudança do veneno (ou vírus) da doença:

Os resultados foram afortunados; pois eu agora descobri que o vírus da cow-pox podia sofrer mudanças progressivas, precisamente pelas mesmas causas que o da varíola; e que, quando era aplicado à pele humana em seu estado degenerado, produziria os efeitos ulcerativos em um grau meior do que quando não estava decomposto, e algumas vezes ainda mais; mas tendo perdido suas propriedades específicas, era incapaz de produzir aquela mudança sobre a estrutura humana..

…que é necessária para torná-la insuscetível de contágio variólico; e assim tornou-se evidente que uma pessoa poderia ordenhar uma vaca um dia, e pegar a doença, ficando para sempre segura; enquanto que uma outra pessoa, ordenhando a mesma vaca no dia seguinte, poderia sentir a influência do vírus de tal modo a produzir feridas e, em conseqüência disso, poderia sentir uma indisposição de extensão considerável; e no entanto, como foi observado, tendo sido perdida a qualidade específica, a constituição não receberia qualquer impressão peculiar.

A partir de todas as informações que colheu e de suas análises, Jenner se convenceu de que poderia proteger as pessoas da varíola utilizando a varíola de vaca.

Planejou propagar a enfermidade por inoculação como no caso da varíola, primeiro da vaca, e depois de uma pessoa para outra.

É interessante assinalar que a idéia de fazer inoculações de outras doenças já havia surgido antes, por influência da variolação. Um professor de Jenner, chamado John Hunter (1728-1793) estava estudando as doenças venéreas e desejava descobrir se a sífilis e a gonorréia eram manifestações diferentes de uma mesma enfermidade, ou doenças diferentes. Resolveu fazer uma experiência: inoculou em si próprio o pus das feridas de um doente de gonorréia. Como resultado do teste, adquiriu sífilis (sem dúvida porque o doente tinha, também, essa doença) e concluiu que as duas enfermidades tinham uma causa comum.

Em 1796, Jenner se sentiu suficientemente seguro para fazer a sua primeira experiência. Atualmente, qualquer teste desse tipo seria feito primeiro com animais, mas não existiam esses cuidados no século XVIII. Assim, ele resolve fazer o experimento diretamente com seres humanos. Nessa época, ele cuidou de uma empregada de uma fazenda, chamada Sarah Nelmes, que havia acidentalmente adquirido a varíola de vaca.

Seu braço apresentava grandes feridas produzidas pela enfermidade. Jenner utilizou o pus dessas feridas para tentar transmitir a doença a um menino da mesma fazenda, chamado Phipps.

Para observar mais cuidadosamente o progresso da infecção, eu selecionei um garoto saudável, com cerca de oito anos de idade, para inocular com a cow-pox.

A matéria foi tirada da ferida da mão de uma ordenhadeira (que havia sido infectada pelas vacas de seu patrão) e foi inserida no dia catorze de maio de 1796, no braço do garoto, por meio de duas incisões superficiais, penetrando pouco a cútis, com cerca de meia polegada de comprimento cada uma.

No sétimo dia ele reclamou de desconforto na axila, e no nono ele se tornou um pouco frio, perdeu seu apetite, e teve uma leve dor de cabeça. Durante todo o dia ele estava perceptivelmente indisposto, e durante a noite teve algum grau de inquietação, mas no dia seguinte estava perfeitamente bem.

A aparência das incisões no seu progresso para um estado de maturação foram bastante iguais às produzidas de modo semelhante pela matéria variólica.

A única diferença que percebi foi no estado do fluido límpido que surgia da ação do vírus, que assumia geralmente uma coloração mais escura, e que a eflorescência se espalhava em torno das incisões, que tinham uma aparência mais erisipelatosa do que comumente percebemos quando se usa matéria variólica desse mesmo modo; mas tudo desapareceu (deixando nas partes inoculadas cascas e depois cicatrizes) sem dar a mim ou ao meu paciente o menor trabalho.

Esse era o primeiro passo: tinha sido possível transmitir a doença da moça para o menino, artificialmente, e a enfermidade tinha sido bastante suave.

Mas era preciso verificar se essa varíola de vaca artificial protegia contra a varíola humana.

Para verificar se o menino, depois de sentir uma afecção tão leve do sistema pelo vírus do cow-pox, estava seguro do contágio da varíola, ele foi inoculado no dia primeiro de julho seguinte com a matéria variólica, tomada diretamente de uma pústula. Foram feitas várias leves perfurações e incisões em ambos seus braços, e a matéria foi inserida cuidadosamente, mas não se seguiu nenhuma doença.

Foram observadas nos braços as mesmas aparências que comumente vemos quando um paciente tem matéria variólica aplicada, depois de ter tido ou cow-pox ou varíola.

Alguns meses depois ele foi novamente inoculado com matéria variólica, mas não se produziu efeito sensível em sua constituição.

Este experimento foi muito arriscado, mas deu um resultado feliz. Poderia ter sido uma tragédia.

Jenner interrompeu as suas pesquisas até a primavera de 1798, quando a doença das vacas surgiu em várias fazendas. Ele fez, então, novos experimentos.

No dia 16 de março de 1798, ele inoculou um garoto de 5 anos de idade, chamado William Summers, com o pus tirado das tetas de uma vaca que tinha a cow-pox. No sexto dia ele se sentiu indisposto, vomitou e surgiu um inchaço em seu braço, mas no oitavo dia ele já estava se sentindo bem.

No décimo-segundo dia (28 de março), Jenner inoculou William Pead, um menino de oito anos, utilizando material tirado da pústula de William Summers. No sexto dia, William Pead queixou-se de dor nas axilas e no sétimo mostrou os sintomas de pessoas com cow-pox. Depois de mais três dias, sarou.

No dia 5 de abril, várias crianças e adultos foram inoculados a partir de material tirado do braço de William Pead. Em sua maior parte, eles adoeceram no sexto dia e melhoraram no sétimo; mas em três deles houve uma indisposição secundária por causa de uma extensa inflamação erisipelatosa nos braços inoculados. Jenner aplicou mercúrio nas feridas e elas melhoraram. Um deles tinha apenas meio ano de idade.

Entusiasmado com o sucesso, Jenner realiza sucessivas transferências da doença de uma pessoa para outras. Verifica que os efeitos são sempre semelhantes, não se tornando nem mais fracos nem mais fortes, com as transferências sucessivas.

Jenner estava tão seguro de que essas pessoas estavam todas protegidas contra a varíola, que nem se deu ao trabalho de fazer testes com todas elas. Apenas fez, após vários meses, a experiência de inoculação da varíola humana no primeiro menino, William Summers, e em mais duas pessoas. Nos três casos, não houve efeitos. Jenner considerou seus experimentos perfeitamente decisivos, concluindo que “a cow-pox protege a constituição humana da infecção da varíola”. Ele divulgou seu trabalho através de um folheto publicado em 1798, ao qual se seguiram depois outras obras.

É curioso assinalar que foi o título dos trabalhos de Jenner que levou ao nome “vacina”:

– “Uma investigação sobre as causas e efeitos da variolae vaccinae, uma doença descoberta em alguns dos condados ocidentais da Inglaterra, particularmente Gloucestershire, e conhecida pelo nome de cow pox” (1798)

– “Novas observações sobre a variolae vaccinae” (1799)

– “Uma continuação de fatos e observações relativas à variolae vaccinae ou cow-pox” (1801)

Essas publicações, embora escritas em inglês, apresentavam em latim o nome da doença das vacas: “variola vaccinae”, que significa varíola das vacas ou varíola “vaquina” (que Aurélio me perdoe essa palavra).

A palavra “vaccina” era portanto um adjetivo latino, que indicava a origem da enfermidade. Não representava o procedimento utilizado. Assim como a variolação era chamada de inoculação da varíola, passou-se a falar sobre a inoculação da varíola das vacas, ou seja, da varíola “vaquina”. Como o latim dava um maior respeito ao procedimento, era preferível utilizar a expressão “inoculação da variola vaccinae”, que depois foi simplificada para “inoculação da vacina” e por fim se transformou em “vacinação”. A palavra “vacina”, isoladamente, é um absurdo gramatical, pois trata-se de um adjetivo (“da vaca”) que é usado como substantivo. Pior ainda é falar sobre as “vacinas” contra várias doenças, que não têm nada a ver com vacas. Mas a linguagem, infelizmente, é assim: quando se esquece a origem das palavras, seu significado muda tanto que elas se tornam irreconhecíveis.

Mas voltemos à época de Jenner. A divulgação desses trabalhos produziu repercussão imediata. Outros médicos logo se apressaram a testar as observações de Jenner. No mesmo ano de 1798, George Pearson publicou um estudo em que confirmou a eficácia da varíola de vaca para proteger contra a varíola humana. No ano seguinte, o médico Joseph Marshall inoculou 211 pessoas com a cow-pox e depois tentou transmitir-lhes artificialmente a varíola humana. Nenhuma delas contraiu a enfermidade.

Embora houvesse alguma resistência ao novo método, que não era compreendido, muitos médicos aderiram à inoculação da varíola de vaca. O próprio Jenner indica que, até 1801, “mais de 6.000 pessoas foram inoculadas com o vírus da cow-pox e a maior parte delas foi desde então inoculada com o da varíola, e exposto à infecção de todos os modos racionais que puderem ser imaginados, sem efeito.” Em 1806, o “Royal College of Surgeons” da Inglaterra fez um inquérito sobre a eficácia e os efeitos de vacinação. Os 426 médicos que responderam haviam vacinado, até essa época, um total de 164.381 pessoas.

Desse total, 56 pessoas tiveram varíola depois da vacinação, o que mostrava que a proteção não era totalmente segura. Houve alguns efeitos negativos da vacinação: 66 casos de fortes erupções na pele, 24 casos de inflamação do braço, e em três desses casos as pessoas morreram.

Havia, no entanto, oposição à vacinação. Os jornais populares publicavam ilustrações que ridicularizavam a vacinação, mostrando pessoas que se transformavam em vacas.

Também houve resistência por parte de muitos médicos, como William Rowley, B. Moseley e John Gale Jones. Por uma lado, era um processo puramente empírico, que não era compreendido. Por outro lado, parecia um método perigoso. Foram descritos casos em que a vacinação foi seguida por erisipela, em pessoas aparentemente saudáveis, havendo muitas mortes. Por outro lado, como a doença era passada de uma pessoa para outra, verificou-se que podiam ser transmitidas ao mesmo tempo outras doenças, como a sífilis. Assim, ao tentar se proteger da varíola, a pessoa podia cair vítima de outra enfermidade transmissível.

Houve muitas falhas iniciais por causa de falta de padronização de métodos e falta de cuidados básicos.

O próprio Jenner se preocupou em esclarecer as diferenças entre a verdadeira varíola de vaca e outras enfermidades do gado. Descreveu também detalhadamente os cuidados a serem tomados: como colher o material das vacas, como guardá-lo, como inoculá-lo.

As vantagens do processo descoberto por Jenner eram muitas. Em primeiro lugar, os efeitos secundários e o risco da vacinação eram menores: apenas 3 mortes em 160.000 pessoas vacinadas, contra 1 morte em cada 500 pessoas às quais se tinha aplicado a variolação. Em segundo lugar, verificou-se que a doença das vacas apenas se transmitia pelo contato, nunca pela proximidade ou pelo ar. Por isso, as pessoas que eram inoculadas com a varíola das vacas não se tornavam perigosas para as demais. Pelo contrário, a varíola humana podia se transmitir sem contado físico direto (pelo ar) e por isso as pessoas que adquiriam a varíola humana artificial se tornavam perigosas para as outras.

Período Porcentagem de Habitantes Mortos por Varíola, em Londres
1810 a 1820 4,2 %
1820 a 1830 3,2 %
1830 a 1840 2,3 %
1840 a 1850 1,8 %
1850 a 1860 1,2 %

Com a prática da vacinação, a mortalidade pela varíola começa a ser reduzida, durante o século XIX.

É verdade que, aos poucos, foram surgindo problemas. Em 1818 surgiu uma violenta epidemia de varíola na Inglaterra e no continente europeu.

Atingiu e matou muitas pessoas que tinham sido inoculadas antes com varíola e com cow-pox. Isso mostrava que nenhum dos métodos proporcionava uma segurança total. Em 1826-7 houve epidemia de varíola na França; em 1827, na parte norte da Itália. Muitos vacinados foram novamente atacados pela varíola.

A partir de então, começou na Prússia a prática da “revacinação”: repetir a vacinação, com o objetivo de proteger mais as pessoas. Não havia nenhuma base teórica para essa repetição, mas aparentemente o novo método deu resultado. Na Prússia, durante uma epidemia, ocorreu apenas um caso de varíola, em 5 anos, entre 14.384 soldados revacinados, e apenas três casos entre 26.864 civis revacinados.

No dia 16 de março de 1798, ele inoculou um garoto de 5 anos de idade, chamado William Summers, com o pus tirado das tetas de uma vaca que tinha a cow-pox. No sexto dia ele se sentiu indisposto, vomitou e surgiu um inchaço em seu braço, mas no oitavo dia ele já estava se sentindo bem.

No décimo-segundo dia (28 de março), Jenner inoculou William Pead, um menino de oito anos, utilizando material tirado da pústula de William Summers. No sexto dia, William Pead queixou-se de dor nas axilas e no sétimo mostrou os sintomas de pessoas com cow-pox. Depois de mais três dias, sarou.

No dia 5 de abril, várias crianças e adultos foram inoculados a partir de material tirado do braço de William Pead. Em sua maior parte, eles adoeceram no sexto dia e melhoraram no sétimo; mas em três deles houve uma indisposição secundária por causa de uma extensa inflamação erisipelatosa nos braços inoculados. Jenner aplicou mercúrio nas feridas e elas melhoraram.

Um deles tinha apenas meio ano de idade.

Entusiasmado com o sucesso, Jenner realiza sucessivas transferências da doença de uma pessoa para outras. Verifica que os efeitos são sempre semelhantes, não se tornando nem mais fracos nem mais fortes, com as transferências sucessivas.

Jenner estava tão seguro de que essas pessoas estavam todas protegidas contra a varíola, que nem se deu ao trabalho de fazer testes com todas elas. Apenas fez, após vários meses, a experiência de inoculação da varíola humana no primeiro menino, William Summers, e em mais duas pessoas. Nos três casos, não houve efeitos. Jenner considerou seus experimentos perfeitamente decisivos, concluindo que “a cow-pox protege a constituição humana da infecção da varíola”. Ele divulgou seu trabalho através de um folheto publicado em 1798, ao qual se seguiram depois outras obras.

É curioso assinalar que foi o título dos trabalhos de Jenner que levou ao nome “vacina”:

– “Uma investigação sobre as causas e efeitos da variolae vaccinae, uma doença descoberta em alguns dos condados ocidentais da Inglaterra, particularmente Gloucestershire, e conhecida pelo nome de cow pox” (1798)
– “Novas observações sobre a variolae vaccinae” (1799)
– “Uma continuação de fatos e observações relativas à variolae vaccinae ou cow-pox” (1801)

Essas publicações, embora escritas em inglês, apresentavam em latim o nome da doença das vacas: “variola vaccinae”, que significa varíola das vacas ou varíola “vaquina” (que Aurélio me perdoe essa palavra).

A palavra “vaccina” era portanto um adjetivo latino, que indicava a origem da enfermidade. Não representava o procedimento utilizado. Assim como a variolação era chamada de inoculação da varíola, passou-se a falar sobre a inoculação da varíola das vacas, ou seja, da varíola “vaquina”. Como o latim dava um maior respeito ao procedimento, era preferível utilizar a expressão “inoculação da variola vaccinae”, que depois foi simplificada para “inoculação da vacina” e por fim se transformou em “vacinação”. A palavra “vacina”, isoladamente, é um absurdo gramatical, pois trata-se de um adjetivo (“da vaca”) que é usado como substantivo. Pior ainda é falar sobre as “vacinas” contra várias doenças, que não têm nada a ver com vacas. Mas a linguagem, infelizmente, é assim: quando se esquece a origem das palavras, seu significado muda tanto que elas se tornam irreconhecíveis.

Mas voltemos à época de Jenner. A divulgação desses trabalhos produziu repercussão imediata. Outros médicos logo se apressaram a testar as observações de Jenner. No mesmo ano de 1798, George Pearson publicou um estudo em que confirmou a eficácia da varíola de vaca para proteger contra a varíola humana. No ano seguinte, o médico Joseph Marshall inoculou 211 pessoas com a cow-pox e depois tentou transmitir-lhes artificialmente a varíola humana. Nenhuma delas contraiu a enfermidade.

Embora houvesse alguma resistência ao novo método, que não era compreendido, muitos médicos aderiram à inoculação da varíola de vaca. O próprio Jenner indica que, até 1801, “mais de 6.000 pessoas foram inoculadas com o vírus da cow-pox e a maior parte delas foi desde então inoculada com o da varíola, e exposto à infecção de todos os modos racionais que puderem ser imaginados, sem efeito.” Em 1806, o “Royal College of Surgeons” da Inglaterra fez um inquérito sobre a eficácia e os efeitos de vacinação. Os 426 médicos que responderam haviam vacinado, até essa época, um total de 164.381 pessoas.

Desse total, 56 pessoas tiveram varíola depois da vacinação, o que mostrava que a proteção não era totalmente segura. Houve alguns efeitos negativos da vacinação: 66 casos de fortes erupções na pele, 24 casos de inflamação do braço, e em três desses casos as pessoas morreram.

Havia, no entanto, oposição à vacinação. Os jornais populares publicavam ilustrações que ridicularizavam a vacinação, mostrando pessoas que se transformavam em vacas.

Também houve resistência por parte de muitos médicos, como William Rowley, B. Moseley e John Gale Jones. Por uma lado, era um processo puramente empírico, que não era compreendido. Por outro lado, parecia um método perigoso. Foram descritos casos em que a vacinação foi seguida por erisipela, em pessoas aparentemente saudáveis, havendo muitas mortes. Por outro lado, como a doença era passada de uma pessoa para outra, verificou-se que podiam ser transmitidas ao mesmo tempo outras doenças, como a sífilis. Assim, ao tentar se proteger da varíola, a pessoa podia cair vítima de outra enfermidade transmissível.

Houve muitas falhas iniciais por causa de falta de padronização de métodos e falta de cuidados básicos.

O próprio Jenner se preocupou em esclarecer as diferenças entre a verdadeira varíola de vaca e outras enfermidades do gado. Descreveu também detalhadamente os cuidados a serem tomados: como colher o material das vacas, como guardá-lo, como inoculá-lo.

Se a varíola humana e a cow-pox tiverem uma origem comum, torna-se mais fácil compreender como uma pode proteger contra a outra: porque possuem, essencialmente, a mesma causa, que passou apenas por algumas modificações.

A hipótese de Jenner sobre a origem eqüina da cow-pox, no entanto, logo foi negada.

Independentemente da origem da doença, o efeito da vacinação era tão misterioso quanto o da variolação. Por que motivo uma pessoa que já teve uma doença fica protegida contra essa enfermidade?

Por que isso ocorre no caso da varíola e não ocorre no caso de outras doenças, que podem atacar várias vezes a mesma pessoa? O próprio Jenner não tenta explicar isso.

Ele se contenta com o estabelecimento de que a vacinação funciona e é segura.

O químico Humphry Davy propôs, em 1811, uma explicação: um veneno poderia combater outro semelhante. Assim, se a pessoa já tivesse dentro de seu corpo um veneno (da cow-pox), esse veneno impediria a ação da varíola humana. Nessa hipótese, está implícita a suposição de que a varíola é transmitida por um tipo de veneno – o que todos aceitavam na época. Como vimos, o próprio Jenner fala muitas vezes sobre o “vírus” da varíola e da cow-pox, o que significava, na época, a mesma coisa que veneno.

Davy sugeriu que um processo semelhante à vacinação poderia ser utilizado com outras doenças que também sejam transmitidas por venenos. Ele se refere especificamente à raiva ou hidrofobia, que também passa de um cão para outro, pela mordida. George Pearson, por sua vez, havia sugerido, antes disso, que se poderia desenvolver um processo semelhante de proteção contra a sífilis – que também é contagiosa.

Nessa época, começou a se formar uma nebulosa associação entre essas várias idéias: uma enfermidade contagiosa que só ataque uma vez cada pessoa é transmitida por um vírus e deve poder ser evitada por um processo semelhante à vacinação.

Nem Jenner, nem os outros autores da época, se preocuparam em explicar como o “vírus” da varíola se multiplica dentro do organismo. Ninguém sugeriu, na época, que a doença pudesse ser causada por microorganismos.

A vacinação é um exemplo clássico de técnica médica que surgiu sem nenhuma explicação, mas que funcionou. De certa forma, ela representa um retorno à humildade de Hipócrates, que não pretendia desenvolver uma ciência teórica e sim uma técnica, uma arte empírica de curar.

CAPÍTULO 8: MIASMAS OU MICROORGANISMOS?

CHEIROS, GASES E A PREVENÇÃO DAS DOENÇAS

Durante o século XVIII e início do século XIX, houve uma grande melhora da saúde pública. É curioso que essa melhora não foi produzida por nenhum conhecimento médico novo: ela se deu por medidas sanitárias inspiradas pelas velhas idéias sobre os miasmas.

Desde o fim do império romano, as preocupações com limpeza, na Europa, haviam se reduzido muito. A água era obtida de qualquer tipo de fonte, de rios, de chafarizes públicos, de poços sujos.

Praticamente não existia água encanada. Também era rara a existência de esgotos. Quando existiam, misturavam-se à água que era utilizada para todos os fins domésticos.

Em algumas cidades, os excrementos eram coletados e transportados para longe em carroças, mas era mais comum que fossem simplesmente lançados à rua. O próprio chão das casas – de terra ou de madeira – ficara impregnado por urina de cães e de pessoas, cerveja e outras substâncias. Somente quando ocorriam as pestes, surgiam hábitos de limpeza, como o de varrer as casas e as ruas.

Até mesmo os médicos podiam se mostrar avessos às medidas sanitárias. Em 1760 não existiam privadas em Madrid. Os excrementos eram jogados pelas janelas das casas à noite, sendo removidos no dia seguinte pelos limpadores. O rei ordenou que se construisse uma privada em cada casa, mas o povo se opôs violentamente à medida. Os médicos protestaram, dizendo que a sujeira das ruas era útil, pois absorvia as partículas insalubre do ar. Se as ruas não fossem sujas, essas partículas atacariam as pessoas.

A limpeza corporal e das roupas era rara e precária. Os perfumes, utilizados pelos ricos, eram um substituto dos banhos, e não seu complemento.

É verdade que houve épocas em que os banhos públicos eram muito freqüentados, mas com um objetivo especial: serviam de local para encontros sexuais. Proibidos os banhos mistos, o interesse pelo asseio diminuiu muito. Havia até mesmo preconceito contra os banhos, que podiam produzir enfermidades. No século XVIII, comentava-se que a peste atacava primeiramente as pessoas que lavavam suas roupas com sabão.

A situação era terrível nas residências, mas pior ainda em lugares em que se acumulavam muitas pessoas, como prisões, hospitais e instalações militares.

No fim do século XVII, mais de 1/4 dos pacientes dos hospitais de Paris e Londres morriam. Ser levado para um hospital era semelhante a ser executado. O filósofo Gottfried Leibniz chamava os hospitais de “sementeiras da morte”.

Aos poucos, no entanto, foi ganhando força a idéia de que as doenças eram causadas pelo mau cheiro. Já vimos muitos exemplos disso, em capítulos anteriores.

No século XVIII, torna-se bastante popular a teoria dos miasmas, para explicar não apenas as enfermidades dos pântanos, mas todas as doenças produzidas por cheiros de coisas estragadas e podres.

A limpeza não é um problema estético: é uma questão de saúde, ou seja, de higiene (no sentido original da palavra). E o melhor guia para se livrar das doenças é a orientação do nariz.

Não existe nenhuma preocupação com insetos, ratos ou outros animais, pois ninguém imaginava que eles pudessem transmitir enfermidades.

A importância de afastar os excrementos e o lixo das casas era apenas o seu cheiro.

A água também não devia ter cheiro. Esse era o critério principal, mais do que sua cor. A presença de microorganismos na água era conhecida e encarada com indiferença.

Não se imaginava que eles pudessem ser nocivos.

Durante o século XVIII, mantinha-se a idéia de que os perfumes podiam combater os efeitos nocivos dos miasmas; mas aos poucos vai-se preferindo eliminar os próprios fedores, ao invés de escondê-los.

Passa-se a dar grande importância à ventilação das residên-cias, para que seu ar seja renovado e purificado.

Observou-se que vários tipos de substâncias químicas eram capazes de evitar a putrefação e podiam, assim, ser utilizados contra a produção de miasmas. Essas substâncias foram chamadas de “antissépticas”, isto é, contrárias à putrefação.

Em torno de 1750, o cirurgião-geral do exército inglês, John Pringle (1707-1782), conseguiu uma significativa queda da mortalidade nos hospitais militares, através da limpeza e de uma melhor ventilação.

A reforma das prisões inglesas foi obra do filântropo John Howard (1726-1790), que conseguiu diminuir a incidência de tifo, tuberculose e febre tifóide.

A situação nos hospitais era escandalosa. Doentes de todos os tipos ficavam misturados, em grandes salões, muitas vezes com dois ou três ocupando a mesma cama. Apenas após 1780 foram criadas as primeiras alas hospitalares separadas para doentes com enfermidades contagiosas.

Esse amplo movimento higienista, que continuou durante o século XIX, não dispunha de nenhum conhecimento novo. A teoria básica era a dos miasmas.

Havia apenas um interesse real em utilizar os conhecimentos disponíveis na melhoria da saúde pública e na prevenção das doenças. Mais necessária do que a pesquisa médica, foi a decisão política de mudar a situação existente, fazendo o melhor que se podia fazer. Por isso, os homens que contribuiram para a grande redução de mortalidade nos séculos XVIII e XIX não são conhecidos por suas teorias ou idéias. São médicos, escritores, políticos e administradores, muitas vezes desconhecidos, que uniram seus esforços tentando diminuir as enfermidades que matavam o povo.

Foi graças a essa nova atitude que começaram a ser escritos livros especificamente dedicados à conservação da saúde – ou seja, à higiene, no sentido original da palavra . Antes do século XVIII, existiam nos tratados médicos menções aos modos de se conservar a saúde, mas, em geral, a ênfase era no tratamento e não na prevenção de doenças.

A exceção principal eram os livros sobre os modos de evitar as pestes, que surgiam em meio às grandes epidemias. Mas não se considerava que, em condições normais de vida, fosse necessário dedicar tanta atenção à saúde.

É curioso assinalar que, entre os meios para conservar a saúde popularizados na época, surgiu o tabaco. Sua fumaça parecia servir para proteger contra os ares infeccionados pelas doenças e até mesmo pela peste.

Um dos que defendeu seu uso foi o médico holandês Diemerbroeck:

Com relação aos antídotos, recomenda-se entre os simples (..) o tabaco tomado como fumo, que se expira depois de ter ficado um pouco na boca, como costumam fazer os fumantes profissionais. Nesta peste, eu próprio experimentei sobre mim e sobre outras pessoas, os bons efeitos desse remédio.

É interessante descrever os cuidados que esse médico tomava durante uma epidemia, em meados do século XVIII.

Pela manhã, às quatro ou cinco horas, em jejum, mastigava alguns grãos de cardamomo (uma especiaria de cheiro agradável), depois ia visitar os doentes; depois (às seis horas) engolia um pouco de teriaga ou de diascordium, ou três ou quatro pequenos pedaços de casca de laranja em confeito, ou raízes de helenium em confeito. Às sete ou oito horas, fazia o desjejum com um pequeno pedaço de pão coberto de manteiga ou de queijo verde de cabras, tomando um corpo de cerveja e um copo de vinho de absinto. Parecia-lhe essencial manter-se sempre alegre, sem temor, cólera ou tristeza. Para isso, tomava de vez em quando três ou quatro copos de bom vinho.

Às dez horas, se tinha tempo, fumava um cachimbo de tabaco, e depois da refeição mais dois ou três outros. Fumava duas ou três antes do meio-dia, nas horas de intervalo. Também recorria ao tabaco a qualquer hora, quando se sentia incomodado pelo mau odor dos doentes. Considera o tabaco como o melhor preservativo.

Até o século XVIII, as idéias sobre miasmas e sobre a transmissão de enfermidades pelo ar eram apenas hipóteses. Na verdade, pouco se sabia a respeito da própria natureza do ar.

Apenas no final do século XVIII foram feitos os primeiros estudos de caráter científico moderno sobre a composição do ar e sobre seu papel na doença e na manutenção da vida.

A idéia de que o ar pode conter substâncias maléficas à saúde ganhou bastante apoio através de estudos feitos no final do século XVIII. Entre 1774 e 1777, o naturalista Joseph Priestley (mais conhecido pelos químicos do que pelos biólogos e médicos) fez estudos sobre o ar e a vida.

Já se sabia que, quando se coloca uma vela acesa em um recipiente fechado, no qual exista um pequeno animal vivo, a vela logo se apaga e o animal morre. Se um outro animal vivo for colocado nesse ar, ele morrerá quase instantaneamente. Priestley estudou esse tipo de fenômeno. Ele observou que o animal morre tendo convulsões, e que o mesmo acontece quando é colocado em outros gases recentemente descobertos: “ar fixo” (gás carbônico), “ar inflamável” (hidrogênio), ar cheio de fumaça de enxofre queimado, e também ar infectado com matéria podre.

Priestley imaginou que a respiração dos animais desprendia alguma substância maligna:

Como o ar que passou pelos pulmões é a mesma coisa que o ar impregnado pela putrefação animal, é provável que uma das utilidades dos pulmões é retirar um eflúvio pútrido, sem o qual, talvez, um corpo vivo poderia apodrecer tão depressa quanto um morto.

A linguagem utilizada por Priestley é a mesma da maioria dos médicos da época: ele acredita que a putrefação produz um gás ou vapor venenoso, capaz de produzir enfermidades.

Priestley comparou vários tipos de ar entre si, concluindo que o efeito da respiração animal no ar era igual ao do apodrecimento:

O ar impregnado com putrefação animal ou vegetal é a mesma coisa que o ar tornado nocivo pela respiração animal (…). Que esses dois tipos de ar são, de fato, a mesma coisa, eu concluo por eles terem as mesmas propriedades notáveis em comum, e por não diferirem em nada que eu tenha sido capaz de observar. Eles extinguem igualmente as chamas, são igualmente nocivos a animais, são igualmente desagradáveis ao olfato, ambos precipitam igualmente o carbonato em água de cal e são restaurados pelos mesmos meios.

Priestley tentou purificar o ar que havia se tornado mortal, através de vários processos. Manteve o ar em contato com água pura ou salgada, durante meses, e ao invés de notar alguma melhora, o ar parecia pior do que antes. Como os raios solares eram considerados benfazejos, imaginou que poderiam purificar o ar mortal. Expondo o frasco com ar nocivo à luz, durante meses, também não foi notada nenhuma melhora.

Como se acreditava que a queima de enxofre era capaz de impedir a propagação das epidemias, Priestley experimentou adicionar um pouco de fumaça de enxofre ao ar nocivo, para ver se ele melhorava; mas continuou igualmente mortal. Tentou também aquecer o ar a uma alta temperatura, pois acreditava-se que o fogo podia destruir os venenos do ar; mas ele continuava mortal.

Priestley observou, no entanto, que esse tipo de ar não era nocivo às plantas. Colocando ramos de menta dentro de recipientes com água e o ar nocivo, ele observou que os ramos se desenvolviam de forma vigorosa, crescendo mais depressa do que no ar comum. Imaginou então que esse ar putrefato pudesse ser benéfico e útil para as plantas, assim como os excrementos também são úteis para elas.

Fez então um experimento para verificar se as plantas retiravam do ar sua parte nociva.

Para determinar isso, tomei uma quantidade de ar, que se tornara nocivo por ratos que restiraram e morreram nele. Dividia em duas partes. Uma delas foi colocada em um frasco imerso em água. Na outra (contida em um frasco de vidro, de pé sobre a água), coloquei um ramo de menta. Isso foi no início de agosto de 1771. Após oito ou nove dias, descobri que um rato vivia perfeitamente bem na parte do ar em que havia crescido o ramo de menta, mas morria no momento em que era colocado na outra parte da mesma quantidade original de ar e que eu havia mantido sob a mesma exposição, mas sem plantas crescendo dentro dela.

Repeti várias vezes esse mesmo experimento, algumas vezes usando ar no qual animais haviam respirado e morrido, e outras vezes usando o ar impregando com putrefação vegetal ou animal.

Geralmente houve o mesmo sucesso.

Priestley concluiu que as plantas são capazes de viver no ar pútrido e retirar do ar o eflúvio pútrido, do qual se alimentam, tornando o ar adequado para a respiração dos animais.

Os estudos de Priestley tinham como ponto de partida a hipótese de que havia alguma semelhança entre os efeitos da respiração e os efeitos nocivos de materiais podres. No entanto, estudos posteriores levaram simplesmente à descoberta do papel do oxigênio e do gás carbônico, na respiração, e da fotossíntese nas plantas. Esses estudos não levaram, portanto, a nenhum esclarecimento das causas de enfermidades que pareciam se propagar pelo ar.

Apesar disso, o estudo químico do ar e dos diferentes gases, no final do século XVIII, trouxe uma maior respeitabilidade às considerações sobre diferentes tipos e características da atmosfera.

Compreendeu-se que uma parte do ar puro (oxigênio) é essencial para a vida dos animais e do homem; que a respiração e a combustão consomem oxigênio e produzem gás carbônico; que existem diferentes gases, que podem produzir efeitos especiais nos seres vivos. Embora muitas idéias antigas permanecessem ativas e influentes, a física e a química voltaram a ganhar um papel relevante na Medicina.

É interessante observar a influência dessa renovação parcial de conceitos em obras do início do século XIX. Vamos tomar como exemplo o livro “Elementos de higiene”, publicado pelo médico português Francisco de Mello Franco em 1814.

Note-se, em primeiro lugar, que o próprio título mostra ser um livro dentro do novo espírito: dedicado à conservação da saúde e não à cura das doenças.

De acordo com as tendências da época, Mello Franco discute em detalhe as características do ar, levando em conta algumas das novas descobertas.

Pode-se notar uma mistura de novas e antigas idéias e o reaparecimento da crença de que a supressão da transpiração é perigosa para a saúde:

O ar da noite é em geral mais úmido do que o de dia. Consideramos esta umidade da noite de dois modos; o primeiro é quando o vapor aquoso, que se acha no ar, pela frescura, que ela traz, cai à maneira de orvalho mui sutil, e lhe chamamos sereno. Este faz mal aos que pouco acautelados o apanham estando mal cobertos, e principalmente parados, expondo-se deste modo a doenças catarrosas pelo embaraço da transpiração. O segundo é quando este vapor, ou orvalho sutil não vem da atmosfera imediatamente, mas que é a evaporação de águas estagnadas, e corruptas; a qual chegando a pequena altura, se precipita, e difunde os miasmas malignos, que com ela subiram. A esta umidade chamamos cacimba, tão conhecida nas vizinhanças de Roma, e em muitos lugares da África, e tão receada pelos seus perniciosos efeitos, quais são as febres disentéricas, remitentes, e intermitentes muitas vezes de péssimo caráter.

Em Portugal mesmo há sítios infeccionados destes miasmas por causa da estagnação das águas do inverno; as quais misturadas com as do mar, quando se comunicam, exalam de si veneno ainda mais danoso, do que se fossem simplesmente as da chuva.

É interessante essa sobrevivência do conceito de miasma, já que nenhum químico tinha sido capaz de identificar esse tipo de substância no ar.

Mello Franco descreve as propriedades do oxigênio e do azoto (nitrogênio). Critica ajuntamentos de pessoas em locais fechados, onde o ar não circule, pois a respiração consome o oxigênio e produz gás carbônico.

Mas novamente precisa recorrer aos miasmas para falar do contágio:

Nas masmorras, e nos hospitais mal construídos há, além da alteração do ar de que acabamos de falar, os miasmas, que se exalam dos corpos, os quais atacando os nervos, tendem a aniquilar a vida, e dão lugar a estas febres malignas, e contagiosas, conhecidas pelo nome de febres de hospitais, de prisões etc.; as quais levam mui longe o seu contágio.

O autor comenta sobre o perigo do ar das igrejas, porém sem dar tanta importância ao número de pessoas. O problema principal é que, até essa época, era comum enterrar os sacerdotes e fiéis nos porões da própria igreja ou em volta dela. Mello Franco critica e propõe a abolição desse costume. “As exalações pútridas, e mefíticas, que lançam de si tantas sepulturas, são causas poderosas de muitas moléstias, principalmente para as pessoas, que vão às primeiras missas, logo que se abrem as igrejas, tempo em que o ar não renovado, conserva em si reunidos aqueles vapores, por assim dizer, pestilentes”.

Mello Franco reconhece que o uso de substâncias aromáticas ou de vinagre não destroi os vapores nocivos, apenas os disfarça e torna, por isso, ainda mais perigosos às pessoas desavisadas.

Também afirma que o fogo é inútil, pois apenas produz correntes de ar; “mas os miasmas pestíferos ficam intactos.”

Embora a idéia dos miasmas em si própria não tivesse evoluído com os estudos químicos, haviam sido encontradas novas substâncias, capazes de impedir a putrefação e que deviam ser também capazes de destruir os miasmas invisíveis. O autor utiliza especialmente os estudos de Louis Bernard, barão de Guyton de Morveau (1737-1816), companheiro de pesquisas de Lavoisier.

Guyton de Morveau estudou ácidos minerais em forma gasosa, concluindo pela grande eficácia antisséptica dos mesmos. Recomendava-se especialmente o “ácido muriático oxigenado”, obtido pela reação de sal comum (10 partes), óxido negro de manganês (2 partes) e ácido sulfúrico (oito partes).

Mello Franco aconselha o uso desse gás nas enfermarias dos hospitais e nas casas em que haja moléstias contagiosas, como meio de destruir os vapores nocivos.

Ele chega a dizer que esse ácido gasoso é também benéfico para as próprias pessoas que já estejam doentes:

Este facílimo expediente é infalível, não somente para atalhar o progresso do contágio, mas também para diminuir os seus efeitos nos indivíduos já atacados.

São tantas as experiências feitas por homens consumados em Química, e Medicina a este respeito, que nenhuma dúvida pode já restar aos mesmos incrédulos.

A certeza, infelizmente, é muito perigosa na Medicina. Vapores ácidos, pelo que sabemos atualmente, podem ser excelentes desinfetantes, mas não são úteis às pessoas doentes.

Ao falar sobre as águas de lagoas e pântanos, Mello Franco defende uma interpretação química dos miasmas. Ele supõe que a causa das febres palustres seriam simples compostos de nitrogênio (azoto) e hidrogênio:

As águas das lagoas, e charcos são turvas, grossas, amareladas, limosas, e com cheiro semi-pútrido. Não podem servir para a bebida dos animais; mas os agricultores reputam-nas excelentes para a rega. Nestas águas, em particular no verão, continuamente apodrecem vermes, insetos, e vegetais; e delas exala-se sempre amoníaco, e gás hidrogênio azotizado, que parece ser o princípio das febres remitentes, e intermitentes, e das desinterias biliosas, e podres, que reinam nos sítios cobertos de águas encharcadas.

Embora a interpretação puramente química não nos pareça atualmente ser correta, Mello Franco, como outros higienistas da época, apresenta recomendações de bom senso: seria necessário, para evitar as enfermidades palustres, acabar com os pântanos, secando-os e cultivando a região.

É muito interessante que Mello Franco recomende que se ferva a água impura, quando for necessário utilizá-la para beber. Para nós, esse tipo de procedimento é justificado pela destruição dos microorganismos vivos que podem existir na água. Na época, no entanto, a justificativa era outra: libertar a água de sólidos dissolvidos nela e, principalmente, produzir a evaporação dos miasmas.

Resta-nos advertir, que quando formos obrigados pela necessidade a usar de águas menos boas, a que costumam chamar cruas, devemos faze-las ferver, e deixá-las depois ao ar livre por 36 a 48 horas em vasilhas de barro largas, para que a água apresente ao ar uma grande superfície. Por este meio os sais se depositarão, e os miasmas nocivos se volatizarão.

Nem sempre era possível purificar a água pela fervura. Nas longas viagens de navios, por exemplo, a água guardada durante semanas ou meses em tonéis de madeira costumava se estragar, ficando com um cheiro podre. Era impossível ferver essa água. Nesses casos havia sido desenvolvido um outro procedimento: a purificação por pó de carvão (ou seja, o “carvão ativado” que se utiliza hoje em dia nos filtros domésticos de água) e a acidificação da água

Quando [a água] já está corrompida, joga-se em cada tonel 6 a 8 arratéis de carvão pulverizado, até que se dissipe o mau cheiro. Depois, coa-se e acrescenta-se ácido sulfúrico (óleo de vitríolo).

Novamente, o principal critério de salubridade da água era o cheiro e o procedimento tinha por objetivo eliminar o mau odor da água (pelo carvão) e impedir que a água apodrecesse de novo (pelo ácido).

O processo é igualmente capaz de destruir microorganismos e deve ter sido útil para a conservação da saúde da tripulação.

Os vários casos aqui analisados mostram que a teoria dos miasmas foi muito útil, sem ser verdadeira. Ele conduziu a muitas medidas higiênicas que atualmente consideramos como excelentes – embora nossas teorias atuais sejam muito diferentes. No fim do século XVIII e início do século XIX, procurou-se dar uma fundamentação química à teoria dos miasmas, mas a tentativa falhou.

Não foi possível encontrar os gases responsáveis pelas doenças dos pântanos ou por outras enfermidades transmissíveis.

DÚVIDAS SOBRE CONTÁGIO NO INÍCIO DO SÉCULO XIX

O século XIX é uma época em que ocorre grande desenvolvimento econômico e científico em todo o mundo. A Europa se industrializa, com todas as conseqüências positivas e negativas acarretadas pelo processo.

Há empregos e há produção de bens materiais. Por outro lado, como a industrialização atrai para as grandes cidades muitas pessoas pobres há um crescimento desordenado das regiões industrializadas.

Algumas delas dobraram ou triplicaram de tamanho, em poucos anos. Formaram-se bairros miseráveis, nos arredores, sem condições higiênicas: eram locais sujos e úmidos.

Em cidades industriais como Manchester e Liverpool, praticamente não existiam sanitários. Os excrementos eram empilhados em montes de até cinco metros de altura, nos bairros pobres. Não existia coleta de lixo, a água era geralmente suja.

As fábricas tinham péssimas condições sanitárias, os operários trabalhavam mais de dez horas por dia e crianças pequenas eram empregadas por salários ridículos para trabalhar durante todo o dia.

A mortalidade nas grandes cidades aumentou muito, nesse período. Os cuidados de desenvolvimento da higiene que haviam progredido muito no século XVIII, sofreram um recuo. Algumas doenças aumentaram muito: febre tifóide, tuberculose, difteria. Ocorrem grandes epidemias de cólera, que se espalham por todo o mundo.

É durante o século XIX que se chega à compreensão da natureza das enfermidades transmissíveis. Mas o início do século não era muito promissor, sob o ponto de vista médico.

Havia grande confusão sobre as doenças que consideramos transmissíveis: discute-se até se existem de fato enfermidades contagiosas ou não.

O conceito básico de contágio era o de transmissão de uma doença de uma pessoa para outra. Normalmente, no início do século XIX, associava-se o contágio a um virus ou veneno. Como vimos, Fracastoro admitia o contágio pelo contato direto, pelo ar e através de objetos materiais (roupas, móveis, etc.) que servissem de intermediários.

Não se imaginava até o início do século XIX que pudesse haver transmissão de enfermidades pela água, nem com o intermédio de seres vivos.

A inoculação era uma transmissão artificial de doença que não era considerada um contágio, propriamente dito.

A noção de infecção era mais ampla do que a de contágio. Quando se falava sobre lugares com ar infectado, isso significava que o ar era maléfico para a saúde, seja por que motivo fosse: por conter gases como o dióxido de carbono, por conter miasmas de substâncias podres, ou por conter o “virus” de pessoas doentes.

Samuel Hahnemann (1755-1843) foi o fundador da homeopatia, e teve considerável influência no início do século XIX. A principal obra em que suas idéias foram divulgadas, o “Organon da arte de curar”, foi publicado em 1810. Hahnemann acreditava que não é possível conhecer as causas das doenças; sob este ponto de vista, sua abordagem é de tipo empírico. O mais importante, na Medicina, é estudar sintomas e procurar a cura – especulações sobre aquilo que não se conhece não ajudam muito.

Coerente com essa posição, a homeopatia se baseou em certos princípios que não possuiam fundamentação teórica, mas que pareciam funcionar. O principal deles era o da cura do semelhante pelo semelhante: se um remédio produz, numa pessoa sadia, certo conjunto de sintomas semelhantes aos de uma enfermidade, esse remédio pode curar aquela enfermidade. A justificativa básica desse princípio era a experiência: o princípio parecia dar certo, independentemente de qualquer justificativa teórica que se pudesse procurar.

Embora a teoria fosse, para Hahnemann, algo secundário e às vezes até negativo, ele apresenta algumas reflexões importante para nosso estudo. Sua posição básica é vitalista, ou seja, ele nega que se possa compreender o organismo humano apenas como um aparelho físico-químico. O que diferencia um ser vivo de um aparelho é algo que ele chama de “força vital”, responsável por toda a dinâmica do organismo. As doenças provêm de um desarranjo da força vital, que se reflete no corpo como um todo, e na mente.

Essa força vital não está sujeita às leis da física e da química: ela tem leis próprias. A causa das doenças não pode ser material, pois deve atuar sobre uma força vital que não é material.

Hahnemann lembra que um estado de espírito – como o medo, a irritação ou a tristeza – pode produzir enfermidades, o que parece impossível de se explicar sob o ponto de vista físico, mas que se torna compreensível sob o ponto de vista do vitalismo.

Tanto as causas das doenças, como os remédios, atuam sobre a força vital através de um poder ou dinamismo não material. Isso torna compreensível, na homeopatia, como um remédio extremamente diluído pode se manter eficaz. Hahnemann às vezes fazia com que os doentes apenas cheirassem um remédio já diluído, e isso era suficiente. Por outro lado, as influências mórbidas que produzem as diversas enfermidades também podem agir sob forma extremamente diluída ou rarefeita. Dentro desse tipo de concepção, torna-se natural aceitar a infecção e o contágio das enfermidades.

Hahnemann utiliza o conceito de miasma de um modo especial. Originalmente, a idéia de miasma estava relacionada às emanações de substâncias em putrefação, que se acreditava capazes de produzir doenças.

Esse miasma seria sempre essencialmente de um só tipo, mas poderia levar a diferentes doenças, dependendo das condições específicas de sua ação e da pessoa que sofresse sua influência. Para Hahnemann, o miasma é um agente que pode comunicar a enfermidade, e que pode provir do ambiente ou de outra pessoa doente. Todas as doenças epidêmicas e o contágio se dão pelo miasma. Esse miasma, para ele, pode ser de diferentes tipos, cada um associado a uma doença diferente.

Observamos algumas doenças que sempre possuem uma mesma causa, tais como as doenças miasmáticas: hidrofobia, doença venérea, a praga oriental, febre amarela, varíola, (…) e algumas outras, que possuem a marca distintiva de sempre permanecerem doenças de um caráter peculiar. E por provirem de um princípio contagioso que sempre permanece o mesmo, elas sempre permanecem iguais (…).

O miasma pode afetar uma pessoa, e esta, por sua vez, pode transmitir o mesmo tipo de miasma a uma segunda pessoa. Cada uma das enfermidades transmissíveis é devida a um miasma particular. No entanto, a própria natureza desses miasmas, para Hahnemann, é desconhecida.

Hahnemann afirma que as pessoas podem se acostumar gradualmente às influências mórbidas e resistir à infecção dos miasmas. Seria por esse motivo que as enfermeiras, os médicos e os coveiros podem lidar com grande número de enfermos (ou cadáveres), sem ficar doentes. Nesses casos, não se notam sinais do miasma nessas pessoas. No entanto, sem serem afetadas, e parecendo totalmente saudáveis, essas pessoas poderiam transmitir o miasma a outras. Em 1831, durante uma grave epidemia de cólera, Hahnemann sugere que a doença não se propaga pelo ar, como todos acreditavam, mas pelo contato entre as pessoas; e que os principais responsáveis pela sua difusão seriam os médicos e enfermeiras: eles desenvolveram uma resistência contra o “miasma venenoso do cólera”, mas o passam para outras pessoas. São os “transportadores sadios do miasma”.

Assim, os médicos e enfermeiras são os propagadores e comunicadores mais certos e freqüentes do contágio do cólera. Apesar disso, todos, mesmo os jornais públicos, se espantam de como a infecção pode se espalhar tão rapidamente, desde o primeiro dia, do primeiro paciente de cólera em uma extremidade da cidade a pessoas na outra extremidade da cidade que não chegaram perto do paciente.

Evidentemente, essa sugestão de Hahnemann não agradou nem um pouco à classe médica da época. Hahnemann estava certo: de fato, existem portadores de doenças que são aparentemente sadios.

Mas isso só foi de fato estabelecido várias décadas depois, quando o processo de transmissão foi esclarecido.

A discussão sobre o contágio das enfermidades tornou-se muito importante por ocasião das epidemias. Era essencial saber se uma enfermidade era contagiosa ou não, para tomar medidas de segurança contra sua propagação.

Pierre Bretonneau (1771-1862) foi um dos grandes defensores da existência do contágio, no início do século. Ele considerava a difteria e febre tifóide como contagiosas. Ao estudar a epidemia de difteria de 1818-20, Bretonneau propôs que as doenças transmissíveis são específicas, desenvolvendo-se através de um agente que se reproduz. O agente do tifo, segundo ele, seria “um ser miasmático que se prende e adere às secreções mórbidas”. Bretonneau compara o “ser miasmático” a uma semente vegetal, que consegue reter sua capacidade de germinar durante longos períodos.

Em 1834-5, Gendron descreveu epidemias de febre tifóide e defendeu que ela é contagiosa, pois passava de um membro da família para outro. Concluiu que se espalhava por contágio, “envenenando por um princípio desconhecido e impalpável conhecido como miasma”. Mas Bretonneau, Gendron e outros autores da época não conseguiam mostrar a existência do contágio.

Imaginou-se, na época, um teste crucial para decidir se uma doença era contagiosa ou não: verificar se era possível transmitir a enfermidade pela inoculação, como no caso da varíola.

Foram feitos testes de inoculação da difteria e de algumas outras doenças, sem nenhum resultado. Isso aumentou muito a descrença na existência de contágio. No entanto, o teste não era decisivo, pois sabia-se que, mesmo no caso da varíola, somente era possível transmitir a enfermidade inoculando-se uma pessoa com líquido tirado das pústulas em certa fase da doença.

Na década de 1830, a peste bubônica, iniciando-se no Egito, espalhou-se pelos países vizinhos. Discutia-se se ela era contagiosa ou não. O doutor Bullard, que estudava a doença, realizou testes extremamente perigosos, em Esmirna. Vestiu-se com roupas de pessoas que haviam morrido de peste, deitou-se no leito deles, e inoculou-se com o pus dos bubões.

Utilizou o mesmo procedimento com dois prisioneiros, condenados à morte. Os dois prisioneiros morreram, em uma semana. O doutor Bullard, porém, nada sentiu.

A conclusão tirada foi de que não existia a contágio e que era inútil qualquer medida de proteção contra a peste, como a quarentena.

Era difícil tirar alguma conclusão a partir desse teste. Por um lado, uma pessoa podia permanecer sadia apesar de todas as tentativas de transmissão da enfermidade. Outras duas pessoas haviam morrido, mas podia não ter sido por contágio. Talvez a atmosfera estivesse infeccionada e algumas pessoas adquirissem a enfermidade e outras não, dependendo de sua constituição física, independentemente de ter contato com doentes.

Era igualmente difícil testar as hipóteses sobre a influência do clima ou da atmosfera nas epidemias. Em 1831, a Academia de Ciências de Paris, juntamente com a Academia de Medicina, formou uma comissão encarregada de dar um parecer sobre a questão: “Se é possível descobrir uma ligação apreciável entre os fenômenos meteorológicos e o desenvolvimento ou propagação do cólera”.

Três anos depois, a comissão declarou que, no estado dos conhecimentos da época, era impossível chegar a uma solução desse problema. Ou seja: não se podia nem afirmar que havia, nem afirmar que não havia relação entre clima e epidemias.

A antiga teoria de Santorio, de que a redução da transpiração, causada pela umidade, podia produzir graves doenças, foi estudada novamente nesse período. Em 1838, o médico Fourcault realizou experimentos para verificar se a supressão artificial da transpiração podia ocasionar doenças. Ele recobriu a pele de animais com verniz e outras substâncias que fechavam todos os poros.

Quando toda a pele ficava recoberta, os animais morriam. Quando apenas uma parte da pele era coberta, surgiam inflamações, tubérculos e outros sinais patológicos. Esses experimentos pareciam confirmar, portanto, a teoria de Santorio.

Paralelamente às discussões sobre existência do contágio, o início do século XIX presenciou o surgimento de muitos outros estudos médicos. Apenas para citar um exemplo, uma das teorias mais populares do período foi a “medicina fisiológica” de François Joseph Victor Broussais (1772-1838).

Broussais desenvolveu uma teoria muito simples, conhecida como “medicina fisiológica”. A causa básica das enfermidades é a inflamação do aparelho digestivo.

As doenças infecciosas e contagiosas, segundo Broussais, atuam no organismo por “corpúsculos daninhos ou vapores irritantes que desenvolvem inflamação das cavidades aéreas” e depois provocam inflamação do estômago e do intestino. Conhecida a causa básica de todas as doenças, a terapia se torna simples e igual, para todo tipo de enfermidades: todas podem ser tratadas por sangrias, drogas sedativas e jejum.

A terapêutica predileta de Broussais era aplicar um punhado de sanguessugas perto do estômago ou do orifício retal, de tal modo que o sangue dessas regiões fosse retirado e a inflamação cedesse.

O jejum podia ser absoluto, durante vários dias seguidos. No caso de uma inflamação recente, a perda de sangue deveria ser continuada até que o paciente ficasse inconsciente, mas logo depois deveria ser interrompida (especialmente em crianças pequenas).

O uso de sanguessugas era antigo, mas tornou-se particularmente popular nessa época. Em 1833, a mania desenvolvida por Broussais levou a França a importar 41.500.000 sanguessugas. Em 1824, as importações foram de apenas 2 ou 3 milhões.

É claro que nem toda a medicina da época era tão ridícula assim. Utilizando-se dos conhecimentos anatômicos, fisiológicos e químicos da época, muitos investigadores tentavam desenvolver uma Medicina bastante sofisticada. Um exemplo dessa abordagem mais científica é o de François Magendie (1783-1855).

Magendie estudou a composição e as propriedades do sangue – especialmente sua coagulação – e concluiu que a maioria das doenças era causada por mudanças físicas e químicas no sangue. Injetando diferentes líquidos no sangue de animais, observou o surgimento de enfermidades artificiais. Os álcalis (bases), por exemplo, tornavam o sangue mais fluido e davam um efeito semelhante ao tifo.

Segundo Magendie, as características do sangue podem ser afetadas por calor, frio, alimento, bebida, e também pela influência química dos miasmas.

Como essas causas físicas e químicas pareciam suficientes para compreender as doenças, Magendie se opôs à existência do contágio. Apenas o aceitou em poucos casos – como na varíola e na sífilis.

Embora esse tipo de abordagem não tenha contribuído para o esclarecimento da transmissão das doenças, é claro que foi útil em outro sentido. O trabalho de Magendie foi continuado por seu discípulo Gabriel Andral, que foi o líder da escola de Paris em 1830 e 1840. Andral identificou os principais constituintes do sangue: fibrina, glóbulos, matéria albuminosa [proteína].

Estabeleceu que a constituição do sangue sadio sempre se mantinha dentro de certos limites e identificou a redução dos glóbulos vermelhos na anemia. Até hoje, os exames de sangue são um poderoso instrumento no diagnóstico médico.

Nesse início de século, a questão da própria existência do contágio das doenças epidêmicas estava indefinida, embora a Medicina já dispusse de uma metodologia bastante sofisticada de investigação. Na década de 1830, no entanto, começam a ser dados passos decisivos para a compreensão do papel dos microorganismos nas enfermidades, como veremos a seguir.

DESCOBERTA DE MICROORGANISMOS ASSOCIADOS A DOENÇAS

Antes do século XIX, como vimos, houve diversas sugestões de que algumas doenças seriam causadas por seres vivos microscópicos. Mas teorias como a de Kircher eram apenas uma hipótese sem fundamento, resultante da imaginação e não da investigação dos fatos.

Também se desenvolveu, durante o século XVIII, o conhecimento de que havia parasitas visíveis no homem e nos animais – os vermes intestinais. Algumas vezes esses vermes eram observados durante febres, surgindo a suposição de que eles poderiam ser a causa de doenças. No entanto, a própria origem dos vermes intestinais era desconhecida.

Eles pareciam surgir por geração espontânea dos restos de alimentos que se deterioravam no intestino. Podiam ser a causa de doenças, mas podiam ser também apenas um efeito ou sintoma.

A partir da década de 1830, começam a surgir indícios muito fortes a favor da idéia de que parasitas microscópicos ou visíveis podem ser a causa de doenças.

Este foi o início da fase moderna da chamada “teoria microbiana das doenças”.

O primeiro caso em que se detectou um microorganismo que ocorria em uma doença foi no estudo de uma praga do bicho da seda. Em 1835, Agostino Bassi estabeleceu que esses insetos morriam quando infectados por um fungo microscópico, que foi mais tarde denominado Botrytis bassiana em sua homenagem.

Bassi compreendeu que a doença dos bichos da seda era transmitida por contato ou por comida infectada e desenvolveu medidas profiláticas apropriadas.

Embora não tenha feito estudos de outras enfermidades, na mesma época Bassi desenvolveu a hipótese de que as doenças contagiosas – entre as quais incluia o cólera – são devidas a parasitas vivos.

A observação de Bassi permaneceu, no entanto, como um caso isolado e à qual se deu pouca importância, na época.

Ehrenberg, famoso microbiologista alemão (1795-1876), escreveu em 1836 uma obra sobre os seres microscópicos que são observados em substâncias em putrefação – os infusórios. Nesse trabalho, ele afirma:

Os infusórios invisíveis são ocasionalmente daninhos, mas apenas, pelo que parece, matando peixes em tanques, tornando a água turva, produzindo cheiros desagradáveis e assustando pessoas supersticiosas.

É improvável que eles causem malária, praga e outras doenças – e isso nunca foi mostrado de modo seguro.

Durante a epidemia de cólera em Berlim, em 1832, não vi nenhum fenômeno anormal nas águas nem na atmosfera. É verdade que existem minúsculos insetos na sarna e no pus. Mas todas esas coisas, como (…) os animalúnculos do cólera, consistem apenas em afirmações ou suposições.

Logo a afirmação de Ehrenberg seria derrubada pela observação. As primeiras relações entre doenças humanas e microorganismos foram confirmadas pelo estudo microscópico em 1836, por A. Donné.

Ele estudou doenças venéreas de homens e mulheres, analisando ao microscópio as secreções dos órgãos sexuais dos doentes. Na sífilis e na blenorragia (gonorréia), ele não notou nenhum microorganismo.

No cancro ou balanita, observou um “animálculo” que identificou como Vibrio lineola. Nas mulheres com vaginite, descobriu a presença de flagelados desconhecidos, para os quais propôs o nome de Tricomonas vaginalis.

Observou que o muco do órgão sexual feminino, que normalmente é alcalino, adquiria um caráter ácido e, posteriormente, recomendou o uso de duchas alcalinas contra a vaginite.

Donné procurou verificar se as secreções das doenças venéreas possuiam a capacidade de produzir novamente a doença. Para isso, inoculou sob a epiderme as secreções de diferentes tipos e observou que apenas o pus do cancro (o único que apresentava vibriões), quando inoculado, produzia pústulas no local.

Esses resultados sugeriam fortemente que o vibrião fosse a causa da doença.

No ano seguinte (1837), os médicos Beauperthuy e Roseuville confirmaram a presença de “pequenos animais” no pus do cancro e de outras doenças venéreas.

Também observaram microorganismos em excrementos de doentes com febre tifóide, e na urina de pessoas com cálculos renais. Notaram ainda alterações dos glóbulos de sangue, em algumas doenças. No entanto, o relato desses médicos é muito sucinto, não permitindo perceber exatamente o que eles haviam observado.

Os mesmos pesquisadores estudaram, em 1838, o processo de putrefação de animais mortos. Descreveram o gradual surgimento de microorganismos (mônadas e vibriões), cujo número vai aumentando, à medida que o organismo se decompõe. Quando a quantidade de microorganismos é muito grande, o material em decomposição se torna alcalino, e surge o cheiro característico dos materiais podres.

Esses estudos pareciam indicar que a produção dos infusórios ocorre antes da decomposição das substâncias, sendo a causa e não o efeito desta.

O cheiro de substâncias podres poderia ser também apenas um efeito da ação dos microorganismos, o que enfraquecia a idéia dos miasmas.

Nessa mesma época (1837 e 1838), há um importante trabalho, que inicialmente não tinha relação com doenças, mas que logo se verá ser essencial para a compreenção das mesmas.

Foi um estudo de Cagniard-Latour sobre a fermentação da cerveja. Os cervejeiros preparavam inicialmente um caldo de cevada, no qual era colocada certa quantidade de fermento (levedo de cerveja). Esse levedo, visto ao microscópio, parece ser simplesmente um pó, com partículas arredondadas. Quando o levedo é colocado no caldo de cevada, mantido a uma temperatura adequada, o líquido começa a fermentar e espumar, produzindo-se a transformação de açúcar em álcool e gerando a cerveja.

Nesse processo, produz-se na superfície da cerveja uma grande quantidade de levedo, que é recolhido para ser usado depois. A quantidade de levedo final pode ser cinco ou mais vezes superior à quantidade inicial – ou seja, o levedo parece se reproduzir. Estudando o processo, Cagniard-Latour conseguiu observar ao microscópio que as partículas do levedo eram “corpúsculos capazes de se reproduzir, e conseqüentemente organizados, e não uma substância inerte ou puramente química, como se supunha”. Como esses corpúsculos não eram dotados de movimento próprio, Cagniard-Latour os considerou como vegetais microscópicos. Ele observou que essas partículas participavam da transformação do açúcar em álcool e que só produziam a fermentação quando estavam vivas: podiam ser destruídas pelo calor, mas permaneciam vivas mesmo a temperaturas negativas ou quando secas.

Em 1838, Turpin confirmou as observações de Cagniard-Latour. Discutiu também detalhadamente os processos que ocorriam na fermentação, observando que o desenvolvimento e reprodução do levedo dependia do “território” em que ele era colocado. Alguns “territórios” podiam ser adequados para o crescimento do fermento, outros podiam ser nocivos e não permitir sua reprodução.

Embora esses autores estivessem preocupados apenas com a própria fermentação, a analogia com as doenças não podia deixar de ser notada. Nas enfermidades contagiosas, parecia existir alguma substância (o vírus) que passava de uma pessoa para outra e que aumentava em quantidade, já que podia chegar a atingir milhões de pessoas. Essa multiplicação do vírus era semelhante ao que ocorria com os fermentos.

Em 1840, o microscopista Jacob Henle (1809-1885) apresentou o seguinte argumento: como apenas organismos vivos podem se multiplicar, a matéria mórbida que causa doenças infecciosas deve ser orgânica.

A causa das doenças contagiosas devia ser a existência de organismos minúsculos que penetrariam em nosso corpo e que se desenvolveriam aí, depois de um período de incubação mais ou menos longo, durante o qual estariam se reproduzindo. Henle explicou que ninguém havia descoberto esses organismos pela imperfeição dos microscópios.

Além de propor essa hipótese, Henle estabeleceu pela primeira vez as condições necessárias para provar que um organismo particular é a causa de uma determinada doença.

Seria necessário demonstrar que o parasita está sempre presente; seria preciso isolar o parasita e estudá-lo fora do organismo doente; e deveria ser possível reproduzir a doença utilizando o parasita isolado.

Algumas décadas depois, como veremos, um aluno de Henle, Robert Koch, reestabeleceu e conseguiu aplicar com sucesso essas regras. No entanto, o próprio Henle não conseguiu observar nenhum microorganismo associado a doenças.

Na época, o químico alemão Justus von Liebig (1803-1873) se colocou contra essa hipótese, atacando também os trabalhos de Cagniard-Latour e Turpin sobre as fermentações. Para Liebig, a base de todos os processos fisiológicos era puramente química. O fermento seria um tipo de catalizador, e não um ser vivo. Graças à influência de Liebig, Henle abandonou suas idéias.

Embora vários observadores começassem a descrever a presença de microorganismos em pessoas ou animais doentes, a atitude geral era cautelosa.

Virchow notou que algumas vezes certos microorganismos podem ser encontrados tanto em pessoas doentes quanto em pessoas sadias (por exemplo, na difteria). Assim sendo, o microorganismo não pode ser a causa essencial da doença, senão todas essas pessoas estariam doentes.

Desde 1830, a Europa estava sendo invadida por sucessivas epidemias de cólera. Vários autores – como Hahnemann e Bassi – haviam sugerido que essa doença era causada por seres microscópicos vivos. Mas não havia sido ainda observado nenhum microorganismo associado à doença.

Em 1849, o naturalista francês Félix Pouchet (1800-1876) detectou microorganismos nos dejetos de doentes de cólera. Ao observar no microscópio os excrementos alvinos de quatro coléricos, notou uma imensa quantidade de infusórios. O tipo observado era conhecido como “Vibrio rugula”, descrito por Müller e Schrank. Era muito pequeno, com 7 a 8 m de comprimento. Tinha movimentos bruscos, rápidos, de onde vinha o nome de “Vibrio”: vibrião, corpúsculo vibratório.

Segundo Pouchet, esses vibriões só eram observados nos dejetos recentes, com aparência de água de arroz. Nos vômitos, não eram encontrados.

Pouchet indica que o microscopista Leenwenhoek, no século XVII, já havia observado microorganismos semelhantes a esses em suas próprias fezes, durante uma disenteria. Indica, também, que o médico Donné já havia observado infusórios semelhantes nos dejetos de coléricos.

As observações de Pouchet eram bem descritas e claras. No entanto, não se deu importância à sua descoberta, na época, pois ainda não se aceitava que as doenças pudessem ser causadas por microorganismos.

No mesmo ano em que Pouchet publica seu estudo, outros pesquisadores apresentam trabalhos em que explicam o cólera como uma doença dos pântanos (como a malária), sugerindo que deveria ser tratada com o mesmo remédio – o quinino. Um outro médico indica que fumigações com madeiras resinosas é um meio excelente para prevenir o cólera. Ou seja: ainda se aceitava uma teoria miasmática dessa doença.

Um outro importante passo ocorre em 1850. Nesse ano, Casimir Davaine (1812-1882) e Pierre Rayer (1793-1867) descobriram um bacilo associado a uma doença: o antraz.

O antraz, também chamado de “carbúnculo” e “pústula maligna”, é uma doença que atinge animais e também o homem. Nos séculos XVIII e XIX, essa doença produziu várias epidemias no sul da Europa, devastando criações de gado. O antraz afeta vacas, carneiros, cabras, cavalos e outros animais – geralmente herbívoros. A doença produz tremores, dificuldades respiratórias e convulsões. Algumas vezes, há hemorragias pelas diversas aberturas do corpo. Podem surgir inchações escuras em diferentes partes do corpo. A maior parte dos animais morria em poucos dias – às vezes, no mesmo dia do início dos sintomas, outras vezes depois de vários dias. O cadáver dos animais mortos apresenta um quadro de infecção geral, com sangue muito escuro que demora a se coagular. O corpo apodrece muito rapidamente.

Em 1850, Rayer e Davaine observaram o sangue de carneiros mortos pelo carbúnculo. Observaram que os glóbulos vermelhos se aglutinavam em massas irregulares; havia além disso no sangue pequenos corpos filiformes, tendo cerca do dobro de comprimento de um glóbulo sanguíneo. Esses pequenos corpos não apresentavam movimento espontâneo. Podiam ser bacilos, mas podiam também ser partículas inanimadas.

Os dois pesquisadores resolveram inocular animais sadios com o sangue de carneiros doentes. Após alguns dias, os animais inoculados morreram. Examinando o seu sangue, Davaine e Rayer notaram a mesma aparência observada antes. Como a quantidade de sangue injetada era pequena e o sangue dos animais inoculados estava repleto pelos pequenos bastões, parecia que eles tinham se reproduzido, tratando-se portanto de seres vivos. No entanto, tudo poderia ser também interpretado de outra forma. Poderia ser que alguma substância do sangue transmitisse a doença, e que a doença, por sua vez, produzisse esses bastões.

Eles poderiam não ser vivos e ser apenas um efeito da doença.

O próprio Davaine, em um livro que publicou em 1860, mostra-se cético com relação à influência patogênica de microorganismos. Ele afirma que vários pesquisadores procuraram detectar seres microscópicos – especialmente infusórios – em animais contaminados por diversas doenças, sem encontrá-los. Nessa época, ele acredita que apenas os vegetais microscópicos, como os fungos, poderiam produzir doenças:

Os corpos organizados reconhecidos até agora que causam doenças contagiosas pertencem exclusivamente ao reino vegetal; a muscardina que grassa sobre os bichos da seda, a doença da videira e a das batatas, são devidas ao desenvolvimento e à disseminação de um vegetal. (…) Deve-se crer que se os miasmas contagiosos pertencem aos seres organizados, são vegetais; mas antes de se admitir a influência perniciosa desses seres, deve-se pelo menos reconhecer a sua existência.

A cautela existente nesse período tinha um aspecto positivo: procurava-se evitar a aceitação de hipóteses sem fundamentação. Era necessário apresentar evidências mais sólidas, para convencer a comunidade científica e médica da existência de uma relação de causa e efeito entre seres microscópicos e doenças.

Isso só ocorreu mais tarde.

CAPÍTULO 9: O PROCESSO DE TRANSMISSÃO DAS DOENÇAS

A DESCOBERTA DE SEMMELWEIS: OS MÉDICOS PODEM TRANSPORTAR A MORTE

Enquanto se faziam as primeiras descobertas de seres microscópicos associados a doenças, uma linha de investigações completamente diferente levou à descoberta do meio de transmissão de algumas enfermidades.

Neste capítulo vamos estudar a descoberta do processo de transmissão da febre puerperal. No próximo capítulo, a do cólera.

“Febre puerperal” é o nome de uma doença que ocorria nas maternidades, matando milhares de mães e crianças. Esse nome descrevia a fase em que a enfermidade ocorria: ela era observada no “puerpério” – o período logo após o parto.

A doença era conhecida desde a Antigüidade, mas aumentou muito a partir do século XVII. Coincidentemente, essa foi a época em que os médicos começaram a se dedicar aos cuidados do parto. Antes disso, o nascimento das crianças era acompanhado apenas por parteiras.

Entre 1652 e 1862 foram registradas 200 epidemias da doença. Era comum que 1/10 ou mais das mães morressem após o parto. Freqüentemente, os bebês também morriam, com sintomas parecidos. Em certos casos, nas fases mais intensas das epidemias, morriam todas as mulheres que entravam nos hospitais. A enfermidade praticamente só ocorria nos hospitais – os partos realizados em casa, por parteiras, raramente eram seguidos pela febre puerperal.

Atualmente, sabe-se que a doença é uma forma de infecção generalisada, que começa no útero e se espalha por todo o corpo, causada por estreptococos.

A causa inicial da infecção é a entrada de germes por meio de mãos sujas, instrumentos cirúrgicos, contato com roupas sujas, etc. Como o útero fica ferido após o parto e o desprendimento da placenta, torna-se fácil uma infecção. Os sintomas iniciais são febre, delírio, dores muito intensas. A infecção atinge todos os órgãos e a morte era quase sempre a conseqüência final.

No fim do século XVIII, havia várias teorias sobre a causa da febre puerperal. Uma delas dizia que a causa era a supressão da hemorragia posterior ao parto (isso na verdade é um sintoma e não a causa).

Outra teoria dizia que a causa era o acúmulo de leite dentro do corpo da mulher, após o parto, pois a autópsia dos cadáveres mostrava que muitos órgãos estavam cheios de um líquido branco (na verdade, não se tratava de leite e sim pus). Outros pensavam que a doença era um distúrbio dos humores – descrito como uma condição gástrico-biliosa. Também se atribuía a febre puerperal a fatores emocionais como medo, vergonha, etc.

Desconfiava-se de fatores externos, atmosféricos – miasmas, influências cósmicas ou terrestres. Também parecia existir o contágio: logo que a enfermidade aparecia em uma pessoa, no hospital, ela outras pessoas também adoeciam. A febre parecia se espalhar através de uma emanação virulenta, pelo ar.

Na Inglaterra, a teoria mais popular era a do contágio pelo ar. De acordo com nossos conhecimentos atuais, a explicação está errada, mas levou a medidas higiênicas que melhoraram muito as estatísticas.

Charles White, em um livro em 1773, atribuiu a febre puerperal às más condições de realização dos partos na Inglaterra. Adotou medidas de limpeza, ar fresco e temperatura ambiente adequada, além de separar as doentes das sãs. Depois que uma doente morresse ou se recuperasse, devia-se limpar o quarto, lavar cortinas e roupas de cama, passar vinagre no chão e móveis, para purificá-lo.

Alexander Gordon, em 1795, sugeriu que os médicos e enfermeiras transferiam a febre puerperal das doentes para as sãs:

Tenho prova inquestionável de que a causa da doença é uma infecção ou contágio específico.

Essa enfermidade ataca apenas as mulheres que são visitadas ou acompanhadas no parto por um praticante ou enfermeira que antes atendeu a pacientes afetados pela doença.

Toda pessoa que esteve com uma paciente de febre puerperal se torna carregada por uma atmosfera de infecção, que se comunica a toda mulher grávida que entre dentro de sua esfera.

Gordon recomendava que as roupas de cama e pessoais de pacientes infectadas fossem queimadas; recomendava que os médicos e enfermeiras se lavassem totalmente, e que fumigassem suas roupas. Mas suas idéias não foram aceitas.

Houve casos em que se sentiu a necessidade de tomar medidas enérgicas contra epidemias de febre puerperal. Em 1829, a mortalidade por febre puerperal era tão grande, que Robert Collins, chefe do Hospital de Dublin esvaziou a maternidade, para purificá-la e eliminar os “vapores da doença”. Encheu os quartos com gás clorídrico, com todas as aberturas seladas.

As paredes e chãos foram lavados com cloreto de cálcio em forma de pasta. Os móveis foram pintados. As paredes e teto foram lavadas de novo com cal.

Roupas de cama foram lavadas e depois tratadas em uma estufa a 120-130 graus Fahrenheit. A mortalidade, logo depois, caiu a apenas 0,53%.

O sucesso da medida parecia indicar que a causa da enfermidade estava impregnada no prédio e nos objetos do hospital, transmitindo-se pelo ar. No entanto, outras pessoas começaram a perceber indícios de que a doença era transportada pelas próprias pessoas.

Em 1843, o norte-americano Oliver Wendell Holmes (1809-1894) afirmava que “A doença conhecida como febre puerperal é tão contagiosa que é freqüentemente carregada de paciente a paciente pelos médicos e enfermeiras”.

Holmes sugeriu que os médicos que tratassem de pacientes com febre puerperal não deviam atender parturientes. Se isso não pudesse ser evitado, deveriam lavar cuidadosamente suas mãos com cloreto de cálcio e trocar de roupas após deixar a paciente com febre.

Em 1855, Holmes se refere ao fato de que muitas vezes ocorreram efeitos perigosos e mesmo fatais após ferimentos recebidos no exame de cadáveres de pacientes que haviam morrido de febre puerperal – o que não ocorria no exame de cadáveres de outras enfermidades. “(…) é irresistível a conclusão de que se produz um veneno mórbido muito temível no decorrer dessa doença”.

Apesar de todos os argumentos apresentados por Holmes, suas propostas não foram aceitas. Foi apenas pelo trabalho do médico húngaro Ignaz Philipp Semmelweis (1818-1865) que foram obtidas evidências claras sobre o processo de transmissão da enfermidade.

Em 1846, Semmelweis iniciou seu trabalho em Viena. Havia duas divisões na maternidade. Ele trabalhava na Primeira Clínica Obstétrica, na qual eram instruídos os estudantes de Medicina. Em 1846, a mortalidade média das parturientes, de maio a julho, foi de 12,23%. Em agosto subiu a 18,05%. Em setembro e outubro, baixou para 14%. Em média, de cada seis mulheres que entravam na maternidade, uma saia morta.

Semmelweis procurou explicações para a febre puerperal. Através de um estudo cuidadoso, ele foi excluindo as várias causas que haviam sido sugeridas.

Uma das explicações preferidas era a de causas atmosféricas, como miasmas ou variações climáticas. Semmelweis construiu tabelas de mortalidade, com os dados de vários anos, e observou que havia uma mortalidade grande, constante, em todas as épocas do ano, com qualquer tipo de clima. Além disso, sabia-se que as pessoas que preferiam realizar o parto em suas casas raramente ficavam doentes, o que parecia excluir qualquer causa atmosférica, cósmica ou telúrica.

Quando a epidemia se intensificava e a maternidade era fechada, as mortes diminuíam.

A causa devia estar dentro do próprio hospital. No entanto, mesmo dentro do prédio, ocorria um fato inexplicável. Em geral, a mortalidade na divisão de Semmelweis era quatro vezes maior do que na Segunda Clínica.

Como ambas ficavam no mesmo prédio, Semmelweis começou a procurar a causa dessa diferença, convencido de que havia fatores nocivos dentro dos limites da Primeira Clínica Obstétrica.

Era fato bem sabido, na cidade, que a mortalidade na Primeira Clínica era grande. Sugeriu-se que o medo da Primeira Clínica poderia influir nas pacientes, enfraquecê-las e produzir a febre puerperal. Semmelweis, no entanto, afasta essa possibilidade. Por um lado, o médo só poderia ter surgido após um período em que a mortalidade na Primeira Clínica fosse maior do que na Segunda. Por outro lado, não se podia conceber como o medo poderia produzir uma doença tão grave e mortal.

Semmelweis tomava hipótese por hipótese, analisava as evidências, e ia excluindo uma por uma. Mesmo as sugestões mais estranhas eram levadas em conta, pois tratava-se de um problema gravíssimo: estava em jogo a vida de centenas de mulheres.

Na Primeira Clínica, as doentes de febre puerperal eram isoladas em uma sala especial. Eram visitadas pelo padre, que passava antes pelos quartos onde estavam as mulheres sadias, com um sacristão tocando um sino.

O padre precisava vir muitas vezes ao hospital, durante o dia e à noite. Sugeriu-se que isso podia criar um terror muito grande entre as mulheres e aumentar a doença. Na Segunda Clínica, pelo contrário, o padre chegava às doentes sem passar pelas outras. Para ver se essa era a causa, Semmelweis conseguiu fazer com que o padre desse uma volta por fora dos quartos das parturientes e que o sacristão não tocasse mais o sino. As mortes continuaram, sem mudança.

Notou-se uma outra diferença entre os dois setores da maternidade. Na Segunda Clínica, as parturientes eram colocadas de lado, durante o parto. Na Primeira, eram deitadas de costas.

Para ver se isso tinha alguma influência, Semmelweis mudou a posição das parturientes na Primeira Clínica, apesar de grande resistência dos médicos e das enfermeiras. Não houve melhora, e retornou-se à posição anterior.

Semmelweis obteve a informação de que no mesmo hospital, anteriormente, haviam sido seguidos os métodos ingleses de higiene e a mortalidade havia sido de 1,3% durante 20 anos. Com a mudança do diretor, que não aceitava a teoria do contágio, os métodos foram abandonados e a mortalidade havia aumentado.

O próprio Semmelweis não acreditava no contágio da febre puerperal através do ar:

Nossa convicção é de que a febre puerperal não é uma doença contagiosa e que não é levada de cama para cama por um contagium (…). Basta a observação de que, se a febre fosse uma enfermidade contagiosa, os casos esporádicos da doença entre as puérperas da Segunda Clínica seriam suficientes para transformar os casos esporádicos em uma epidemia, pela difusão do contagium de cama para cama.

Na verdade, Semmelweis não tinha inicialmente nenhuma idéia sobre a causa da enfermidade ou sobre sua transmissão.

O fato que veio lhe trazer uma repentina compreensão desse problema foi a morte de um colega. Seu amigo Jakob Kolletschka, professor de Medicina Legal, morreu em março de 1847. Ao realizar uma autópsia, ele se feriu com o bisturi. A ferida havia se infectado e seguiu-se uma infecção geral, chamada “piemia”, da qual ele morreu.

Semmelweis ficou chocado com a morte e, ao mesmo tempo, informando-se sobre os detalhes, percebeu que os sintomas do amigo tinham sido idênticos aos das mulheres com febre puerperal.

Dia e noite essa figura da doença de Kolletschka me perseguia, e com uma determinação cada vez maior, fui obrigado a reconhecer a identidade da doença de que Kolletschka havia morrido, com a enfermidade de que eu havia visto tantas puérperas morrerem.

A causa que havia excitado a doença do professor Kolletschka era conhecida, ou seja, a ferida produzida pela faca de autópsia contaminada ao mesmo tempo por material do cadáver. Não foi a ferida, mas a contaminação da ferida pelo material cadavérico que foi a causa da morte. Kolletschka não foi o primeiro a morrer dessa forma. Devo reconhecer que, se a doença de Kolletschka é idêntica à doença de que vi tantas puérperas morrerem, então nas puérperas ela deve ter sido produzida pela mesma causa geradora, que a produziu em Kolletschka.

Efeitos semelhantes devem ter causas semelhantes. Mas o que poderia haver de semelhante entre uma mulher que fica doente após o parto, e um médico que se infecciona pela ferida de um bisturi sujo?

Ao longo de dois meses, Semmelweis pensava e repensava sobre a semelhança entre os dois tipos de morte. Por fim, ele concluiu que devem ter entrado “partículas cadavéricas” no corpo das mulheres.

E isso deveria ter sido causado pelos próprios médicos que as examinaram.

Os estudantes e os médicos da Primeira Clínica praticavam com grande dedicação a dissecação de cadáveres. Após isso, lavavam apressadamente suas mãos com água (às vezes usando sabão) e as enxugavam em toalhas sujas ou em seus aventais. Daí passavam para o cuidado das pacientes, levando consigo um cheiro nauseante.

Por causa da tendência anatômica da Escola Médica de Viena, os professores, assistentes e estudantes freqüentemente têm a oportunidade de entrar em contato com cadáveres.

As partículas cadavéricas que se prendem às suas mãos não são removidas pelo método ordinário de lavar as mãos com sabão, como é mostrado pelo cheiro de cadáver que as mãos mantêm durante um tempo mais ou menos longo. Durante o exame das grávidas, parturientes ou puérperas, a mão contaminada pelas partículas cadavéricas é colocada em contato com os órgãos genitais dessas pessoas e por isso existe possibilidade de absorção e, por meio da absorção, deve-se postular a introdução de partículas cadavéricas no sistema vascular dessas pessoas. Por este meio, produz-se nas puérperas a mesma enfermidade que vimos em Kolletschka.

Ou seja: na morte de Kolletschka, assim como na febre puerperal, a causa é a mesma: introdução de material em putrefação no interior do corpo – por uma ferida, ou pelos órgãos genitais.

Note-se que Semmelweis está utilizando algumas idéias antigas. A relação entre mau cheiro e produção de doenças deve ter orientado sua atenção para a falta de asseio após as dissecações.

A noção de que os materiais em putrefação produzem algum tipo de veneno também era conhecida. O elemento novo é o transporte desse material venenoso pelos próprios médicos.

Note-se que Semmelweis não está supondo a existência de um contágio, propriamente dito. Ele acreditava que o material em decomposição de qualquer cadáver, independentemente da causa de sua morte, era capaz de produzir a febre puerperal. De certa forma, portanto, sua concepção era semelhante à dos miasmas, que também não eram específicos.

A hipótese de Semmelweis explicava a diferença observada entre a Primeira e a Segunda Clínicas. Na Primeira, tinham acesso os estudantes de medicina. Na segunda, eram treinadas apenas as parteiras.

Os primeiros realizavam autópsias; as segundas, não.

Vários fatos se tornaram significativos, de repente. As pessoas que tinham seus partos em casa eram em geral atendidas por parteiras, ou clínicos que não praticavam autópsias, e por isso não eram contaminadas.

As mulheres que entravam no hospital já depois do parto, não eram examinadas como as demais, por isso o risco de febre puerperal era muito menor.

Semmelweis percebeu que ele próprio era o responsável pela morte de muitas mulheres. Quase todos os dias, pela manhã, antes de atender às mulheres, ele realizava autópsias de cadáveres e, depois, ia examinar as pacientes. Se a hipótese está correta, pensa Semmelweis, o modo de evitar a enfermidade é destruir as partículas cadavéricas nas mãos, por meios químicos. Em maio de 1847, ele começou a usar uma solução de cloro, pois já se sabia que o cloro impedia a putrefação e eliminava o mau-cheiro. Depois, começou a usar cloreto de cálcio, que era mais barato. Essa substância, misturada com água, era colocada em bacias no fundo das quais havia areia lavada. A areia era utilizada para esfregar as mãos.

Todos os estudantes e professores que entravam na clínica deviam lavar e esfregar suas mãos, antes de poderem atender às pacientes. Após essa desinfecção inicial, considerava-se que bastava lavar as mãos com água e sabão, entre os exames às várias doentes.

O resultado foi muito bom. Em maio de 1847, a mortalidade por febre puerperal ainda era de 12%. Em junho, caiu a 2,4%, em julho foi de 1,2% e em agosto de 1,9%.

A mortalidade tornou-se aproximadamente igual à da Segunda Clínica. Portanto, parecia que Semmelweis havia descoberto a diferença entre as duas divisões.

Apesar do sucesso prático, o superior de Semmelweis, diretor do Hospital, não aceitou suas idéias e se recusou à proposta de formar uma comissão para estudar o assunto.

Houve também resistências entre os estudantes e professores à adoção do método de desinfecção. O cloro produzia forte irritação da pele e o cheiro de cloro se espalhava pelo prédio. Em setembro, um estudante ridicularizou o método de Semmelweis e se recusou a tomar as precauções indicadas. Nesse mês, a mortalidade aumentou para 5,2%. Semmelweis descobriu o estudante e o puniu.

A mortalidade diminui novamente.

No entanto, no mês seguinte, houve novo problema. Embora todos os cuidados estivessem sendo respeitados, doze mulheres que estavam todas na mesma fileira de camas ficaram doentes e onze delas morreram de febre puerperal.

Semmelweis logo entendeu que ainda não tinha conseguido encontrar a explicação completa nem o método seguro de prevenir a febre puerperal. Analisando esse caso, ele logo se convenceu de que a doença devia ter sido transmitida às mãos dos estudantes e médicos depois que eles haviam entrado na Clínica. Notou então que, na fileira de mulheres que haviam morrido, a primeira paciente já tinha ingressado no hospital com uma doença do útero, da qual saía um líquido com odor fétido. Após examiná-la, Semmelweis e seus estudantes haviam apenas lavado as mãos com sabonete, e passado a examinar as pacientes seguintes, que depois adoeceram com febre puerperal.

Semmelweis concluiu que o material transmitido da primeira paciente para as outras havia produzido a enfermidade. Embora não se tratasse propriamente de “matéria cadavérica”, o líquido que saía da ferida do útero podia ser considerada como um material em decomposição, tendo propriedades semelhantes ao material de um cadáver.

Note-se que, a rigor, a hipótese inicial de Semmelweis teve que ser rejeitada. A causa da mortalidade não era apenas o transporte de material dos cadáveres para as pacientes.

Existe uma semelhança entre os dois casos, mas não uma identidade. Apesar disso, Semmelweis continuou a se referir sempre à “matéria cadavérica”, o que produziu muita confusão sobre suas ideías.

A partir de então, Semmelweis modificou seu procedimento: era necessário desinfetar as mãos com o cloreto de cálcio depois de qualquer contato com alguém que tivesse feridas ou alguma doença de onde pudesse sair algum material pútrido. Posteriormente, como mesmo essa medida não se mostrou sufiente, ele adotou o procedimento de isolar das demais pacientes qualquer pessoa que tivesse alguma doença que pudesse infectá-las.

Aparentemente, a febre puerperal havia sido superada.

Note-se que não há qualquer menção, aqui, a estudos microscópicos ou químicos, nem discussão sobre a natureza do material cadavérico infeccioso.

Semmelweis não discute se a causa da febre puerperal é algum tipo de germe vivo ou qualquer outro tipo de agente. De fato, Semmelweis nunca estudou esses aspectos.

Seu objetivo principal era a prevenção da febre puerperal e, tendo atingido esse fim, sua maior preocupação era que o método se difundisse e fosse usado em outros hospitais.

A recepção da descoberta de Semmelweis foi muito lenta. Em parte, pode-se entender isso como uma reação à compreensão de que os próprios médicos eram responsáveis pela morte das pacientes – e ninguém queria admitir isso. Por outro lado, a difusão das idéias de Semmelweis foi muito imperfeita. Ele próprio demorou vários anos para publicar seu trabalho.

Outras pessoas divulgaram aquilo que ele estava fazendo, mas às vezes de modo incompleto. Difundiu-se a idéia de que ele explicava a febre puerperal apenas através da infecção por matéria proveniente de cadáveres.

No entanto, em vários hospitais europeus, as pessoas que atendiam aos partos não praticavam autópsias – e, apesar disso, havia muitas mortes por febre puerperal. Isso parecia indicar que Semmelweis estava errado.

Na Inglaterra, acreditou-se que Semmelweis havia simplesmente redescoberto a hipótese do contágio da febre puerperal. No entanto, as idéias de Semmelweis eram muito diferentes das dos ingleses.

Esses acreditavam que a febre puerperal era uma doença particular, como por exemplo a varíola, que podia ser transmitida de um doente de febre puerperal a uma pessoa sã, através de contágio pelo ar. Semmelweis, pelo contrário, acreditava que qualquer material em putrefação podia infectar as parturientes e produzir a febre puerperal; e que a transmissão da enfermidade não era, em geral, pelo ar – e sim pelas mãos e utensílios dos médicos.

Em Viena, a oposição de importantes médicos fez com que Semmelweis fosse perseguido. Em 1850, ele abandonou a Áustria e foi para sua terra natal – a Hungria. Lá, começou a trabalhar no hospital de Budapeste – inicialmente, de graça. Lá ele também conseguiu reduzir a alta mortalidade a cerca de 1%.

Embora o principal trabalho da vida de Semmelweis tenha sido o combate à febre puerperal, ele também aplicou idéias semelhantes à cirurgia. As operações simples, como a retirada de pólipos do útero, eram geralmente seguidas pela morte da paciente por piemia. No entanto, tomando os mesmos cuidados de desinfecção que já foram explicados, ele fazia essas operações sem perder uma só paciente. E comenta: “Eu atribuo esses resultados favoráveis apenas ao fato de que opero com as mãos limpas”.

Como foi mostrado no início deste capítulo, outras pessoas antes de Semmelweis já haviam sugerido idéias muito parecidas com as suas. No entanto, não basta sugerir uma idéia: é necessário examinar as várias sugestões existentes, testá-las, ir eliminando as alternativas até isolar uma hipótese que explique todos os fatos conhecidos.

Apenas Semmelweis se deu ao trabalho de fazer esse trabalho cuidadoso de experimentação e de análise.

Depois que seu trabalho teve sucesso, Semmelweis procurou difundi-lo, mas de forma pouco hábil, conseguindo mais inimigos. Seu estilo era agressivo, como se pode ver por esta pequena amostra: uma carta aberta, escrita em 1861, dirigida a um médico, lembrando o que havia ocorrido no Hospital de Viena, onde haviam morrido quase 2.000 mulheres de febre puerperal, depois de sua saída.

O senhor, Professor, participou deste massacre. O homicídio deve cessar, e com o objetivo de terminar com esse homicídio, eu vigiarei, e todo homem que ousar propagar erros perigosos sobre a febre puerperal encontrará em mim um oponente ativo.

Para mim não há nenhum meio de impedir o assassinato a não ser desmascarando sem piedade meus oponentes. E ninguém que tem o coração no lugar certo me censurará por utilizar esse meio.

A aceitação das descobertas de Semmelweis foi lenta. Apenas depois de sua morte, na década de 1880, se generalizaram os cuidados de limpeza no tratamento obstétrico. Isso ocorreu lentamente, em geral sem se reconhecer o valor do trabalho de Semmelweis, que foi criticado em vida e esquecido após sua morte.

A TRANSMISSÃO DO CÓLERA PELA ÁGUA

Quando se pensava no contágio indireto das enfermidades, quase sempre se imaginava que ele ocorria através do ar. Foi em meados do século XIX que se descobriu que uma das mais terríveis doenças da época – o cólera – podia ser transmitido através da água.

O cólera foi uma doença pouco conhecida na Europa até o século XIX. Existiam notícias sobre ela na Índia, onde ocorria sempre, com maior ou menor intensidade. No século VII, um médico indiano, Sushruta, descreveu uma epidemia de cólera. Os portugueses entraram em contato com essa enfermidade durante o século XVI. No século XVII, um escritor holandês, Bontius, descreveu a ocorrência da doença na Índia.

Aparentemente, na região do Ganges, essa enfermidade sempre existiu, de forma endêmica, com maior ou menor intensidade.

Apesar de ser conhecido, o cólera era algo remoto e de pequena importância para os europeus, até que, em 1814, um batalhão inglês foi dizimado pela enfermidade, na Índia. Havia, na época, dois batalhões em marcha de Jaulnah para Trichinopoli. Um deles nada sofreu, mas o outro teve grande número de mortos pela doença. Na época, os indianos acreditaram que a epidemia era uma conseqüência da ira dos deuses, que haviam sido insultados pela poluição de certos tanques sagrados na aldeia de Cunnatae.

Esses tanques haviam sido utilizados pelos soldados para se banharem. Dois dias depois, centenas deles morreram.

Em 1817, o cólera aumentou de intensidade na Índia. Em agosto desse ano, houve dez mil mortos na região do Behar e Jessore. Em setembro, matou 20.000 homens da armada inglesa. Ainda no mesmo ano, o cólera matou cerca de cem mil habitantes de Java e Malaca – um décima da população. Durante o inverno, a enfermidade ficou “adormecida”, mas reapareceu em março de 1818 por toda a Índia. Daí, espalhou-se por outros países da Ásia, atingindo gradualmente, atingindo a China, as Filipinas, o Japão, a Síria e a Pérsia em 1822; daí passou para a Turquia e chegou à fronteira da Rússia em 1823. No entanto, não penetrou no resto da Europa.

Houve uma grande preocupação com essa epidemia de cólera, na Europa, pois pela primeira vez se presenciava a expansão quase ilimitada de uma doença que se pensava só ocorrer na Índia, no verão.

Não se compreendeu a causa da enfermidade, nessa época. Ela não parecia associada a deficiências alimentares, pois atingia toda a população de diferentes regiões. O clima também não parecia ser determinante, já que a epidemia atravessou diferentes épocas de vários anos, sem se extinguir. Havia indicações de que a doença era contagiosa, pois sua expansão seguia as rotas comerciais. No entanto, observou-se que a remoção dos habitantes de uma aldeia atingida pelo cólera para um novo local eliminava a epidemia, o que parecia indicar que era o próprio lugar que produzia a doença, e que ela não era transportada com as pessoas. Por esse motivo, imaginou-se que eram inúteis medidas de quarentena. Nessa época, surgiram explicações como a do médico inglês Reginald Orton, que afirmava que o cólera era “devido a uma ação nervosa deficiente produzida por uma aeração reduzida do sangue, que por sua vez depende de um clima desequilibrado que se segue a uma deficiência de fluido elétrico na atmosfera”.

Outra onda dessa doença se iniciou em 1826 e seguiu aproximadamente o mesmo caminho, espalhando-se depois da Rússia para a Polônia, Alemanha e pelo resto da Europa. Daí, espalhou-se depois pela América.

Essa “pandemia” – que atingiu o mundo todo – somente cessou em 1837.

Durante essa segunda pandemia, em Paris, houve 34.000 doentes em 1834. Isso correspondia a 4% da população da cidade. Mais da metade dos doentes morria. Estima-se que, nas duas primeiras grandes epidemias, houve mais de 40 milhões de vítimas, em todo o mundo.

O caminho do cólera seguia as vias de comunicação: aparecia primeiramente nos portos, depois se espalhava seguindo as estradas e rios. Era por isso provável que estivesse passando de uma pessoa para outra.

Mas ninguém sabia o modo exato como essa enfermidade se transmitia, e os lugares onde se estabelecia a quarentena dos navios eram tão atingidos como os demais. Acreditava-se que a doença se espalhava pelo ar; também se supunha que pudesse haver a produção de um veneno no solo, que impedia a transpiração, congestionava os intestinos e levava à inflamação do corpo.

Seguiram-se outras duas pandemias, de 1846 a 1863 e de 1854 a 1875. Pode-se dizer que nenhum outro tipo de epidemia causou tantas mortes e tanto terror no século XIX quanto o cólera. Durante o período de 1847 a 1848, adoeceram na Rússia 1.700.000 pessoas, havendo cerca de 40% de mortes. Em Paris, em 1848, houve 11.000 vítimas. A epidemia chegou ao Rio de Janeiro em 1854, matando 3.400 pessoas em quatro meses.

No Brasil, onde esta enfermidade reapareceu em torno de 1990, depois de ter desaparecido por muito tempo, a população sabe hoje vagamente que é um problema grave, que pode matar as pessoas.

As campanhas sanitárias nunca informam sobre os sintomas dessa doença, por medo talvez de chocar as pessoas.

Mas é importante saber como é o cólera, para compreender por que é tão importante evitá-lo. Vamos descrever a evolução dessa terrível doença, de acordo com informações de obras de 1855.

Uma pessoa acometida por essa enfermidade sente, inicialmente, uma indisposição geral, às vezes tendo vertigem, desfalecimento sem causa aparente, sensação de estar afundando. Logo depois, surgem os primeiros sintomas mais graves: diarréia e vômitos. Nessa fase inicial há falta de apetite, fraqueza, sensação de frio nos pés. Sente-se às vezes dores acima dos olhos, dor no ventre sem diarréia, sensação de aperto nas pernas, como se houvesse alguma coisa prendendo a circulação. Essa primeira fase pode durar alguns dias, mas em geral é curta.

No segundo período, há uma diarréia abundante, súbita, sem ardor, sem contrações. O doente é repentimanete atacado e evacua primeiramente as matérias fecais contidas nos intestinos.

Logo depois sobrevém uma diarréia líquida, de cor branca, leitosa, sem cheiro forte, semelhante à água em que se lavou arroz e contendo grumos. A evacuação é acompanhada por muitos ruídos no ventre.

Há uma leve dor e os líquidos são expelidos de modo quase constante, sem que o doente tenha consciência disso. Surgem náuseas e, às vezes, vômitos, que também são leitosos.

A diarréia e os vômitos produzem uma grave desidratação do doente, que fica rapidamente magro, como se estivesse secando. Os alimentos e líquidos ingeridos não são absorvidos pelo organismo.

Os doentes sentem frio e as extremidades dos membros ficam pálidas. O pulso se enfraquece, desaparece pouco a pouco e só é sentido no meio do braço. O ventre fica mole, vazio.

Podem aparecer câimbras muito fortes. Há violentas contrações musculares dos membros e do tronco, que parecem formar nós e causam dores muito vivas. O pulso se acelera. A face fica pálida, os olhos se afundam, cercados por uma auréola roxa. A voz se torna rouca.

Essa segunda fase pode durar apenas algumas horas, ou prolongar-se por até três dias.

Na terceira fase, continuam as dejeções e os vômitos aquosos. Como conseqüência da perda de líquido do organismo, há uma extrema fraqueza, o sangue se torna espesso e escuro, a circulação fica fraca, a pele fica insensível. Há febre, transpiração, sensação de falta de ar, a urina desaparece ou diminui muito. As câimbras continuam. O doente sente muita sede e pede bebidas frias. Tenta constantemente se descobrir.

A respiração é difícil e ansiosa. As mãos, pés e o fundo da face adquirem uma cor azulada. Os pés e mãos ficam frios.

Até o hálito fica frio. A língua fica lívida e fria. A mucosa da boca e das gengivas se torna fria e arroxeada. A pele das mãos se enruga como quando é deixada muito tempo dentro da água.

O círculo em volta dos olhos se afunda mais ainda, tornando-se escuro. Fica difícil ver os olhos do doente. Os olhos ficam secos, e se não forem umidecidos, pode-se produzir a cegueira, se a pessoa não morrer.

Essa terceira fase pode durar poucas horas, ou prolongar-se por até dois dias.

Se o organismo não começar a se recuperar, segue-se o período final. A carne fica mole como massa de pão, nas mãos, pés e sobre o abdômen. A pele se torna violeta.

Formam-se equimoses que vão aumentando e se reunindo até formar placas escuras. A respiração é demorada, os batimentos do coração ficam fracos.

O sangue é viscoso, negro, coagula-se lentamente, tem a aparência de uma geléia grossa e escura. Quem chega a essa fase não se salva. A morte ocorre em poucas horas.

Toda essa terrível seqüência pode durar menos de um dia. Uma pessoa pode se sentir bem ao se levantar, e estar morta à noite. Em outros casos, a doença é mais lenta, podendo durar mais de uma semana, mas não é mais suave. A duração média, desde os primeiros sinais, era de dois dias.

A mortalidade variava entre 1/3 e 2/3 dos doentes. Quando a enfermidade surgiu na Europa, eram utilizados os tratamentos conhecidos para outras doenças: clisteres para “limpar o intestino”, sangrias “para retirar o sangue doente”. Quando se percebeu que a absorção de líquidos cessava e que isso produzia a maior parte dos sintomas, surgiu a idéia de injetar diretamente água nas veias dos doentes. Posteriormente, o método foi aperfeiçoado e levou ao soro moderno.

Atualmente, se o tratamento é iniciado logo no início, quase todos os doentes podem ser salvos.

Não se conhecia nenhum remédio eficaz para as pessoas que já estivessem doentes; e também não se sabia exatamente como a enfermidade se espalhava, sendo por isso impossível evitá-la.

Foi durante uma das epidemias, em meados do século XIX, que se começou a compreender o modo de transmissão do cólera. Um dos pesquisadores que contribuiu para essa compreensão foi John Snow, médico inglês, que descreveu suas observações e conclusões em um livro intitulado “Sobre o modo de comunicação do cólera”, publicado em 1855.

Snow estuda o modo como apareceu e se espalhou a doença, para tentar compreender o modo de transmissão. Ele conta que, em 1832, o cólera apareceu em uma aldeia inglesa, em York, aparentemente sem causa nenhuma. No dia 28 de dezembro desse ano, um lavrador, John Barnes, teve forte diarréia, convulsões, e no dia seguinte estava morto. A esposa do lavrador ficou doente, mas não morreu.

A sua mãe, que cuidou dela e lavou suas roupas, ao voltar para casa, sentiu tonturas e caiu. Dois dias depois, ela, o marido e a filha morrem. Aparentemente, a doença de John Barnes havia sido transmitida à esposa e à sogra, e desta à sua família. Mas como o próprio John Barnes havia adquirido a doença, se ninguém na região tinha tido cólera?

A investigação do caso mostrou que a irmã de Barnes havia morrido de cólera, 15 dias antes, em Leeds. Como ela não tinha parentes na cidade, suas roupas haviam sido colocadas (sem serem lavadas) em um baú e haviam sido enviadas para o irmão, John Barnes. Ao receber o baú, ele o abriu e examinou as roupas. No dia seguinte ficou doente e, no outro, morreu.

“Alguma coisa” que havia ficado nas roupas deve ter produzido a morte de Barnes, 15 dias depois. E “alguma coisa” deve ter depois passado de Barnes para a esposa, desta para a mãe, etc.

Em seu livro, Snow conta que o primeiro caso de cólera em Londres, na epidemia que começou em 1848, foi de um marinheiro, chamado John Harnold, que havia chegado de Hamburgo, onde a enfermidade já havia se espalhado. O marinheiro morreu no dia 22 de setembro de 1848, em uma hospedaria, com todos os sinais do cólera. Durante alguns dias, não houve outros casos.

Mas na semana seguinte, uma pessoa que se hospedou no mesmo quarto em que Harnold morreu, ficou doente, morrendo no dia 30 de setembro. “Alguma coisa” devia ter ficado no quarto, produzindo a morte da segunda pessoa.

Nem sempre, no entanto, era necessário um contato direto com um doente ou com seus objetos para que o cólera fosse transmitido. Em alguns casos, a doença atingia muitas os moradores de várias casas vizinhas, sem que tivesse havido contato direto entre eles. Parecia que o agente causador do cólera podia se transmitir até uma certa distância dos doentes.

A partir de muitos casos como esses, as primeiras conclusões que se tirava, na época, era que o cólera pode passar de uma pessoa para outra; mas nem sempre o contato com um doente, ou ficar no quarto de um doente, produzia a enfermidade.

A partir de alguns poucos casos iniciais, a doença se espalhou pelo país. Em 1849, morreram em Londres 53.000 pessoas de cólera, de uma população de cerca de 2.000.000 de pessoas.

O que era essa coisa que transmitia o cólera? Ninguém sabia exatamente o que poderia ser, mas como a doença pode ir passando de uma pessoa para várias, e atingir milhares ou até milhões de pessoas, era algo que podia ir aumentando em quantidade. Para nós, isso é um sinal evidente de que se trata de um microorganismo que se reproduz e multiplica. Mas, na época, a conclusão cautelosa de John Snow era bastante vaga: “Doenças transmitidas de pessoa a pessoa são causadas por alguma coisa que passa dos enfermos para os sãos e que possui a propriedade de aumentar e se multiplicar nos organismos dos que são atacados por ela”.

Como já vimos, nessa mesma época Félix Pouchet havia encontrado os vibriões nos dejetos de doentes do cólera; mas essa descoberta não teve grande repercussão.

Surgiu a hipótese de que um “veneno mórbido” se espalhava pelo ar, em volta dos doentes, transmitindo o cólera aos que estivessem próximos. Snow, no entanto, não considerou essa explicação boa.

Se a enfermidade fosse adquirida pela respiração, deveria surgir algum tipo de sintoma ligado aos pulmões. Mas o cólera se manifesta basicamente no canal alimentar e não no sistema respiratório (ao contário da gripe, por exemplo). Por isso, Snow supôs que o agente produtor do cólera é introduzido primeiramente no canal alimentar: é alguma coisa que é engolida acidentalmente, que se reproduz no estômago e nos intestinos e que produz todos os distúrbios observados.

John Snow raciocinou que, se essa causa é introduzida e se multiplica no canal alimentar, seria razoável supor que ela também sai e se espalha com os dejetos (vômitos e fezes) dos doentes e não com sua respiração, suor ou outro veículo.

É claro que ninguém ingere os dejetos de um doente conscientemente. Mas ocorre que as evacuações dos doentes de cólera não possuem a cor nem o cheio de fezes, podendo passar despercebidas em lençóis e roupas brancas. Outras pessoas poderiam sujar as mãos sem notar e, se não lavarem as mãos antes de comer, irão ingerir uma pequena quantidade desses dejetos, que será suficiente para produzir a doença. Snow indica que alguns fatores agravantes da transmissão eram quando várias pessoas dormiam no mesmo quarto, quando comiam no próprio cômodo em que estava um doente, quando não havia água disponível para o asseio, etc.

Note-se que, embora Snow estivesse se baseando no conhecimento de um grande número de fatos, ele não podia ver nem reconhecer a causa da enfermidade, e por isso sua explicação era apenas uma hipótese engenhosa, mas sem possibilidade de comprovação direta.

Essa hipótese de Snow explicava como a doença podia passar de uma pessoa para outra, ou como podia acometer pessoas que tivessem contato com as roupas ou objetos de um doente. Mas, às vezes, a enfermidade se espalhava sem contato direto. Como isso poderia ocorrer?

Snow imaginou que a água utilizada na lavagem das roupas sujas dos doentes e mesmo as suas dejeções poderiam se misturar à água utilizada por outras pessoas para uso doméstico e contaminá-las.

Isso poderia ocorrer tanto pela infiltração dos dejetos no solo, atingindo poços; ou pelos esgotos lançados em rios, de onde a água fosse retirada para ser utilizada nas casas.

Isso explicaria o motivo pelo qual as famílias que moravam em casas próximas e que utilizavam a mesma água podiam adquirir o cólera ao mesmo tempo, sem contato direto com os doentes.

No entanto, Snow observou que não era apenas pela água que a doença era transmitida. Pessoas que cuidaram de doentes e que não beberam água nem se alimentaram na casa desses doentes adquiriam o cólera. Como? Provavelmente, por terem tocado em dejetos do doente e depois, sem lavar as mãos, em sua casa, terem tocado alimentos.

Baseando-se nessa hipótese, Snow e outros médicos começaram a agir. Em julho de 1849, houve 80 casos de cólera na rua Silver, em Londres, em 15 dias.

Dos 80 doentes, morreram 38 pessoas. Todas as pessoas bebiam água tirada de um mesmo poço. Observou-se que o esgoto passava perto desse ponto e que gotejava uma água suja no poço.

Esse poço foi interditado e acabou o cólera naquela rua.

O pior caso desse tipo, que se tornou tristemente famoso, foi o ocorrido em Broad Street, em 1854. Em um trecho de menos de 200 metros dessa rua, em um intervalo de 10 dias, houve 500 mortes (um quinto dos moradores). Verificou-se que todos utilizavam a água retirada de um mesmo poço, com uma bomba manual. Próximo a esse local, havia um asilo de pobres, com 535 pessoas. Somente 5 morreram de cólera, no mesmo período, pois utilizavam outra fonte de água. Da mesma forma, os operários de uma cervejaria no mesmo local não tiveram nenhum caso de cólera, pois ao invés de tomarem água só bebiam cerveja.

Todos esses casos pareciam indicar que a água era uma das grandes responsáveis pela transmissão do cólera (embora não fosse a única).

Mas a maior evidência sobre isso foi obtida por Snow em um estudo estatístico sobre o fornecimento de água de Londres. Havia, na época, duas grandes empresas fornecedoras de água encanada na cidade: a Lambert e a Southwark & Vauxhall. Durante o ano de 1854, de cada 100.000 pessoas que utilizavam água fornecida pela empresa Southwark & Vauxhall, 114 tiveram cólera. No mesmo período, de cada 100.000 pessoas que utilizavam água fornecida pela empresa Lambert, nenhuma teve cólera. Em ruas em que algumas casas recebiam água de uma das empresas e outras casas de outra, houve 60 casos de cólera para cada 100.000 pessoas.

Portanto, os casos de cólera pareciam estar diretamente ligados ao fornecimento de água pela empresa Southwark & Vauxhall. Descobriu-se que essa água era coletada no rio Tâmisa, em uma região que recebia esgotos. A água fornecida pela outra empresa, pelo contrário, vinha de uma fonte pura.

Se a causa do cólera era algo que vinha pela água, devia ser possível filtar a água e separar a causa da enfermidade. Em uma penitenciária, em que havia muitos casos de cólera, experimentou-se filtrar a água através de areia e de carvão. Sabia-se que a areia retém a maior parte das impurezas sólidas e que o carvão absorve cheiros. No entanto, mesmo com a filtragem, continuou a haver o surgimento de novos casos de cólera. Quando se mudou a fonte da água utilizada, cessou o cólera. Isso confirmava a importância da água na transmissão da doença, mas ao mesmo tempo mostrava que a causa do cólera não era algo que pudesse ser filtrado e separado, por meios comuns, nem era um tipo de miasma, associado ao mau cheiro.

Apesar de todos os fatos coletados por Snow, não se pode pensar que houvesse alguma prova definitiva de que o cólera era transmitido através da água. Ele próprio cita fatos difíceis de explicar. Alguns médicos objetaram que nem todas as pessoas que bebem água supostamente contaminada ficam doentes. Por que?

Talvez o tipo de água produzisse uma predisposição à doença, mas a causa fosse de outro tipo – vindo, por exemplo, pelo ar. Um caso que era citado foi o de uma pessoa que, por engano, ingeriu o líquido evacuado por um doente de cólera – e, apesar disso, não ficou doente. Houve também experimentos: Thiesch fez com que ratos brancos ingerissem as evacuações de coléricos, mas nenhum dos ratos ficou doente. As pessoas que alegavam esses fatos defendiam a idéia de que a enfermidade provinha de emanações no ar, miasmas.

Mesmo sem conseguir explicar tais fatos, Snow admitiu que eram os dejetos dos doentes que transmitiam a doença.

Sugeriu então várias medidas que ainda hoje são válidas, para a prevenção do cólera:

1) asseio: lavar as mãos após contato com doentes;
2)
 lavar as roupas pessoais e de cama dos doentes, ou expô-las a uma temperatura de mais de 100 graus;
3)
 evitar contaminação da água; se houver suspeita sobre a água, fervê-la e depois filtrar ;
4)
 quando houver incidência de cólera: purificar os alimentos pela água ou fogo, lavar as mãos antes de comer;
5)
 separar os doentes dos sãos;

Além de várias outras medidas.

Com certo otimismo, Snow concluiu que:

Tenho confiança (…) que, observadas as precauções acima enumeradas, precauções essas que creio serem baseadas na noção exata da causa do cólera, possa este tornar-se extremamente raro e, por que não dizer, ser totalmente banido dos países civilizados.

Infelizmente, vemo-nos ainda às voltas com o cólera, no Brasil. Talvez Snow tivesse sido muito otimista. Ou talvez estejamos vivendo em um país que ainda não pode ser considerado como civilizado.

RESISTÊNCIAS À HIPÓTESE DE TRANSMISSÃO DO CÓLERA PELA ÁGUA

O trabalho de John Snow descrito anteriormente é muitas vezes apresentado como um estudo que estabeleu sem nenhuma possibilidade de dúvidas a transmissão do cólera pela água.

Para se compreender a dinâmica real da ciência, é importante mostrar que as coisas não são bem assim.

Nossa tendência normal é pensar que aquilo que aceitamos hoje em dia foi claramente provado e não pode ser colocado em dúvida.

Mas em cada época existem sempre muitas hipóteses diferentes e pode não se tornar claro qual delas é a mais correta.

Os dados apresentados por Snow foram em geral aceitos como reais, mas interpretados de outra forma. A contaminação da água potável com dejetos poderia ter produzido uma diarréia comum, enfraquecendo as pessoas e preparando seus aparelhos digestivos para receberem a infecção do cólera. Ou seja: podia-se aceitar que os excrementos na água fossem uma causa que predispunha ao cólera, sem ser sua causa essencial.

Em meados do século XIX, Sir James R. Martin apontou a existência de seis explicações da difusão do cólera:

1. O cólera é produzido por uma influência atmosférica climática e por uma suscetibilidade dos habitantes, produzida pelo hábito de respirar uma atmosfera impura.
2. 
O cólera é causado por um contagion: material morbífico que aumenta no corpo humano e quese propaga por emanações que saem dos corpos dos doentes.
3.
 O cólera é causado por um veneno que produz a doença quando é ingerido, multiplica-se no corpo humano e sai nas fezes e vômito. Esse veneno se espalha principalmente misturando-se à água, que é bebida.
4.
 O cólera é devido a um material ou veneno mórbido que se produz apenas no ar, não no corpo, sendo difundido pelas condições atmosféricas.
5. 
O cólera é o resultado de um tipo de fermentação produzida no ar estagnado, impuro e úmido; é transportado em navios, em roupas e outros objetos e assim é difundido pelas ações humanas.
6.
 O cólera aumenta e se propaga tanto pelo ar impuro quanto pelo corpo humano (combinação de hipóteses acima).

A hipótese 3 é a de Snow, que atualmente aceitamos. Na época, no entanto, Sir James Martin aponta que a hipótese 5 (fermentação do ar) é a única que se sustenta com base nos fatos conhecidos.

Outras hipóteses diferentes também surgiram nesse momento. O grande higienista alemão Max von Pettenkofer (1818-1901) sugeriu em 1854 que a fonte da enfermidade não estava no ar nem na água, mas na terra.

Se o solo for úmido e poroso, ele pode ser penetrado pelos produtos de decomposição dos excrementos de animais e do homem. Esse material sofreria um tipo de fermentação no solo, produzindo o veneno do cólera.

Esse veneno seria produzido apenas com a presença de um tipo especial de fermento contido nos dejetos dos doentes de cólera. A partir desse processo, seria produzido um miasma que se espalharia pelo ar.

De certa forma, essa hipótese acabava conduzindo a métodos de profilaxia muito adequados: Pettenkofer defendeu cuidados sanitários, destruindo os dejetos dos coléricos ou impedindo que eles se espalhassem.

O asseio e a desinfecção foram um bom método preventivo da enfermidade.

A maior parte das pessoas que estudaram o cólera nessa época aceitava que a doença podia ser transmitida pelos doentes, mas não se chegava a uma acordo sobre o modo como isso acontecia.

Uma pessoa da família ou uma enfermeira poderia passar vários dias ao lado de um colérico, sem adquirir a enfermidade.

Uma das suposições que surgiu foi a de que os dejetos do doente não eram diretamente venenosos, mas que depois de algum tempo ocorria alguma transformação ou multiplicação do material lá contido.

Um experimento citado na época e que parecia favorecer essa idéia havia sido realizado em 1855 pelo médico alemão Thiersch. Ele havia alimentado ratos com o líquido intestinal de coléricos, para verificar se havia contágio. Quando o líquido era fresco, não produzia efeito nenhum. Quando era muito antigo, também não produzia efeito. Mas o líquido com mais de 3 e menos de 9 dias produziu uma doença nos ratos. De 34 ratos que receberam essa substância, 30 adoeceram e 12 morreram, com sintomas semelhantes ao do cólera.

Thiersch concluiu que os dejetos dos coléricos não produzem contágio diretamente, mas que, alguns dias depois, desprende-se deles uma substância tóxica, não volátil, capaz de produzir a enfermidade.

O experimento de Thiersch foi criticado, no entanto, porque ele não havia feito testes semelhantes com dejetos de pessoas normais; poderia ocorrer que a morte dos ratos não fosse por causa do cólera, mas simplesmente por causa da ingestão de materiais em putrefação.

A incerteza era tão grande, que muitas autoridades preferiam não manifestar nenhuma opinião. Em 1848, a Academia Imperial de Medicina de Paris nomeou uma “comissão do cólera”, encarregada de fazer um relatório sobre os numerosos trabalhos que eram recebidos sobre esse assunto.

Durante 18 anos, a comissão guardou um total silêncio sobre essa importante questão, apesar das reclamações reiteradas da imprensa médica. Enfim, esse silêncio foi rompido, e, na sessão de 23 de abril de 1867 da Academia, o sr. Briquet, em nome da comissão do cólera de 1840, leu as conclusões de seu relatório. Essas conclusões nada afirmavam sobre a causa ou sobre o tratamento da doença.

Fazia apenas recomendações vagas, indicando condições gerais que favorecem a propagação do cólera como de qualquer outra epidemia, ou seja: a vizinhança dos lugares onde reina a enfermidade, a proximidade de águas paradas, locais baixos, sem ventilação adequada, a elevação da temperatura, as variações atmosféricas, a chegada de ventos provenientes das localidades infectadas, as grandes reuniões de pessoas, as aglomerações, a guerra, a miséria, a saúde fraca, o estado de cansaço ou debilidade, as paixões que enfraquecem, e enfim o regime alimentar pouco conveniente.

Podemos observar o estado de conhecimentos sobre o cólera no Brasil, em meados do século XIX, através de grande quantidade de publicações da época. Um interessante manual para uso do povo foi publicado em 1855 pelo médico Tomás Antunes de Abreu. Era um folheto vendido por 3$000 réis juntamente com dois frascos de remédios para o cólera. Nesse folheto, o autor indicava vários cuidados higiênicos que lhe pareciam importantes:

É inteiramente nociva a aglomeração de muitas pessoas dentro de um pequeno recinto, principalmente tendo que fechá-lo à noite; porque o ar muito facilmente se corrompe, e não sendo renovado, causará grande dano: portanto convém, que os Srs. Proprietários façam apartar os seus escravos, dando-lhes acomodações mais espaçosas do que as de ordinário. Estas habitações devem ser colocadas em lugares secos, elevados, e arejados; devem ser abertas de dia, limpas freqüentemente, e caiadas; e visitadas por quem possa fazer observar estas regras, tendo o cuidado de não consentir nelas a presença de roupa suja, e nem de qualquer outro objeto, que possa exalar mau cheiro. As tarimbas [camas] devem ter de quatro a cinco palmos de altura do chão.

Quando se der algum caso do cólera, ainda mesmo não fatal, não se consentirá que no respectivo aposento habitem outros indivíduos, sem que seja ele primeiramente desinfetado por meio da água de Labarraque [cloro] posta em bacias com água por espaço de 24 horas, findas as quais se caiará, e por oito dias se conservará aberto dia e noite, depois do que pode ser habitado sem receiar-se mal algum.

Nota-se que a preocupação essencial era com o ar.

O autor explicava o cólera como um “envenenamento miasmático”. Seu desenvolvimento seria favorecido pela umidade, calor forte, tempestades, variações bruscas e consideráveis da temperatura do ar.

Os fatores individuais que predispõem ao cólera são: indigestões, abuso de bebidas, comidas muito gordurosas, frutos, tristeza, terror, cólera, “abuso do coito”.

Tomás de Abreu recomendava também “lavar-se sem abusar dos banhos”; mudar a roupa pelo menos duas ou três vezes por semana e sempre que estiver molhada pelo suor ou pela chuva; não trabalhar à chuva e, se tomar chuva, mudar de roupa e tomar um ponche quente, com água fervendo, açúcar, aguardente (uma onça por pessoa), e cascas de limão ou laranja; tomar também a mesma bebida pela manhã, antes de sair para o trabalho (às 5 horas da manhã) e ao deitar-se (entre 8 e 9 da noite).

Como a doença afeta principalmente o tubo intestinal, o médico recomendava cuidados com alimentos: eles deveriam ser de boa qualidade, de fácil digestão, evitando-se comer demais – especialmente à noite.

Recomenda aves e sugere que sejam evitados os peixes, especialmente salgados. Bebidas quentes como chá, mate e café são indicados como saudáveis. São proibidas as frutas, ervas, muita gordura e temperos irritantes. Deve-se evitar o vinho, tomando preferivelmente o do Porto, Madeira, ou Xerês.

Se, mesmo com esses cuidados, alguém adoecesse, o médico recomendava vários tratamentos caseiros e o uso dos dois remédios que acompanhavam o livreto.

É evidente que tais medidas não serviam para evitar o cólera. Quem se guiasse por esse folheto não tomaria nenhum cuidado com a água ou com os dejetos do doente, ficando presa fácil da enfermidade.

Em 1865, a França é atingida pela quarta epidemia de cólera. Os meios aceitos até então não impediram que a enfermidade se espalhasse.

Refletindo sobre o cólera, Chevreul assim resume, nesse ano, os conhecimentos existentes: a causa do cólera é desconhecida; seu tratamento é desconhecido.

Na França ainda não se aceitava a idéia de que o cólera fosse contagioso. Chevreul relata que algumas pessoas corajosas, para testar a possibilidade do contágio, ingeriram os dejetos dos coléricos, vestiram suas roupas e deitaram-se em seus leitos sujos. Nada lhes ocorreu, concluindo-se então que a doença não era contagiosa.

Chevreul, no entanto, não considera que o teste tenha sido definitivo. Poderia ser que essas pessoas destemidas não tivessem predisposição para a doença – e ela não ataca todas as pessoas. Por outro lado, poderia ser que as substâncias provenientes dos coléricos não produzissem a enfermidade enquanto estivessem frescas, mas apenas depois de algum tempo, quando começassem a desprender mau cheiro. Como vimos, os excrementos dos coléricos não possuem cheiro desagradável. Chevreul está, no fundo, se baseando na teoria dos miasmas, pois imagina que a doença poderia ser transmitida pelo mau odor que se espalhasse a partir da matéria em putrefação.

Chevreul defende a idéia de que o cólera é contagioso, porém não tem provas disso. Indica que o modo de aparecimento, seu surgimento sucessivo em diferentes cidades, seguindo um trajeto determinado, parece mostrar que ele é transmitido por contágio. No entanto, enquanto não se encontrar o tipo de material que transmite a doença, isso é apenas uma hipótese. Por isso, Chevreul sugere que se faça um estudo detalhado do ar em volta dos doentes, de seus dejetos, e que se procure também a existência de microorganismos vegetais (micrófitos) ou animais (microzoários) nos dejetos dos coléricos.

Como vimos, Pouchet há havia observado vibriões nos dejetos dos coléricos, mas não se deu importância à sua descoberta. A idéia de que a transmissão da enfermidade se dava pelo ar era muito forte.

A Academia de Ciências de Paris formou uma Comissão para identificar o material transmissor do cólera. Seguindo a sugestão de Chevreul, imaginou-se que a doença poderia ser causada por microorganismos que flutuassem pelo ar. Nessa época, Louis Pasteur havia encontrado seres microscópicos no ar, capazes de produzir a putrefação de materiais orgânicos. Ele fez parte dessa Comissão, que durante meses recolheu e analisou a respiração e o ar em volta de doentes de cólera. Nada se descobriu.

O fracasso foi repetido por um grupo inglês, que realizou análises químicas e microscópicas do ar nas alas de coléricos, em hospitais. A partir desses estudos, a idéia de que o cólera poderia ser causado por seres microscópicos foi abandonada, durante décadas.

Em 1866, foi realizada uma conferência internacional, em Constantinopla, sobre o cólera.

Os membros da conferência reconheceram que a enfermidade se espalhava com o movimento humano e que a água e o alimento podiam ser veículos dessa enfermidade, mas não se cheogu a nenhuma conclusão sobre as suas causas. As recomendações da conferência foram simplesmente medidas gerais de asseio, ar fresco, evitar aglomerações, desinfetar prédios onde ocorressem casos de cólera, e desinfetar navios e mercadorias quando houvesse cólera a bordo. Não houve acordo sobre a validade de quarentena para evitar que a doença se espalhasse – e talvez as pressões políticas e comerciais tenham sido um fator importante para manter as facilidades de transporte.

O estado geral de conhecimentos sobre o cólera na França, em 1867, foi descrito pelo médico Jacques Bonjean. “Aos olhos da maioria dos médicos, o cólera é um verdadeiro envenenamento cujo princípio escapa às investigações mais sutis”. Ele considera, na época, como bem estabelecido que os dejetos dos coléricos são o agente mais ativo de transmissão da doença. Afirma, ao mesmo tempo, que essas dejeções não são imediatamente perigosas e “pode-se prevenir suas emanações deletérias” por uma desinfecção conveniente. O veneno do cólera se espalha principalmente pelo ar:

Como esse envenenamento age de uma forma geral, é mais racional atribuí-lo ao ar, do que à água e aos alimentos, que não passam de causas ocasionais.

Se o mal se torna epidêmico, é evidente para nós que ele é transmitido pelo ar.

No entanto, o próprio Bonjean reconhece a dificuldade em se compreender como esse ar envenenado pode se espalhar e atingir localidades distantes:

O ar viciado que se exala de uma aglomeração de indivíduos, de um lugar insalubre, de uma sala de hospital, enfim de uma habitação infectada, deve favorecer, em um certo raio, a extensão do cólera do qual ele se torna uma causa ocasional; mas esse ar viciado não é o vetor que transporta o cólera até acima das montanhas e as florestas mais vastas

Por isso, ele sugere que os doentes podem transportar a enfermidade.

Bonjean cita os estudos ingleses e recomenda evitar fazer uso da água que possa ter sido contaminada, mesmo ligeiramente, pela mistura de matérias excrementícias. “Também há perigo em respirar os eflúvios de mesma natureza”.

Essa opinião, que as diarréia são contagiosas por seu odor e podem dar o cólera ao homem são, foi emitida em 1865 e recebida sem contestação na Academia de Ciências e na Academia de Medicina de Paris.

Os dejetos dos doentes não são imediatamente perigosos, e as roupas que são impregnadas por eles só se tornam [perigosas] depois de alguns dias de fermentação do miasma contagioso.

Admite-se portanto de modo geral, hoje, tanto na França quanto no estangeiro, que as matérias fecais e dos vômitos possuem a propriedade de transmitir a doença por meio da absorção, sendo incontestavelmente o miasma colérico de natureza volátil.

O hálito dos coléricos é descrito como sendo uma das fontes de transmissão da enfermidade.

Bonjean, como outros autores da época, dá grande importância a fatores que aumentam ou diminuem a tendência a contrair a doença.

A bebida e os excessos lhe parecem ter uma influência maior do que a miséria e a falta de higiene. Há também diferenças individuais, que predispõem ou protegem contra a enfermidade:

Disposições pessoais. “De início, as doenças, mesmo contagiosas, não o são necessariamente. Felizmente, para muitas delas, e das mais temíveis, são necessárias condições de iminência que se encontra nos indivíduos cujo organismo é geralmente pobre, e nos quais os miasmas coléricos possuem muito mais ação do que nas pessoas que desfrutam em geral de uma boa constituição. Há disposições individuais que não poderíamos precisar, compreendidas sob o nome de idiossincrasia, e que pelo contrário possuem uma influência indubitável.

Certas pessoas resistem à ação dos vírus mais constantes em seus efeitos, como os da vacina; outros são acessíveis às manifestações miasmáticas mais fracas.

Nas condições ordinárias, o miasma colérico não encontra felizmente senão por excessão um terreno preparado para sua evolução; portanto, nem todas as pessoas que vivem nesse meio infectado sofrem necessariamente sua influência perigosa.

Os cuidados de higiene recomendados por Bonjean consistem principalmente na desinfecção das matérias fecais pelo sulfato de ferro, e dos leitos, das roupas e outros objetos, por imersão em água clorada.

É interessante assinalar que, além do sulfato de ferro, ele recomenda também colocar carvão pulverizado nos dejetos dos coléricos, pois “o carvão absorve os gases perigosos”.

Apesar de admitir que a água pode ser um veículo secundário de difusão do cólera, toda a descrição de Bonjean (típica do período) enfatiza o papel do ar, dos cheiros – enfim, dos miasmas.

Algo semelhante ocorre em outros países, na época. Durante as décadas em que o cólera produz as grandes epidemias, o movimento sanitarista ressurge, com a mesma base teórica do século XVIII – a hipótese dos miasmas.

Aproximadamente em 1850 surgem legislações sanitárias em diversos países. Na Inglaterra, o advogado Edwin Chadwick, utilizando dados estatísticos, estabeleceu a existência de uma correlação entre condições de vida e mortalidade. Seu trabalho procurava mostrar que as doenças transmissíveis eram causadas por miasmas, surgindo de matéria animal ou vegetal em decomposição, em lixo, excrementos, etc. O resultado obtido foram medidas de limpeza das cidades, construção de esgotos e suprimentos de água livres de contaminação.

Foi também graças a esse movimento que o rio Tâmisa, que atravessa Londres, foi recuperado. Em meados do século XIX, o cheiro desse rio era tão terrível que se colocou em questão se o Parlamento (às suas margens) poderia continuar a se reunir. Pode-se imaginar que a situação fosse semelhante à do rio Tietê, que atravessa São Paulo.

Nos Estados Unidos, o comerciante Lemuel Shattuck teve um papel político semelhante ao de Chadwick, conseguindo também muitos resultados importantes, em 1850. Os hospitais, escolas e fábricas também sofrem uma melhora higiênica considerável. No mesmo período, na Alemanha, Max von Pettenkofer conseguiu aprovar uma legislação sanitária.

São também criadas as primeiras cátedras universitárias dedicadas à saúde (ou seja, à higiene).

Todas as medidas do movimento sanitarista (limpeza, água, esgoto) reduziram muito a mortalidade, na época. Mesmo sem que se compreendesse a causa da peste bubônica, da lepra e do cólera, essas doenças praticamente haviam desaparecido dos países mais desenvolvidos. Outras enfermidades, como tifo e tuberculose, não foram no entanto eliminadas.

A teoria dos miasmas foi uma das mais importantes e úteis de toda a história da medicina. Em muitas ocasiões, levou a importantes cuidados de higiene e a uma redução da mortalidade.

Mas ocorreu neste caso aquilo que geralmente sucede quando uma teoria tem sucesso: ela impede o desenvolvimento de novas hipóteses e, após dar contribuições positivas, pode se tornar mais prejudicial do que benéfica, levando à estagnação da ciência.

CAPÍTULO 10: O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA MICROBIANA DAS DOENÇAS

PASTEUR, BÉCHAMP, E AS DOENÇAS DOS BICHOS-DA-SEDA

Na década de 1860, houve importantes avanços na compreensão do papel de microorganismos em doenças contagiosas.

É nessa época que Pasteur desenvolve o seu primeiro estudo que teve relação direta com problemas médicos: a pesquisa da causa da enfermidade dos bichos-da-seda. A quase totalidade dos livros indica que, nessa ocasião, Pasteur iniciou o estudo científico da teoria microbiana das enfermidades. Como veremos, a história não foi bem essa. Pelo contrário: nesse episódio, Pasteur foi um opositor da teoria microbiana.

A versão que será apresentada aqui será muito diferente daquilo que se costuma descrever sobre o episódio. Por isso, a investigação da doença dos bichos-da-seda será contada com certo grau de detalhe, a fim de não parecer que estamos falseando a história.

A criação de bichos-da-seda era de grande importância econômica na França. A produção de casulos para fiação da seda atingiu, em torno de 1850, a mais de 20.000 toneladas por ano. No entanto, a partir de 1853, a produção caiu progressivamente, chegando a apenas 4.000 toneladas em 1865, por causa de uma enfermidade que dizimava as criações. A mesma doença atingiu também, na mesma época, os bichos-da-seda da Itália, Espanha e outros países vizinhos.

Houve sucessivas tentativas governamentais de debelar a enfermidade. No final da década de 1850, Academia de Ciências de Paris constituiu uma comissão para estudar as causas da morte dos bichos-da-seda e propor meios de prevenção contra a enfermidade.

O relator da comissão foi o naturalista Armand de Quatrefages de Bréau (1810-1892).

Duas décadas antes, como já foi indicado, uma doença dos bichos-da-seda (chamada “muscardina”) havia sido estudada por Bassi, que descobriu tratar-se de uma enfermidade causada por um fungo microscópico.

A enfermidade que afetava as criações na década de 1850, no entanto, era outra, chamada “pebrina”. Os bichos-da-seda atacados pela doença apresentavam uma série de pequenas manchas negras na superfície, e corpúsculos negros dentro dos diversos órgãos.

Essas partículas recebiam o nome de seu descobridor: “corpúsculos de Cornalia”. Os bichos-da-seda doentes se enfraqueciam, morriam e secavam. Algumas vezes, surgiam outras manifestações patológicas, que Quatrefages interpretou como doenças ocasionais, que ocorriam por falta de higiene e que atingiam os animais já enfraquecidos. Mas os sinais acima indicados da pebrina eram constantes, presentes em todos os bichos-da-seda doentes. Observava-se também nos animais doentes uma alteração da coloração do sangue.

Quatrefages descreve a enfermidade como possuindo ao mesmo tempo um caráter epidêmico e hereditário. A pebrina era epidêmica, no sentido de ser uma doença que não era própria do local, mas se manifestava durante um certo tempo de modo intenso, atingindo toda uma população através de uma causa comum.

Como vimos, nessa época, associava-se as epidemias a fenômenos climáticos ou a miasmas. Era hereditária, no sentido de que os bichos-da-seda doentes produziam ovos “viciados”: “(…) todos eles estavam atingidos pela pebrina, que os matou em parte, deixando os sobreviventes transmitirem aos ovos o germe da doença” . Quatrefages não afirma que os bichos-da-seda já nasçam doentes; mas supõe que eles nascem com uma predisposição à pebrina.

A pebrina havia se espalhado de tal forma, que praticamente todos os bichos-da-seda franceses estavam doentes. Embora uma certa porcentagem deles conseguisse se desenvolver, fazer casulos, transformar-se em borboletas e colocar ovos, esses ovos já estavam afetados e produziam lagartas fracas.

Quatrefages utiliza uma comparação entre a pebrina e a tuberculose. O bicho-da-seda atacado pela pebrina se torna fraco, suscetível de ser atingido por outras enfermidades.

Ele deve ser cuidado com precauções especiais, “como se cuida de um tuberculoso cuja existência se deseja prolongar”.

Dada a natureza “hereditária” da doença, Quatrefages recomenda que só sejam aproveitados os ovos de bichos sadios, isso é, sem manchas.

Para reduzir a “influência epidêmica” da enfermidade, Quatrefages recomenda que as criações sejam pequenas e que sejam tomados todos os cuidados higiênicos.

Esses cuidados incluiam aquecimento e ventilação adequada das criações de bichos-da-seda, alimentação adequada, cuidados com umidade, etc.

No seu trabalho final, publicado em 1860, Quatrefages afirma que “a influência epidêmica pode atingir o embrião em desenvolvimento dentro do próprio ovo”.

Recomenda, por isso, que os ovos que eram importados de outros países só fossem trazidos para a França na época em que fossem se abrir.

Durante algum tempo, a situação da sericicultura parece ter melhorado. No entanto, em 1865 a epidemia é tão grave que os prefeitos e proprietários agrícolas solicitam providências ao Senado.

É formada uma nova comissão para o estudo da pebrina. Por influência do químico Jean-Baptiste Dumas, Pasteur é indicado para fazer parte desse trabalho.

Louis Pasteur (1822-1895) era um químico. Sua formação nada tinha a ver com Medicina ou História Natural. A única ligação entre seu trabalho e a Biologia, anteriormente, tinha sido seu estudo de microorganismos responsáveis pela fermentação e pela putrefação.

Apesar da falta de preparo na área, Pasteur aceita a indicação de Dumas e é enviado à região de Alais, em junho de 1865, para iniciar o estudo da pebrina. O próprio Pasteur reconheceu que, antes de partir, havia estudado apenas os relatórios de Quatrefages sobre a doença. Depois de algumas semanas no campo, Pasteur retorna a Paris e em setembro de 1865 apresenta à Academia de Ciências suas primeiras conclusões.

A maior parte das idéias de Pasteur coincide com as de Quatrefages. Ele admite que os ovos provenientes de bichos-da-seda com corpúsculos devem ser considerados doentes, mesmo se não se nota nos próprios ovos as manchas que assinalam a pebrina. Ele admite portanto, como Quatrefages, que a enfermidade é hereditária:

Sou levado a admitir que todos os grãos [ovos] nascidos de borboletas que possuem corpúsculos, é um grão doente. Se as borboletas são pouco carregadas de corpúsculos, seu grão fornecerá lagartas que não os mostrarão, ou que só os mostrarão excepcionalmente, no final de sua vida, e a criação poderá se comportar bem; mas se o grão provém de pais cujos tecidos ou sucos nutrientes forneceram os princípios necessários ao desenvolvimento de uma quantidade considerável de corpúsculos, ele participará ainda mais de sua constituição e talvez desde a primeira idade da lagarta o mal se mostrará pelos corpúsculos ou por todos esses sintomas mais ou menos difíceis de caracterizar que fazem adivinhar que uma criação não dará resultado. Se reuníssemos em um mesmo lugar uma multidão de crianças nascidas de pais doentes da tísica pulmonar [tuberculose], eles cresceriam mais ou menos doentios, mas só mostrariam tubérculos pulmonares – sinal certo de sua má constituição – em graus e idades variadas. As coisas se passam aproximadamente da mesma forma para as lagartas.

Pasteur repete, com detalhes, a idéia de Quatrefages de que a pebrina seria semelhante à tuberculose. Desde a Antigüidade, alguns autores haviam considerado a tuberculose como hereditária, enquanto outros a consideravam adquirida por contágio ou por influência do meio. No século XVIII, deu-se preferência à última interpretação e por isso foram tomadas medidas higiênicas para combater a doença.

Apesar dessas medidas, enquanto vários tipos de doenças diminuíam no século XIX, a tuberculose continuou um grave problema na Europa. Em meados do século, existiam defensores tanto da natureza hereditária quanto da natureza adquirida da doença. Quatrefages e Pasteur, no entanto, adotam a visão de que a tuberculose é hereditária enquanto constituição orgânica, podendo se manifestar ou não dependendo das condições a que as pessoas estão submetidas. Os dois autores aplicam exatamente a mesma idéia à pebrina

Utilizando essa concepção, Pasteur propõe um modo de selecionar ovos sadios que não difere muito do anterior. Ele propõe que se examine todo o corpo do macho e da fêmea, após a colocação dos ovos, para procurar a existência de corpúsculos. Se houver corpúsculos nos pais, os ovos serão declarados doentios, em maior ou menor grau, dependendo da quantidade de corpúsculos dos pais.

Se não forem encontrados corpúsculos nos pais, os ovos serão considerados sadios.

Quanto aos próprios corpúsculos, Pasteur adota uma opinião que já havia sido proposta anteriormente pelo italiano Ciccone: eles não são microorganismos vegetais nem animais, são apenas o produto de um organismo doente.

Eu teria desejado poder tratar aqui sobre a natureza dos corpúsculos; mas esse assunto merece observações mais amplas do que as que pude fazer. No entanto, atrevo-me a dizer que minha opinião presente é que os corpúsculos não são nem animais nem vegetais, mas corpos mais ou menos análogos às granulações das células cancerosas ou dos tubérculos pulmonares. Do ponto de vista de uma classificação metódica, eles deveriam ser classificados preferivelmente ao lado dos glóbulos de pus ou dos glóbulos do sangue, ou mesmo dos grãos de amido, do que ao lado dos infusórios ou dos mofos.

Pode-se perceber que, no início de seu estudo dos bichos-da-seda, Pasteur está longe de apresentar novidades: ele utiliza idéias idênticas às de seus antecessores.

No ano seguinte, Pasteur dedica cinco meses ao estudo das criações. Ele observa que as lagartas podem já nascer com corpúsculos, ou tornar-se corpusculosas durante o seu desenvolvimento.

No seu segundo trabalho, apresentado em julho de 1866, ele admite que “um bicho-da-seda pode ser corpusculoso de nascença ou tornar-se [corpusculoso], seja por acidente, seja principalmente por influência da hereditariedade, durante a criação”. Ou, inversamente: se uma borboleta do bicho-da-seda é corpusculosa, “diremos que o grão do qual saiu, que o verme do qual proveio, que a crisálida que lhe deu nascimento estavam doentes, ou pelo menos muito predispostos a tornar-se [doentes], ou que a doença ocorreu no alojamento durante a criação”.

A ênfase principal neste segundo artigo, como no primeiro, é dizer que os filhos de pais doentes, corpusculosos, serão doentes e que os ovos de borboletas sadias serão sadios.

Mas Pasteur está apresentando aqui uma nova opinião, embora não diga que está abandonando sua hipótese inicial. O que significa “tornar-se corpusculoso por acidente?”

Como os bichos podem se tornar doentes durante a criação? Não havia nada sobre isso no primeiro trabalho de Pasteur.

Nesse segundo artigo, ele descreve que nas criações em larga escala (industriais), é muito raro encontrar alguma borboleta sem manchas, “o que tende a estabelecer a infecção nos alojamentos”. Indica também que, trabalhando em pequena escala, foi possível obter borboletas não corpusculosas, ou seja, sadias, partindo de ovos que tinham corpúsculos. Como isso foi conseguido?

Eu o atribuo não apenas ao fato da criação pequena, mas à precaução que tomei de afastar todos os dias os bichos mortos sobre a palha ou suspeitos de uma morte própria para um local próprio, onde se evitava o mais possível os pós das camas, das pranchas e das mesas.

Embora Pasteur não seja claro, diz também em outro ponto que tomando-se “pequenos cuidados de asseio” pode-se “afastar a infecção”.

Tudo isso parece indicar que ele acreditava na possibilidade de transmissão da enfermidade dos animais mortos ou doentes para os sadios.

Para descobrir a “fonte de infecção”, Pasteur analisou a poeira dos alojamentos dos bichos-da-seda do ano anterior, antes que fossem utilizados novamente.

Peneirando essa poeira, encontrou uma grande quantidade de corpúsculos misturados ao pó. Ele se pergunta se esses corpúsculos podem ser microorganismos, ou esporos dos mesmos, por analogia com a doença que havia sido estudada por Bassi (a muscardina). Mas ele nega claramente essa possibilidade.

Quando se pensa que os corpúsculos se parecem muito a esporos de mucedínios, ficaríamos tentados a crer que os alojamentos foram invadidos por um parasita análogo ao da muscardina. Isso seria um erro. Essa poeira estava carregada de corpúsculos porque na criação houve muitos bichos corpusculosos mortos na palha, que apodreceram, secaram, e os corpúsculos de seus cadáveres e de seus dejetos se disseminaram por toda parte.

Deposito sobre a mesa da Academia um pouco do pó do alojamento de que falo. Examinando-o ao microscópio, a Academia poderá se convencer da assustadora multiplicação desses pequenos corpos que eu sempre considero como uma produção que não é nem vegetal nem animal, incapaz de se reproduzir, e que deve ser incluída na categoria desses corpos de regular que a fisiologia distingue há alguns anos como organitas, tais como os glóbulos do sangue, os glóbulos do pus, etc.

Apesar de não serem microorganismos, esses corpúsculos encontrados na poeira são maléficos, pois Pasteur afirma conterem “elementos tóxicos em um alto grau”.

Polvilhando as folhas de amoreira que alimentavam os bichos-da-seda com a peira repleta de corpúsculos, havia uma grande mortalidade entre os animais, em poucos dias, embora eles não ficassem cheios de corpúsculos.

A “infecção” dos bichos-da-seda, para Pasteur, não se deve nem a problemas com os alimentos, nem a miasmas deletérios no ar, nem a um tipo de cólera, nem a uma epidemia misteriosa.

Os restos dos cadáveres e os excrementos dos bichos doentes, cheios de corpúsculos, seriam a causa dessa infecção.

Na verdade, a posição de Pasteur nessa época é confusa e até contraditória. Ele admite claramente que os bichos-da-seda podem se tornar doentes durante a criação; fala em infecção e chega a se referia a contágio, mas atribui a infecção a corpúsculos que não se reproduzem, que são apenas tóxicos e que matam rapidamente os bichos sem torná-los corpusculosos.

A situação ficará mais clara logo depois.

Três semanas após a apresentação do segundo trabalho de Pasteur, Antoine Béchamp (1816-1908) apresenta à Academia de Ciências de Paris o resultado de estudos que estava desenvolvendo sobre os bichos-da-seda. No início de seu trabalho, Béchamp expõe com toda clareza as duas alternativas para compreender a pebrina:

Pode-se fazer duas hipóteses para dar conta da natureza da doença chamada pebrina.

1ª Ela é constitucional. Nesse caso os corpúsculos vibrantes não passam de um sinal patognômico, uma produção patológica. Longe de ser causa da doença, eles são apenas seu efeito.
2ª Ela é parasitária
. Então os corpúsculos, se não se descobrir nenhuma outra produção organizada, são a causa produtora da doença.

O trabalho que desenvolvo há quatro meses está fundamentado sobre a segunda alternativa.

Portanto, Béchamp está explorando a possibilidade que Pasteur rejeitou desde o início: a de que os corpúsculos sejam parasitas microscópicos vivos, que sejam a causa da pebrina.

Béchamp encontrou sobre a superfície exterior de ovos dos bichos-da-seda e do corpo de lagartas, muitos corpúsculos que podiam ser retirados por lavagem com o auxílio de um pincel.

Observou que as lagartas jovens podiam ter corpúsculos fora do corpo, e nenhum em seu interior. Ele sugeriu nesse trabalho que os corpúsculos viriam inicialmente de fora dos ovos, prendendo-se às lagartas e depois introduzindo-se nelas.

Pasteur comenta pouco depois sobre o trabalho de Béchamp. Ele discute especialmente a idéia de que os corpúsculos estão inicialmente fora dos ovos.

Afirma que mesmo lavando muito cuidadosamente os ovos produzidos por borboletas corpusculosas, e esmagando-os, são encontrados corpúsculos.

Quanto à questão geral sobre a causa da enfermidade, colocada por Béchamp, Pasteur prefere não se pronunciar, por se tratar de opiniões “a priori”, ou seja, que precedem a investigação experimental: “Com relação a idéias preconcebidas, é bom que cada um se inspire nas que acreditar mais próprias para conduzir à verdade”.

Logo depois, no entanto, são publicados dois artigos de grande importância, que estudam a natureza dos corpúsculos do bicho-da-seda e defendem sua natureza parasitária. Um deles é do próprio Béchamp, o outro é do naturalista Balbiani.

Balbiani ataca diretamente a interpretação de Pasteur sobre os corpúsculos:

Dentre todas as opiniões contraditórias que foram emitidas sobre a natureza dos corpúsculos da pebrina, a mais discutível, em minha opinião, é a que os compara a elementos anatômicos normais ou mais ou menos alterados, ou a produtos mórbidos como os glóbulos de pus. Há mais de oito anos que essa opinião foi refutada pelo professor Lebert.

Balbiani esclarece que Lebert e ele próprio haviam feito estudos químicos sobre os corpúsculos, concluindo que eles não tinham as propriedades dos tecidos animais. Balbiani afirma que, ao invés de serem produzidos pelo corpo do bicho-da-seda, os corpúsculos invadem gradualmente os seus tecidos, como parasitas.

Ele compara os corpúsculos da pebrina a parasitas vegetais que já haviam sido estudados antes em outros animais (peixes, aranhas, insetos, etc.), e que eram conhecidos pelo nome de “psorospermias” (nome tirado de “psora”, sarna, que é uma afecção causada por um pequeno parasita, e “sperma”, que significa semente ou germe). Balbiani conclui:

Os corpúsculos que se observa na doença descrita sob o nome de pebrina nos bichos-da-seda não são elementos anatômicos provenientes da alteração de partes fluidas ou sólidas de seu organismo, mas psorospermias, quer dizer, espécies vegetais parasíticas, que se encontra, aliás, em um grande número de outros insetos e articulados.

É curioso que Balbiani utiliza contra a opinião de Pasteur argumentos químicos. Como foi dito anteriormente, Pasteur era um químico por sua formação. Seria de se esperar que ele utilizasse métodos químicos, para o estudo da pebrina, mas ele não o fez.

Béchamp, por sua vez, utiliza também argumentos químicos semelhantes aos de Balbiani mas, além disso, mostra outras fortes evidências de que os corpúsculos são vegetais microscópicos.

Pasteur, como vimos, havia feito estudos sobre fermentações e aceitava que esse fenômeno é produzido por microorganismos. Béchamp, na mesma época, havia chegado a conclusões idênticas.

Aproveitando sua experiência com esse tipo de fenômenos, Béchamp testou os corpúsculos da pebrina para verificar se eles se comportavam como fermentos. Colocando-os em uma solução de açúcar de cana, verificou que ele de fato produzia a fermentação do líquido, com a transformação do açúcar em glucose e acidificação do líquido. Como se admitia que os fermentos eram vegetais microscópicos, concluia-se que os corpúsculos eram parasitas e não produtos dos bichos-da-seda.

Béchamp fez outros testes que deram também resultados muito claros. Se os corpúsculos fossem produtos do animal, eles deveriam de desfazer quando um bicho-da-seda morto apodrecesse.

Béchamp esmagou três bichos-da-seda pouco corpusculosos em água. Observou inicialmente o líquido e viu que uma gota colocada ao microscópio mostrava três ou quatro corpúsculos de cada vez, no campo visual.

Deixou o líquido se decompor durante oito dias e notou um cheiro característico de coisas podres. Examinou então uma gota do líquido no microscópio.

Observou uma grande quantidade dos microorganismos que costumam aparecer durante a putrefação, como vibriões e outros infusórios. Além deles, havia uma enorme quantidade de corpúsculos iguais aos dos bichos-da-seda. Eles não haviam se dissolvido ou apodrecido. Pelo contrário: eles haviam se multiplicado.

Isso mostrava ao mesmo tempo que não eram partes dos bichos-da-seda, e que eram seres vivos autônomos, pois haviam se reproduzido.

Outro teste de Béchamp consistiu em colocar os corpúsculos em uma base forte: a potassa cáustica (KOH). Uma solução de potassa a 10% dissolve quase instantaneamente as células animais, incluindo as do pus e de tecidos cancerosos. Pelo contrário: colocando-se os corpúsculos nessa solução, eles mantêm a mesma forma durante mais de dois dias. Colocando-se todo o corpo de um bicho-da-seda, esmagado, na solução de potassa, o corpo todo se dissolve, exceto os corpúsculos. Isso mostrava que eles tinham uma natureza química muito diferente.

Além disso, Béchamp observou que os corpúsculos tinham certo movimento (eram chamados às vezes de “corpúsculos vibrantes”, por causa disso). Quando eram deixados muito tempo na potassa, o movimento desaparecia. A única interpretação razoável do fenômeno era a de que eles eram vivos e que a potassa os havia matado.

Após a publicação dos trabalhos de Balbiani e Béchamp, Pasteur se retrai. Ele não discute os pontos mais importantes desses trabalhos, mas comenta aspectos secundários.

Critica Béchamp novamente por sua idéia de que os corpúsculos vem de fora dos ovos e não comenta nenhum outro ponto de seu trabalho.

Quanto ao trabalho de Balbiani, Pasteur se mostra mais cordial e não o critica. Ele afirma que sua própria opinião é diferente, mas que irá examinar com cuidado as idéias de Balbiani, “pois elas partem de um observador hábil e porque sobre esse assunto tenho apenas visões preconcebidas”, que ele não podia fundamentar pela observação . No entanto, Pasteur afirma que se as idéias de Balbiani não invalidam e sim reforçam o método prático que ele próprio havia desenvolvido para o cuidado dos bichos-da-seda.

Por fim, Pasteur diz que “enquanto não se demonstrar o modo de geração desses corpúsculos, a idéia de que são parasitas ficará sem base”. No entanto, Béchamp já havia mostrado claramente que eles se reproduziam fora do corpo dos bichos-da-seda.

Outro naturalista, N. Joly, defende Pasteur e se volta contra Béchamp, afirmando que os corpúsculos são uma produção do organismo e que a causa da doença é constitucional. Joly indica que Béchamp precisaria apresentar uma prova diferente de que os corpúsculos são a causa e não efeito da enfermidade: precisaria produzir a doença em animais sadios, pelos corpúsculos.

Para admitir aqui a teoria do parasitismo, seriam necessárias, em minha opinião, provas mais conclusivas do que as que são dadas pelo senhor Béchamp. Eu gostaria, por exemplo, que ele inoculasse o corpúsculo vibrante em uma lagarta reconhecidamente sadia e que ele produzisse, de modo indubitável, a pebrina, assim como se faz nascer a muscardina inoculando a Botrytis bassiana.

Béchamp procura estudar o processo de reprodução dos corpúsculos. Em março de 1867, ele publicou o resumo de um trabalho em que mostrava que esses corpúsculos se dividiam por cissiparidade, como vários outros microorganismos. No mês de abril, Béchamp apresenta à Academia de Ciências de Paris um trabalho mais desenvolvido sobre o mesmo assunto, com desenhos que mostram o crescimento, mudança de forma e divisão dos corpúsculos. Essa era a prova exigida por Pasteur para aceitar que os corpúsculos são parasitas, como vimos antes.

Nesse mesmo dia, Pasteur apresenta também à Academia um pequeno trabalho em que anuncia ter mudado de opinião e aceitar agora que os corpúsculos eram parasitas. No entanto, o motivo da mudança de opinião de Pasteur não foi o trabalho de Béchamp. Pelo contrário: Pasteur nem cita o nome de Béchamp, mas anuncia que ele próprio, Pasteur, acaba de descobrir que os corpúsculos se dividem por cissiparidade no estômago dos bichos-da-seda.

Na verdade, o trabalho de Pasteur era pouco conclusivo. Suas observações foram criticas por Balbiani. Mas, mesmo se suas observações tivessem sido perfeitas, a descoberta de que os corpúsculos se dividem dentro do estômago dos bichos-da-seda não provava que eram seres vivos independentes, nem que eram vegetais, nem que eram a causa da doença. No entanto, a partir desse momento, Pasteur considerou que havia provado rigorosamente que os corpúsculos eram parasitas e que eram a causa da pebrina.

Nem neste trabalho, nem em qualquer outro posterior, Pasteur admitiu que Béchamp havia defendido antes dele, com excelentes argumentos e observações, a natureza parasitária dos corpúsculos do bicho-da-seda.

Béchamp protestou, enviando uma carta à Academia de Ciências de Paris, na qual indicava toda a sucessão de trabalhos dele próprio e de Pasteur, mostrando de forma clara que ele e não Pasteur havia estabelecido a causa da pebrina. De nada adiantou. Dada a grande influência de Pasteur na época, o trabalho de Béchamp foi esquecido. E perpetuou-se, até hoje, a falsa história de que Pasteur, estudando os bichos-da-seda, fundou a teoria microbiana das enfermidades.

Sob o ponto de vista sociológico, este episódio que estudamos aqui é uma triste amostra de como, muitas vezes, os pesquisadores estão mais interessados em si próprios do que na verdade. Os cientistas não são anjos.

São seres dotados de vaidade, de agressividade, capazes de ocultar a verdade, de mentir, de utilizar estratégias pouco dignas para vencer os adversários e sobressair socialmente.

Sob o ponto de vista científico, por outro lado, a descrição desse episódio permite também tirar algumas lições. Vimos como foi difícil estabelecer que a doença dos bichos-da-seda era causada por microorganismos.

Por um lado, não basta observar o corpo do animal e ver dentro dele certos corpúsculos para concluir que esses corpúsculos são microorganismos que causam a enfermidade.

É preciso primeiro reconhecer que esses corpúsculos são vivos; verificar se eles podem viver fora do organismo doente e se reproduzir; se possível, identificar o seu tipo; e estabelecer a relação entre eles e a doença.

No caso estudado, desde o início ninguém tinha dúvidas de que os corpúsculos eram ou causa, ou efeito da doença. Mas, em princípio, poderia se tratar de outra coisa: os corpúsculos poderiam ser microorganismos que invadissem os bichos-da-seda quando eles estivessem debilitados pela enfermidade, ao invés de serem a própria causa da doença. Por isso, ainda teria sido necessário que Béchamp e Pasteur tivessem aprofundado suas investigações, para esclarecer pontos como este.

DAVAINE E O ANTRAZ: O ESTUDO DE MICROORGANISMOS NA DÉCADA DE 1860

Na década de 1860, ao mesmo tempo em que ocorreram os estudos de Lister sobre a infecção das feridas e os de Pasteur e Béchamp sobre os bichos-da-seda, muitos outros pesquisadores se dedicaram à pesquisa de microorganismos e sua relação com doenças.

Como já vimos, Davaine havia estudado, juntamente com Rayer, o antraz ou carbúnculo dos carneiros. Eles havia observado a presença de certos microorganismos no sangue dos animais mortos. No entanto, na época em que fizeram esses estudos, eles próprios não deram grande importância à descoberta. Em 1863, Davaine retoma os estudos sobre o antraz.

Durante o trabalho anterior, havia sido observado que o sangue dos animais que haviam morrido pelo antraz mostrava-se cheio de coágulos e com a presença de certos bastonetes (bactérias). No entanto, esse sangue só era observado quando o animal já tinha morrido. Havia a possibilidade de que fosse apenas um produto da deterioração ou putrefação do sangue.

Nos novos estudos, Davaine observou que era capaz de transmitir o antraz a vários animais diferentes, com injeção de uma pequena quantidade do sangue de animais doentes. Inoculou cavalos, bois e coelhos, que morriam depois de três ou quatro dias com os mesmos sintomas dos carneiros e apresentando sempre o sangue cheio de coágulos e com os mesmos bastonetes. No entanto, inicialmente os bastonetes só eram observados quando o animal morria.

Davaine fez testes de transmissões sucessivas da doença em coelhos: quando um deles morria, utilizava seu sangue para produzir a doença em um outro, e assim sucessivamente. O resultado era sempre idêntico.

Estudando o sangue dos animais inoculados, dia após dia, Davaine observou que havia um período no qual não se observava nenhuma bactéria; no entanto, no terceiro dia, elas começavam a aparecer e seu número aumentava muito, antes que surgisse qualquer sintoma da doença. Logo depois, o animal se mostrava doente e morria em poucas horas.

Durante esse período inicial de “incubação” da doença (termo usado por Davaine), o sangue não transmitia a doença. Quando os bacilos se tornavam visíveis, o sangue passava a transmitir a doença.

Davaine concluiu que as bactérias eram a causa do antraz, pois surgiam no sangue antes de qualquer outro sinal da doença e porque apenas quando elas estavam presentes era possível transmitir a doença por inoculação do sangue.

Surgiram, no entanto, objeções ao trabalho de Davaine. Poderia ter ocorrido que o sangue contivesse alguma substância (um veneno) capaz de produzir a doença; enquanto esse veneno estivesse começando a atuar no organismo, o sangue ainda seria incapaz de transmitir a doença; depois, quando o organismo já estivesse doente, o sangue se tornaria carregado de veneno, pela sua deterioração e putrefação; ao mesmo tempo, surgiriam as bactérias, que seriam um dos sintomas e não a causa da doença.

No ano seguinte (1864), Davaine publica novo trabalho. Durante esse período, ele inoculou 150 animais, sempre com resultados idênticos.

Observou que guardando durante algum tempo o sangue de coelhos mortos pelo carbúnculo e permitindo que o sangue apodrecesse, as bactérias eram destruídas. Tomando esse sangue apodrecido, Davaine injetou pequenas quantidades em coelhos sadios. Eles não adquiriram o carbúnculo e não surgiam bactérias no seu sangue.

Quando a quantidade de sangue podre era grande, os coelhos inoculados morriam, mas com sintomas diferentes dos observados no antraz. Colhendo sangue desses coelhos, logo antes de sua morte, Davaine observou que ele não transmitia a doença a outros coelhos.

Davaine concluiu que o antraz não tinha relação com o apodrecimento do sangue e que não era um veneno. A putrefação produzia algum tipo de substância tóxica ou venenosa, mas que não se transmitia por inoculações sucessivas. O carbúnculo, pelo contrário, sempre se reproduzia nas sucessivas inoculações, comportando-se como um ser vivo.

Neste trabalho, Davaine utiliza a palavra “vírus” para designar a causa do antraz ou carbúnculo. Até essa época, como vimos, essa palavra era aplicada indiscriminadamente a uma grande variedade de influências mórbidas ou venenosas, incluindo o veneno das serpentes. No entanto, a partir desse momento começou a surgir uma diferenciação entre venenos propriamente ditos (que não se reproduzem e propagam de um doente para outro) e os vírus (que se propagam sucessivamente, como no caso da varíola).

É claro que as bactérias de Davaine não eram vírus no sentido atual da palavra. Mas este foi um dos passos pelos quais se chegou à conceituação atual.

Outra importante linha de investigações foi desenvolvida na mesma época por François Jules Lemaire. Como Pasteur e Béchamp, Lemaire era um químico e não médico ou biólogo. No início da década de 1860 ele se dedicava ao estudo de substâncias antissépticas. Observou que a benzina, o ácido fênico e o alcatrão eram capazes de interromper a fermentação e a putrefação orgânica.

Estudou especialmente as propriedades do ácido fênico, mostrando que ele servia para destruir os infusórios. Utilizou essa substância na conservação de peças anatômicas e de animais. Em 1861, mostrou que o ácido fênico diluído a 1% e adicionado ao ácido acético curava a sarna, matando o ácaro que produz essa afecção.

Do estudo dessas substâncias químicas, Lemaire foi levado à investigação dos microorganismos que produziam a fermentação e putrefação. Existia a crença de que esses seres podiam se espalhar pelo ar, mas os estudos realizados nessa época não eram totalmente conclusivos. Lemaire desenvolveu um novo método para capturar microorganismos do ar. Ele colocava gelo dentro de um balão de vidro fechado. O balão, colocado na atmosfera, produzia a condensação de vapor d’água em sua superfície e, juntamente com o vapor, eram coletados os microorganismos do ambiente.

Lemaire recolhia o líquido e depois o estudava ao microscópio.

Durante as fermentações e putrefações há desprendimento de gases da substâncias em transformação. Em 1864, Lemaire estudou pelo processo acima indicado o ar acima de materiais em fermentação e putrefação e observou que, juntamente com os gases, desprendem-se dessas substâncias os seres microscópicos que produzem esses processos. Imaginou então que os miasmas não eram simplesmente odores, mas microorganismos que acompanhavam os cheiros fétidos de substâncias em decomposição. No mesmo ano, Lemaire estudou um fungo microscópico (o Achorion schoenleinii, já estudado antes por Bazin) que produz uma micose no homem. Bazin já havia sugerido que esse microorganismo poderia se espalhar pelo ar. Lemaire estudou um menino que tinha essa afecção no couro cabeludo.

Produzindo uma leve corrente de ar da cabeça do menino em direção a um balão de vidro com gelo, a 50 cm de distância, ele verificou que a umidade condensada em torno do balão continha esporos de Achorion.

Esta foi a primeira vez que se detectou no ar a presença de seres vivos capazes de reproduzir uma doença.

Lemaire realizou vários estudos utilizando sua técnica de coleta de microorganismos do ar. Em 1866, pesquisou o ar exalado na respiração de pessoas saudáveis. Para isso, investigou o ar dos quartos de uma instalação militar. Os soldados dormiam em quartos coletivos, com portas e janelas fechadas. Deitavam-se às 9 horas da noite. Durante dez dias, entre as 4 e 5 horas da manhã, antes que eles se levantassem, Lemaire coletava a umidade do ar dos alojamentos, para estudo.

Os soldados eram todos saudáveis, jovens e se alimentavam bem. O pesquisador conta que, ao entrar nos quartos, sentia um forte odor desagradável, “sui generis”. Um dos quartos tinha 24 leitos, dos quais 20 estavam ocupados. Outro tinha 38 leitos, com apenas 17 ocupados. Nos dois, Lemaire coletava uma certa quantidade de líquido condensado do ar. Esse líquido tinha o mesmo odor desagradável do quarto.

Observando depois esse líquido ao microscópio, observou a presença de vários corpúsculos cilíndricos, esféricos e ovóides, que se multiplicavam rapidamente, nas horas seguintes.

Identificou várias bactérias conhecidas, nesse material. A única diferença observada entre os dois quartos foi que o segundo, que tinha menor número de leitos ocupados, apresentava menor número de microorganismos.

Para comparação, Lemaire coletou também, no mesmo horário, o ar exterior, à mesma altura dos quartos. A água coletada era pura, sem aparentar microorganismos. Guardando-a em recipiente fechado, Lemaire só conseguia perceber microorganismos nela depois de 48 horas, e não eram encontradas algumas das bactérias encontradas no ar dos quartos.

Lemaire concluiu que a própria respiração de pessoas saudáveis produz um miasma, que poderia ser daninho a pessoas fracas. O estudo mostrava também a importância da ventilação dos quartos, à noite.

De certa forma, Lemaire estava se encaminhando na direção de nossos conceitos atuais, mas várias de suas idéias eram diferentes das que aceitamos. Talvez por não ser um biólogo, ele não dava muita importância às diferenças entre os microorganismos que observava. Por não ser médico, também não percebia grande diferença entre as doenças. Em 1868, ele sugeriu que a peste, a febre amarela, a febre intermitente (malária), o tifo, o cólera e várias outras doenças transmissíveis fossem todas de natureza idêntica, mostrando sintomas diferentes apenas por causa de distinções entre os indivíduos afetados, suas alimentações, etc. Ele considerou que todas essas doenças eram de natureza parasitária, produzidas por infusórios, pois haviam sido encontrados vibriões no sangue de pacientes com todas essas enfermidades.

A teoria de Lemaire era uma modernização da teoria dos miasmas não específicos. Ele supôs que tanto as matérias em putrefação como os próprios homens e animais saudáveis, produzem continuamente miasmas, com o desprendimento de vegetais e animais microscópicos no ar. Esses microorganismos podem entrar em pessoas através de vários caminhos (pela respiração, pela pele, pela ingestão de alimentos) e produzir em seu interior um estado de fermentação e putrefação que causa as doenças.

Lemaire afirma que as emanações gasosas de qualquer tipo de material orgânico podre são capazes de produzir doenças graves e a morte de animais sadios.

O mesmo resultado é obtido pela introdução de material em putrefação no animal através de inoculação subcutânea, injeção nas veias e introdução no tubo digestivo.

Matando-se os microorganismos do material em putrefação pelo ácido fênico, ele já não produzia mais esses efeitos.

Começou também a surgir nessa época a idéia de que as pessoas poderiam se proteger contra as doenças ingerindo desinfetantes e antissépticos. Do creosoto e do alcatrão, que tinham poder antisséptico, fizeram-se o “rum creosotado” e o “conhaque de alcatrão”, que foram muito populares no Brasil até meados do século XX.

Lemaire encontrava microorganismos por toda parte. Observou bactérias e vibriões no sangue de doentes com tifo, varíola, antraz, gangrena e outras doenças.

Quando ele próprio teve cólera, coletou seus próprios dejetos e depois os observou ao microscópio, observando grande variedade de microorganismos diferentes. Em estado sadio, observou seu próprio corpo em diferentes situações, sempre à procura desses seres microscópicos. Produzindo em si mesmo uma transpiração abundante, coletou o suor e nele encontrou várias bactérias.

Estudou a saliva de sua própria boca, depois de 8 dias sem qualquer higiene, e nela encontrou uma multidão de microorganismos. Estudou uma camiseta de flanela que usou durante quatro dias: ao umidecê-la e espremer o líquido também encontrou nele diversos seres microscópicos.

Lemaire, como outras pessoas da época, aderiu de forma pouco cuidadosa à idéia de que os microorganismos podem transmitir doenças. Durante a década de 1860, houve uma explosão de “descobertas” de seres microscópicos que causavam todas as doenças conhecidas. Em 1867, V. Poulet observou infusórios no ar expirado por crianças com coqueluche: observou bactérias e bacilos e supôs que eles eram a causa da doença, que parecia ser contagiosa. Mas seu estudo se reduziu a isso.

Nessa fase, os microorganismos não eram isolados, cultivados, nem se testava se eles realmente transmitiam a doença. Poucos foram os casos em que houve sequer uma identificação cuidadosa desses microorganismos.

As descrições de diferentes observadores eram em geral contraditórias.

O botânico Hallier, de Jena, utilizava um método simples de estudo. Examinava-se ao microscópio as secreções dos doentes, depois elas eram semeadas em qualquer meio de cultura e o mofo que surgia era declarado causa da doença. Alegou descobrir a causa do cólera, da febre tifóide, do tifo exantemático, da varíola, etc.

Seus trabalhos foram atacados por De Bary, especialista em plantas inferiores, que mostrou que os mesmos mofos surgiam também espontaneamente pelo meio de cultura em contato com o ar, e que não se repetiam sempre os mesmos efeitos quando o teste de Hallier era repetido. Trabalhos como o de Hallier trouxeram descrédito desse tipo de explicação.

Havia boas excessões. O estudo de afecções externas produzidas por fungos – como as micoses – conseguiu se desenvolver de modo bastante satisfatório. Em 1867, Robert Wreden estudou doenças do ouvido humano, encontrando em alguns casos os fungos Aspergillus flavescens e Aspergillus nigricans. Coletou esses fungos e observou que conseguia cultivá-los em uma laranja.

Testou sobre os fungos cultivados a ação de várias substâncias, para verificar de que modo era possível destruí-los.

Verificou que o hipoclorito de cálcio diluído e o arsenito de potássio tinham grande poder contra esses fungos, enquanto que outras substâncias recomendadas na época, como o álcool, não destruiam os fungos.

Wreden estudou também como esses fungos se espalhavam pelo ar. Em um hospício, observou a ocorrência desses fungos em pessoas que ocupavam uma sala que tinha uma parede mofada.

Apenas quando a parede foi lavada com solução de hipoclorito de cálcio, destruindo o mofo, foi possível curar de modo definitivo as pessoas.

Nesse período, o estudo mais completo e cuidadoso de microorganismos associados a doenças foi, sem dúvidas, o de Davaine. Após as investigações que já havia realizado sobre o antraz, ele continuou suas pesquisas, aprofundando-as e respondendo a novas objeções. Apesar de todos os testes que havia feito antes, permanecia a dúvida sobre se eram realmente as bactérias que produziam o antraz, ou se alguma outra substância do sangue poderia ser a verdadeira causa da doença. Davaine injetou sangue de um coelho doente em uma fêmea, no final da gravidez. A coelha ficou doente e morreu, mas o feto não mostrava sinais da doença e não foram encontradas as bactérias em seu sangue. É o próprio sangue da mãe que alimenta e permite a oxigenação do feto.

Davaine percebeu que esse sangue era filtrado pela placenta, não havendo passagem das bactérias.

Isso era uma forte indicação de que a doença era realmente causada por elas e não por alguma substância dissolvida no sangue.

Davaine conseguiu depois reproduzir esse mesmo tipo de fenômeno artificialmente. Para isso, filtrou o sangue de um animal doente em um filtro de porcelana; verificou que o material retido no filtro, que continha as bactérias, transmite a doença; o líquido que atravessa o filtro e que não contém os corpúsculos não transmite o antraz. Era difícil objetar a esses novos experimentos.

Em 1869, Davaine desenvolveu, com o auxílio de A. Raimbert, um estudo sobre a transmissão do antraz. Embora essa doença fosse, na época, mais comum entre os animais, havia uma doença humana semelhante, chamada às vezes de “pústula maligna”. Os trabalhadores dos matadouros e curtumes eram às vezes acometidos por essa doença mortal e diziam que ela lhes era transmitida pelas moscas.

Raimbert estudou os vários tipos de moscas que infestavam esses locais.

Algumas delas se alimentavam de sangue, e ele imaginou que podiam ser realmente o veículo de transmissão da doença. Fez experimentos em que colocou sangue de animais doentes de antraz em um recipiente, verificando que esse tipo de mosca se alimentava do sangue. Estudou depois as moscas ao microscópio, verificando que fora de seu corpo e no seu interior havia bactérias do antraz.

Esmagando diferentes partes do corpo das moscas, fez experimentos de inoculação em cobaias, que morreram de antraz.

Isso mostrava que as bactérias ingeridas pelas moscas mantinham o seu poder e não haviam morrido. O estudo não mostrou, no entanto, que a picada das moscas realmente transmitisse a doença, nem que esse fosse o modo pelo qual a doença era de fato transmitida.

No mesmo ano, Davaine publicou um trabalho comparando os efeitos de injeções de substâncias podres com injeções de sangue com antraz. Anteriormente, ele havia concluído que, no caso de substâncias podres, havia simplesmente um veneno, que não se reproduzia no organismo. No entanto, prosseguindo seus estudos, ele se convenceu de que os microorganismos que produziam a putrefação de substâncias orgânicas eram a causa da morte por septicemia. Em seus experimentos, tomou o sangue contido no coração de um boi sadio, guardou-o durante dois dias e, quando observou que estava apodrecendo, injetou-o em cobaias. Elas morreram depois de poucos dias, e no seu sangue Davaine observou a presença de muitas bactérias diferentes da do antraz: eram filamentos móveis, do tipo chamado de “vibrião”, enquanto as bactérias do antraz eram imóveis.

Tomando o sangue das cobaias mortas, Davaine o injetou em novas cobaias e observou que era possível transmitir sucessivamente a septicemia. No caso do antraz, uma gota de sangue era suficiente para transmitir a doença; no caso da septicemia, era necessária uma quantidade maior, mas a doença também era transmitida.

Note-se como a pesquisa de Davaine era cuidadosa. Ele procurava investigar todos os aspectos, fazer comparações, identificar os agentes das doenças, fazer sucessivas transmissões a animais sadios, etc.

Nesse período, pode-se dizer que seu trabalho foi exemplar.

Apesar de todos esses cuidados, o trabalho de Davaine não foi suficiente para convencer os mais céticos. Um deles foi o influente pesquisador Claude Bernard (1813-1878).

Bernard aceitava que diferentes microorganismos podem existir e atacar o homem, mas que o ponto essencial é o estado interno do organismo, e por isso esses agentes podem estar presentes sem produzir efeito.

Afirmava que os vírus se desenvolvem muitas vezes no organismo e por isso podem ser considerados mais como produtos da doença do que suas causas.

Acreditava que as bactérias do antraz podem se desenvolver espontaneamente no organismo (sem infecção externa), embora a doença possa também ser transmitida de um animal doente para outros.

De certa forma, as dúvidas de Bernard não eram razoáveis, dado o volume de evidências apresentadas por Davaine. No entanto, havia uma grande mistura de bons trabalhos com pesquisas fracas e duvidosas, na época. Era difícil perceber a diferença entre eles. Quais eram, afinal, os critérios que poderiam discriminar entre uma investigação completa, conclusiva, e uma investigação incompleta?

Isso não estava nem um pouco claro. Foi graças ao trabalho de Koch, na década seguinte, que foram estabelecidos esses critérios.

A INFECÇÃO DE CORTES E FERIDAS E O MÉTODO ANTI-SÉPTICO DE LISTER

À medida que se desenvolvia o conhecimento dos microorganismos e de suas relações com enfermidades, esses conhecimentos eram também aplicados à prática médica.

Costuma-se considerar que um dos primeiros resultados médicos desses desenvolvimentos foi o trabalho de Joseph Lister (1827-1912) de prevenção de infecção de ferimentos.

Lister era um cirurgião, que estava estudando as complicações que ocorriam no tratamento de fraturas expostas. Quando uma pessoa se feria e fraturava um braço ou uma perna, o tratamento era relativamente simples e satisfatório sempre que o dano era apenas interno. No entanto, quando o acidente produzia uma ferida externa (fratura exposta), surgiam infecções que eram, geralmente, mortais.

Quando era necessário amputar um membro, era quase certa a morte do paciente, pelo mesmo motivo.

Em seu primeiro trabalho, publicado em 1867, Lister descreve as ocorrências comuns nesses casos: parecia que o sangue se alterava, ocorrendo uma putrefação no local da ferida.

Vinte e quatro horas depois do acidente que ocasionou a fratura, sai da ferida um líquido ou soro que tem um odor de matéria em decomposição.

Esse odor se torna cada vez mais fétido durante os dois ou três dias seguintes, antes do estabelecimento da supuração, ou seja, do surgimento de pus. A infecção muitas vezes se espalhava pelo organismo todo, levando à morte.

É claro que desde a Antigüidade as infecções em feridas eram um importante problema médico. Hipócrates recomendava secar as feridas, pois “o estado seco é mais próximo do estado sadio, e o úmido mais próximo do estado de doença.” Ele recomendava utilizar em feridas recentes o vinagre ou vinho, com substâncias adstringentes (como o alúmen).

Celsus adicionou às receitas de Hipócrates o uso de óleo, mel e ervas como folhas de oliveira ou aloés. Galeno recomendava o uso de vinho, alúmen, água de cal, decocção de plantas adstringentes e vitríolo (sulfato de cobre) em úlceras malignas com putrefação. No período medieval, o médico árabe Rhazes obteve álcool pela destilação do vinho e o utilizou nas feridas. Albucasis recomendava o uso de cal viva.

Utilizava-se também, na Idade Média, a cauterização de feridas com ferro em brasa ou com óleo fervente. Mas a cauterização e o uso de cáusticos (como a cal viva) foram praticamente abandonadas no século XVII, restando apenas as práticas mais suaves e tradicionais.

Sob o ponto de vista dos conhecimentos atuais, sabemos que várias das substâncias utilizadas eram benéficas para o tratamento de feridas, destruindo ou dificultando a multiplicação de microorganismos e evitando desse modo as infecções. Os tratamentos eram empíricos, mas bastante eficientes.

No início do século XIX, o tratamento de feridas com as substâncias tradicionais também foi abandonado. Como não se compreendia a natureza da infecção, nem havia explicação para os tratamentos utilizados, tudo foi tentado. Alguns autores ingleses recomendavam utilizar-se apenas água nas feridas. Outros, como Broussais, utilizavam óleo e farinha de linhaça. Com as tentativas de inovar, certamente os resultados eram piores do que os antigos. Como resultado, as práticas cirúrgicas do século XIX tornaram-se mais perigosas do que anteriormente.

Lister conta que ocorriam muitos casos de piemia, erisipela e podridão de hospital entre os internados. Na sala de que Lister cuidava, essas “doenças hospitalares” apareciam principalmente quando a sala estava cheia de pessoas com lesões abertas. Quando havia fraturas sem lesão externa, ocorria uma diminuição dessas enfermidades.

“Isso me pareceu ser uma prova evidente de que as emanações derivadas de escoamentos pútridos, distintas das que resultam da simples acumulação de seres humanos, formam a grande causa de insalubridade de um hospital cirúrgico.” A situação enfrentada por Lister tinha certa semelhança com a febre puerperal estudada por Semmelweis. No entanto, ao invés de supor que a doença podia passar de uma pessoa para outra, ele imaginou que o problema estava no ar.

Lister se convenceu de que “a causa essencial da supuração nas feridas é a decomposição produzida pela influência da atmosfera no sangue ou serum retido nela, ou em porções de tecido destruídas pelo dano”.

Havia uma antiga crença de que o ar era prejudicial para a cura de feridas. Arnaldo de Villanova, Paracelso e outros médicos do período medieval e do renascimento afirmavam que era preciso proteger as feridas e cortes cirúrgicos do ar. No século XVI, Joseph du Chesne recomendava lavar as feridas com água, tratando-as também com vinagre e óleo. Justificava esse uso dizendo que o vinagre serve para proteger alimentos contra o mofo e a putrefação, tendo igual papel nas feridas; e que o óleo impedia que o ar entrasse na ferida, protegendo-a da corrupção. Na mesma época, Ambroise Paré indica a importância de costurar as grandes feridas, unindo suas bordas, para “proteger da alteração do ar, que prejudica as feridas”. Em torno de 1600, havia um consenso dos médicos, que acreditavam que o ar produzia complicações e gangrena; mas ninguém sabia o motivo disso.

Lister se pergunta como a atmosfera pode levar à decomposição das substâncias. Ele estava razoavelmente informado sobre as pesquisas recentes.

Sabia que não é o oxigênio que produz esse efeito e sim certas partículas que flutuam no ar, que são os germes de seres inferiores visíveis ao microscópio. Lister associou os estudos de Pasteur às infecções, imaginando que os germes da atmosfera penetravam nas feridas e lá se multiplicavam e produziam a alteração do sangue, a putrefação, o cheiro e o pus.

O hospital de Lister ficava ao lado de um campo onde, pouco antes, haviam sido enterrados cadáveres de coléricos.

Lister supôs que as complicações graves das feridas dependiam dos germes provenientes do cemitério, que poderiam ser transportados pelo ar. Elas ocasionariam uma putrefação, cujos produtos envenenariam o organismo.

Na verdade, as idéias de Lister estavam próximas das de Lemaire, de um miasma não específico associado a microorganismos produzidos pela putrefação. Mas Lister não cita os trabalhos de Lemaire.

Poderíamos imaginar que o passo seguinte deveria ser o estudo microscópico do líquido que surgia nas feridas, para verificar se continha microorganismos.

Esse seria o procedimento natural de um pesquisador que estivesse investigando a causa da infecção. Mas não foi isso que Lister fez. Ele não era um microscopista e sim um cirurgião. Seu interesse era prático e não teórico. Ele não procurou testar diretamente essa hipótese. Lister a aceitou e partiu da idéia dos germes do ar para desenvolver um método adequado para evitar as infecções.

Partindo de sua hipótese, Lister procurou um modo de tratar das feridas com uma substância capaz de matar esses germes e impedir a putrefação. A substância não poderia ter uma ação cáustica muito violenta, pois iria ser aplicada em uma ferida aberta.

Nas décadas anterior, haviam sido feitos vários estudos sobre substâncias antissépticas (ou seja, que impedem ou dificultam a putrefação).

Fazia-se testes colocando carne ou outros materiais animais e vegetais em diferentes líquidos e comparando-os para verificar o surgimento da decomposição do material.

Estudou-se o vinho, álcool, óleo de terebentina, sal amoníaco, salitre, bórax, alúmen, aloés, mirra e outras substâncias. Magendie e Duroy observaram o grande poder da tintura de iodo na conservação de carne, sangue e outros materiais. Angus Smith testou vários gases, observando o poder antisséptico do cloro, bromo, iodo, ácido clorídrigo, ácido sulfuroso e éter. Todas essas pesquisas observavam a putrefação, mas não estudavam seus aspectos microscópicos. Autores posteriores testaram o efeito de substâncias sobre os próprios microorganismos.

Lister escolheu a substância antisséptica mais poderosa que conhecia e que não produzia muita irritação nos tecidos vivos: o ácido fênico ou carbólico, que havia sido estudado por Lemaire.

Ele próprio já havia recomendado essa substância para evitar a gangrena. No entanto, novamente, Lister parece ter escolhido esse antisséptico sem conhecer os estudos daquele pesquisador, pois afirma:

Durante o decorrer do ano de 1864 fui impressionado pela leitura de um relatório sobre os efeitos notáveis do ácido fênico sobre as águas de esgoto da cidade de Carlisle.

A adição de uma quantidade muito pequena de ácido fênico a essas águas retirava todo odor fétido às águas de irrigação, e até destruia os entozoários que infestavam ordinariamente os animais que se alimentavam nessas pastagens.

Pareceu-lhe que um antiséptico tão poderoso poderia ser conveniente para experimentos sobre o assunto. Resolveu assim aplicar ácido fênico em fraturas complicadas. A primeira tentativa, realizada na Enfermaria Real de Glasgow, em março de 1865, foi um insucesso: a ferida se infeccionou e o paciente morreu.

As tentativas seguintes foram bem sucedidas

O procedimento inicialmente utilizado por Lister consistia em embeber um pano em ácido fênico puro (ácido cristalizado, diluído em pouca água), que era introduzido com uma pinça na ferida.

Lister colocava sobre a ferida um pequeno pedaço de tecido também embebido em ácido fênico, e recobria tudo com uma tampa de em metal maleável (estanho), para evitar a evaporação do ácido e reduzir o contato com o ar. Em feridas grandes, usou uma pasta feita de gesso, ácido fênico e óleo de linhaça (uma parte de ácido para três de óleo).

Depois que Lister começou a usar o método antisséptico, não ocorreu mais nenhum caso de piemia em 36 fraturas abertas tratadas. Antes da introdução do método antisséptico, nos anos de 1864 e 1866, houve respectivamente 17 e 18 amputações, com 10 e 9 curas, havendo 7 e 9 mortes (a metade dos casos, quase). Durante o período antisséptico, os resultados foram muito melhores. Em 1867, houve 7 amputações, todas bem sucedidas; em 1868, 17 amputações, com 3 mortes; em 1869, 16 amputações, com 3 mortes.

As feridas assim tratadas não se infeccionavam, mas o método não era adequado. O ácido puro utilizado por Lister produzia grande irritação dos tecidos, dificultando a cicatrização. Aos poucos, ele foi alterando o procedimento e utilizando o ácido mais diluído. Em períodos posteriores, fixou-se na concentração de uma parte do ácido para 40 partes de água.

Em 1871, o procedimento utilizado já era bastante diferente. As feridas eram lavadas com água clorada, solução de ácido sulfuroso, ácido fênico ou cloreto de alumínio.

Colocava-se sobre o ferimento uma gaze antisséptica, desenvolvida por ele, impregnada por ácido fênico e recoberta por uma fina camada de resina, que diminuía o efeito irritante do ácido. Por cima da gaze, ele colocava um tecido impermeabilizado com borracha, para evitar todo contato com o ar.

No caso de cirurgias, as mãos, instrumentos e objetos utilizados eram todos desinfetados com ácido fênico na concentração de 1/40 ou 1/20. Além disso, durante todo o tempo da cirurgia, era feita uma pulverização de ácido fênico diluído sobre o local da operação. O objetivo era formar uma “atmosfera antisséptica” capaz de destruir todos os germes do ar, para que eles não pudessem infectar o corte cirúrgico. Inicialmente, eram utilizadas pequenas bombas pulverizadoras manuais. Mas Lister considerava tão importante essa “atmosfera antisséptica”, que desenvolveu um novo tipo de pulverisador automático, a vapor, capaz de produzir uma nuvem contínua de ácido fênico sobre o local da cirurgia.

O método de Lister foi adotado em outros locais, com sucesso. Em München, no ano de 1874, a gangrena havia atingido 80% de todas as feridas, fossem acidentais ou cirúrgicas, tratadas no hospital. No início de 1875, foi introduzido o método antisséptico, e não houve mais casos de gangrena. A piemia desapareceu, a erisipela era rara e, quando existia, era leve.

Apesar da boa repercussão inicial, o trabalho de Lister logo foi criticado.

O professor Léon le Fort rejeitou, em 1882, as idéias de Lister. Ele notou que muitos cirurgiões que não protegiam as feridas do ar tinham tanto sucesso quanto Lister. Em Zurich, o cirurgião Rose salvava 83% dos amputados, usando curativos abertos. Portanto, a tampa protetora de metal ou borracha utilizada por Lister parecia desnecessária.

Ao invés de acreditar na infecção pelo ar, Le Fort supõe que poderia ocorrer um contágio, pelos instrumentos, esponjas de limpeza, mãos e objetos necessários ao curativo. Cuidando-se da limpeza dessas coisas, tornava-se desnecessária a proteção contra o ar.

Deve-se aqui assinalar um aspecto das cirurgias da época que pode nos parecer inacreditável, mas é real. As feridas acidentais, as pústulas, os cortes cirúrgicos e todas as outras afecções externas dos doentes dos hospitais eram lavadas, para se fazer curativos. Para lavar as feridas, utilizava-se uma esponja e uma bacia com água. A mesma bacia, a mesma esponja e a mesma água eram utilizadas para todos os pacientes, passando de cama para cama sem qualquer tipo de desinfecção. Apenas na década de 1860, o médico norte americano William Morton propôs o uso de um dispositivo portátil que permitia lavar as feridas em água corrente. Pode-se perceber que, nessa época, havia problemas muito mais graves nos hospitais do que a transmissão de germes pelo ar.

Quanto à pulverização de ácido durante a cirurgia, ela também foi duramente criticada: parecia ter um papel mínimo, ou ser inútil. Desde que fossem tomados os cuidados de limpeza, as cirurgias eram seguras, sem que fose utilizada a pulverização. Os aparelhos desenvolvidos por Lister eram custosos, além de tornar a cirurgia muito incômoda: tudo ficava molhado, o paciente ficava frio, a visão do local operado ficava mais difícil. A prática de pulverização acabou por desaparecer, mantendo-se a mesma estatística de sucesso.

Embora o ácido fênico parecesse adequado para a desinfecção das mãos e de objetos como as esponjas de limpeza, muitos preferiam a desinfecção dos outros instrumentos pelo fogo ou pelo aquecimento em vapor ou estufas, de acordo com o método desenvolvido a partir de 1880 por Octave Terrillon em Paris e Schimmelbusch em Berlim.

Para uso local nas feridas, o ácido fênico foi em geral substituído por outros antis-sépticos, como a solução de iodo, a água oxigenada, compostos de mercúrio.

O estudo microscópico, ao invés de fortalecer o trabalho de Lister, trouxe uma nova crítica: nos seus curativos eram encontrados todos os tipos de microorganismos.

Aos poucos, todos os aspectos do trabalho de Lister foram sendo criticados – com bons argumentos e total razão. É difícil indicar algo que tenha sido mantido, de sua proposta inicial. A hipótese básica de Lister, fundamentada no trabalho de Pasteur (ou talvez devêssemos dizer: nas pesquisas de Lemaire), era de que a causa das infecções das feridas e cortes cirúrgicos eram germes que vinham do ar.

A experiência mostrou que a grande fonte de germes eram os instrumentos e mãos dos médicos e enfermeiras e por isso as pulverizações e coberturas dos curativos foram abandonados.

Lister acreditou na necessidade de utilizar antissépticos fortíssimos nas feridas e curativos, para impedir sua infecção. Posteriormente, preferiu-se utilizar nas feridas antissépticos mais brandos, e gazes esterilizadas, mas sem antisséptico. O ácido fênico foi abandonado, substituído por outras substâncias. Ao invés de destruir os germes causadores da putrefação (antissepsia), passou-se a adotar medidas que evitavam a presença desses germes (assepsia).

O golpe final contra as propostas de Lister veio, por ironia, do próprio Louis Pasteur, que sempre divulgou e deu apoio a Lister. Depois de muitas tentativas, Pasteur conseguiu identificar e isolar o microorganismo causador das infecções mais graves – da septicemia. Descobriu então que se tratava de um vibrião anaeróbico – ou seja, que vive e se reproduz sem contato com o ar, sendo destruído pelo oxigênio. A conclusão imediata dessa descoberta é que os cuidados tomados por Lister para evitar o contato entre o ar e a ferida eram prejudiciais, pois protegiam os vibriões contra o oxigênio que poderia destruí-los.

Não há dúvidas de que, na segunda metade do século XIX, houve uma revolução nos métodos utilizados nos hospitais, levando à prevenção de infecções hospitalares.

Afinal, o que restou do trabalho de Lister? Muito pouco ou talvez nada. Lister foi mais um símbolo de um movimento do que um descobridor da profilaxia da infecção hospitalar. Por sua influência, estimulou outros médicos a estudarem o problema e desenvolverem os métodos que depois se tornaram aceitos por todos.

Por mais que simpatizemos e admiremos a tentativa de Lister, não foi ele quem chegou a uma compreensão das infecções nem quem desenvolveu os métodos preventivos adequados.

Trata-se de um caso muito diferente do de Semmelweis. Este conseguiu desenvolver um método para evitar a propagação da febre puerperal, partindo de estudos bastante cuidadosos e de análises que podemos considerar como corretas. Lister partiu de meras hipóteses e analogias que depois se verificou serem incorretas, e desenvolveu métodos pouco adequados para a prevenção das infecções.

Apesar disso, por fatores difíceis de entender, Lister foi bastante respeitado e homenageado durante sua vida, embora todos abandonassem seus métodos e suas idéias.

Ele é lembrado até hoje como o suposto descobridor da causa e dos métodos de prevenção das infecções cirúrgicas. Semmelweis, pelo contrário, foi atacado e esquecido, embora seus métodos fossem depois, gradualmente, adotados por todos.

CAPÍTULO 11: APERFEIÇOAMENTO E DIFICULDADES DA TEORIA MICROBIANA

AS BACTÉRIAS CAUSADORA DE DOENÇAS E OS POSTULADOS DE KOCH

O avanço científico é gradual e recebe contribuições de muitas pessoas que são desconhecidas pela história. Raramente se pode dizer que um indivíduo isolado foi responsável por algum passo significativo. No entanto, há certo consenso de que Robert Koch (1843-1910) foi a pessoa que mais contribuiu para criar uma bacteriologia científica, no século XIX.

Koch foi um médico que, formando-se em 1866, tornou-se um clínico rural. Em 1871, fixou-se em Wollstein, uma cidade com 2.000 habitantes. No seu tempo vago, Koch realizava estudos em um laboratório que montou em sua própria casa. Ele havia sido aluno de Henle que, como vimos, defendeu na década de 1840 que as doenças contagiosas eram causadas por seres vivos microscópicos. Koch aceitava essa idéia e conhecia os trabalhos que haviam se desenvolvido na década de 1860. Pensava, no entanto, que Pasteur e outros pesquisadores eram muito apressados, tiravam suas conclusões sem o rigor necessário.

Na região em que Koch morava, o antraz era uma enfermidade conhecida. Com um microscópio que comprou, Koch estudou essa enfermidade, repetindo inicialmente alguns passos básicos.

Estudou o sangue de animais doentes mortos e sempre encontrou neles os mesmos bacilos. Estudou o sangue de animais sadios e verificou que nunca encontrava esses bacilos.

Realizou, em seguida, testes de transmissão da enfermidade, com ratos. Fez uma pequena incisão na raiz da cauda dos animais, esfregando um pouco de sangue de antraz na ferida. No dia seguinte, o rato estava morto.

O sangue do animal morto estava cheio de bacilos, que pareciam ter se multiplicado. Koch usou o sangue do primeiro rato aplicando-o em um segundo, com o mesmo resultado. Faz uma série de 30 transmissões sucessivas, para se convencer de que o efeito era sempre o mesmo.

Até aí, o trabalho de Koch nada tinha de novo. No entanto, para poder provar que eram esses bacilos que produziam a doença e não qualquer outra substância ou microorganismo invisível, Koch sentiu a necessidade de isolá-los do organismo animal.

Se aqueles seres eram realmente vivos, devia ser possível fazer com que eles se reproduzissem em uma cultura. Koch testou vários meios de cultura, utilizando as substâncias a seu dispor e refinando os meios de impedir que a cultura fosse contaminada por outros microorganismos.

Acabou por desenvolver uma técnica de manter uma gota líquida entre duas placas de vidro. Colocando um pouco do sangue contaminado nesse material e mantendo a temperatura adequada, Koch foi capaz de observar, ao microscópio, a reprodução dos bacilos.

Após permitir a reprodução dos microorganismos, Koch diluía o líquido e separava uma parte para novo processo de crescimento dos bacilos, de tal forma que as outras substâncias do sangue que estavam presentes inicialmente ficassem cada vez mais diluídas. Apesar disso, o líquido sempre produzia os mesmos efeitos nos ratos: eles morriam e seu sangue se mostrava repleto dos mesmos microorganismos.

O estudo de Koch tinha um aspecto que faltava às pesquisas de Davaine: ele conseguia estudar os microorganismos em um meio de cultura, fora dos animais, conseguia reproduzi-los, isolá-los de outras substâncias ou microorganismos, e provocar a doença com esse material.

Com a adição desse novo passo, Koch desenvolveu um método de estudos que lhe pareceu protegido contra qualquer crítica.

Seria possível afirmar que um microorganismo é a causa de uma doença nas seguintes condições: o mesmo parasita deve encontrar-se em todos os casos da doença; ele não deve ocorrer em qualquer outra enfermidade por acaso, nem como parasita não patogênico; deve ser possível cultivá-lo e isolá-lo inteiramente, mantendo-o em cultura pura; deve ser possível reproduzir com essa cultura a doença em animais de laboratório; ele deve ser obtido novamente a partir do animal inoculado.

Essas regras já haviam sido sugeridas pelo próprio Henle, trinta anos antes. Mas ninguém, antes de Koch, havia sequer tentado completar todos esses passos da pesquisa. Por isso, o estudo do antraz por Koch, publicado em 1876, pode ser considerado como uma revolução no estudo científico das enfermidades produzidas por microorganismos.

Em 1890, Koch apresentou uma conferência, em que fez comentários sobre o surgimento da bacteriologia científica:

A bacteriologia é uma ciência muito jovem – pelo menos no que se refere a nós, os médicos. Cerca de 15 anos atrás, sabia-se sobre esse assunto quase nada além disto: em casos de antraz e febre recorrente, foram encontrados no sangue certos objetos peculiares, estranhos; e os chamados vibriões ocorrem em casos de doenças infecciosas de feridas.

Não havia sido fornecida prova de que esses objetos eram a causa das doenças respectivas e, com a excessão de uns poucos investigadores, que eram considerados como sonhadores, as pessoas os consideravam mais como curiosidades do que como possíveis causas de enfermidade.

A idéia de que os microorganismos podem ser a causa de doenças infecciosas já havia sido expressa muito tempo atrás por alguns poucos homens, mas a maioria não aceitou a sugestão. Pelo contrário, as primeiras descobertas nessa direção foram consideradas por eles com ceticismo.

Portanto era ainda mais essencial oferecer de início uma evidência irrefutável de que os microorganismos encontrados no caso de uma certa doença são realmente sua causa.

Nessa época ainda se fazia corretamente a objeção de que poderia haver apenas uma coincidência acidental entre o microorganismo e a enfermidade e que eles não teriam o papel de parasitas perigosos, mas apenas de [parasitas] inócuos, que encontraram em órgãos doentes as condições de existência necessárias que não lhes eram oferecidas no corpo sadio. Muitas pessoas admitiram, de fato, as propriedades patogênicas das bactérias, mas consideravam possível que elas tivessem se originado de outros microorganismos inócuos, presentes acidentalmente ou regularmente no corpo, tornando-se patogênicos sob a influência do processo da enfermidade.

Essas regras já haviam sido sugeridas pelo próprio Henle, trinta anos antes. Mas ninguém, antes de Koch, havia sequer tentado completar todos esses passos da pesquisa. Por isso, o estudo do antraz por Koch, publicado em 1876, pode ser considerado como uma revolução no estudo científico das enfermidades produzidas por microorganismos.

Em 1890, Koch apresentou uma conferência, em que fez comentários sobre o surgimento da bacteriologia científica:

A bacteriologia é uma ciência muito jovem – pelo menos no que se refere a nós, os médicos. Cerca de 15 anos atrás, sabia-se sobre esse assunto quase nada além disto: em casos de antraz e febre recorrente, foram encontrados no sangue certos objetos peculiares, estranhos; e os chamados vibriões ocorrem em casos de doenças infecciosas de feridas.

Não havia sido fornecida prova de que esses objetos eram a causa das doenças respectivas e, com a excessão de uns poucos investigadores, que eram considerados como sonhadores, as pessoas os consideravam mais como curiosidades do que como possíveis causas de enfermidade.

A idéia de que os microorganismos podem ser a causa de doenças infecciosas já havia sido expressa muito tempo atrás por alguns poucos homens, mas a maioria não aceitou a sugestão. Pelo contrário, as primeiras descobertas nessa direção foram consideradas por eles com ceticismo.

Portanto era ainda mais essencial oferecer de início uma evidência irrefutável de que os microorganismos encontrados no caso de uma certa doença são realmente sua causa.

Nessa época ainda se fazia corretamente a objeção de que poderia haver apenas uma coincidência acidental entre o microorganismo e a enfermidade e que eles não teriam o papel de parasitas perigosos, mas apenas de [parasitas] inócuos, que encontraram em órgãos doentes as condições de existência necessárias que não lhes eram oferecidas no corpo sadio. Muitas pessoas admitiram, de fato, as propriedades patogênicas das bactérias, mas consideravam possível que elas tivessem se originado de outros microorganismos inócuos, presentes acidentalmente ou regularmente no corpo, tornando-se patogênicos sob a influência do processo da enfermidade.

Mas se puder ser provado:

Primeiro, que o parasita é encontrado em cada caso da doença em questão, e sob condições correspondentes às mudanças patológicas e ao caminho clínico da enfermidade;
Segundo
, que não ocorre em outra doença como um parasita acidental e não patogênico;

Terceiro, que quando isolado do corpo e propagado através de um número suficiente de culturas puras, pode produzir novamente a enfermidade, então, nessas circunstâncias, o micróbio não pode ser um acompanhante acidental da doença, e não se pode conceber que o parasita tenha outra relação com a doença, exceto ser sua causa.

Essas regras constituem os “postulados de Koch”, que logo se divulgaram e criaram um novo padrão na pesquisa microbiológica.

O antraz foi a primeira doença para a qual Koch foi capaz de desenvolver a cadeia completa de prova. Havia muitas dificuldades nesse tipo de trabalho.

A primeira era a investigação cuidadosa dos próprios microorganismos, de tal modo a poder identificá-los e diferenciá-los claramente uns dos outros. Isso só foi possível com o avanço da microscopia, com melhores lentes, e com o uso de corantes de diferentes tipos, que permitem observar a estrutura de cada organismo.

Assim, várias bactérias que pareciam iguais foram distinguidas. O próprio Koch deu grande contribuição às técnicas microbiológicas de observação. Ele desenvolveu novos processos de iluminação dos microscópios; introduziu a coloração de bactérias por anilinas; desenvolveu um método de fotografia microscópica e o exame com lente de imersão. É claro que outras pessoas, ao mesmo tempo, deram importantes contribuições, mas Koch ajudou muito no desenvolvimento de técnicas adequadas para observação, descrição e registro dos microorganismos.

Por outro lado, era necessário separar e cultivar os diferentes tipos de microorganismos. O desenvolvimento de culturas puras (sem misturas) era muito difícil. Era preciso fazer muitas tentativas até descobrir o meio (sólido ou líquido) no qual cada tipo de microorganismo se desenvolvia e reproduzia. Koch testava todo tipo de substâncias que conseguia imaginar para o cultivo das bactérias: rodelas de batata, o líquido do interior do olho de um boi, ágar, etc. Descobriu que, utilizando um meio de cultura sólido, formavam-se pequenas colônias separadas, sem mistura, conseguindo então isolar as bactérias que estava estudando.

Mas, além de um estudo cuidadoso dos próprios microorganismos, era sobretudo necessário mostrar que eles eram a causa das enfermidades, pois muitos alegavam que se tratava apenas de um efeito da doença.

Por isso, o último passo – utilizar uma cultura pura e conseguir produzir a enfermidade com ela – era um elemento essencial do método de Koch.

Foram necessários mais dois anos para que Koch conseguisse identificar um outro tipo de microorganismo patogênico: o causador da infecção das feridas (septicemia).

Tentativas anteriores de estudo desse microorganismo haviam falhado pela dificuldade em obter culturas puras. Havia sido até mesmo proposta a idéia de que as bactérias se transformavam em diferentes tipos (polimorfismo). O trabalho de Koch aniquilou essa suposição.

Em 1880, Koch identificou o agente causador de uma das mais importantes doenças da época: a tuberculose.

Durante o século XIX, embora as medidas de higiene tivessem reduzido muito várias doenças, a tuberculose resistia a tudo e desafiava a Medicina. Como vimos, na década de 1860 Pasteur acreditava, como outros, que se tratava de uma enfermidade hereditária. Outros achavam que sua causa era a exposição a um ar insalubre. Um terceiro grupo pensava que era uma doença transmissível.

Desde o século XVIII, houve tentativas de transmitir a tuberculose por inoculação, sem resultado. Em 1843, Klencke induziu tuberculose dos pulmões e fígado em coelhos, por inoculação de material tirado de tubérculos do homem, injetados nas veias do pescoço. Em 1865, Jean-Antoine Villemin (1827-1892) fez importantes estudos, inoculando material tirado de tubérculos de cadáveres humanos em diversos animais. Observou que apenas o macaco, a vaca e o coelho adquiriam a doença.

Conseguiu também transferir a tuberculose de um animal vivo para outro. No entanto, tentativas realizadas por outros pesquisadores produziam efeitos semelhantes injetando em animais outras substâncias.

A situação era confusa.

Uma técnica especial de estudo foi desenvolvida por Julius Cohnheim (1839-1884). Depois de várias tentativas, ele inoculou com material tirado de tubérculos humanos o olho de coelhos vivos. Observou que, depois de um certo tempo de incubação, havia o surgimento de nódulos na íris. Eles cresciam, tornando-se visíveis a olho nu, sem que nenhum outro sinal fosse notado. Depois, a enfermidade se espalha pelo corpo, atingindo as glândulas linfáticas, pulmões, pâncreas, fígado e rins, acabando por produzir a morte do animal. Ao fazer a inoculação com outras substâncias, só ocorria uma irritação temporária. Assim, estabeleceu-se que a tuberculose era transmissível e que era possível diferençiá-la de outros processos semelhantes. Mas não se sabia ainda qual o agente que produzia a doença.

O problema não era apenas descobrir algum microorganismo presente nos doentes: eram descobertos vários diferentes. Era necessário isolá-los, cultivá-los e testá-los, seguindo o método de Koch.

Ele próprio comentou:

Julgando os resultados que foram atingido recentemente sobre a etiologia de muitas doenças infecciosas, pareceu provável que a causa da tuberculose também pudesse ser encontrada em algum microorganismo.

Para chegar a alguma conclusão sobre esse ponto, era obviamente necessário utilizar todos os métodos que se mostraram valiosos na investigação de outras enfermidades infecciosas, e seguir a ordem da pesquisa que em ocasiões anteriores se mostrou melhor adaptada para o fim em vista.

Primeiro, determinar se elementos formados, que não podiam nem pertencer aos constituintes do corpo, nem ter brotado deles, estavam presentes nas partes doentes.

Se a presença de tais elementos estranhos for demonstrada, deve-se em seguida determinar se eles são organizados, e se exibem algum sinal de possuir vida independente. O principal desses [sinais] é o movimento espontâneo, muitas vezes confundido com movimento molecular, o poder de crescimento, aumento e reprodução. Além disso, devem ser trabalhadas as relações dessas formas com seu meio, o comportamento dos elementos dos tecidos vizinhos, a distribuição dessas formas pelo corpo, sua presença em diferentes estágios do processo mórbido, e pontos semelhantes.

Tudo isso tem uma conexão de maior ou menor importância sobre a relação dessas formas à doença considerada. É possível que os fatos assim trazidos à luz forneçam uma prova tão decisiva, que apenas o cético mais extremo ainda manteria que os microorganismos descobertos eram concomitantes à doença e não sua causa. Geralmente, no entanto, podem existir fundamentos para esta objeção.

A prova completa da relação causal exige não apenas uma demonstração da coincidência dos parasitas com a enfermidade, mas, além disso, deve-se mostrar que os parasitas produzem diretamente a doença.

Para obter essa prova, é necessário isolar o parasita completamente do organismo doente, e de todos os produtos da doença às quais se pode atribuir qualquer influência patogênica; então, excitar de novo a enfermidade com todas as suas características especiais pela introdução apenas dos parasitas em um organismo sadio.

As dificuldades, no caso da tuberculose, foram muitas. Os microorganismos que realmente causavam a doença eram muito pequenos, apresentavam-se em pequena quantidade e quase sempre dentro de células do organismo. Nos pulmões dos doentes eram encontrados outros microorganismos maiores e em maior quantidade, que se pensou muitas vezes serem a causa da enfermidade. Foi preciso observar e testar vários deles, o que era especialmente difícil porque a tuberculose é uma doença que se desenvolve lentamente.

Foi preciso desenvolver um corante adequado para tornar visível o microorganismo. E, por fim, esse microorganismo não se desenvolvia nos meios de cultura testados, até que Koch experimentou, em 1882, o uso do soro de sangue, esterilizado e endurecido. Só então foi possível cultivar os bacilos e, depois, testar seu efeito, observando que eles de fato causavam a tuberculose.

ESTUDOS PARALELOS

Paralelamente ao trabalho de Koch, outras pessoas pesquisavam a causa microscópica das doenças. Em 1877, Pasteur estudou o antraz e o cólera das galinhas.

Em 1880, conseguiu desenvolver uma “vacina” contra essas doenças. A descoberta se deu graças a um acaso. Em 1879, Pasteur estava estudando o cólera das galinhas, com a ajuda de Roux, Chamberland e Thuillier.

Uma cultura antiga, deixada na estufa durante as férias, tornou-se inofensiva, embora contivesse ainda microorganismos. As galinhas inoculadas com essa cultura não adquiriam a enfermidade. Inicialmente, os pesquisadores não deram grande importância ao fato, mas depois, ao conseguir novas culturas do microorganismo, verificaram que aquelas galinhas estavam imunizadas contra a enfermidade.

O que havia acontecido? A interpretação, na época, foi que os microorganismos haviam sofrido alguma mudança, haviam se tornados mais fracos, atenuados, e não produziam mais a doença; apesar disso, produziam alguma mudança no corpo das galinhas, que se tornavam resistentes aos microorganismos normais.

A idéia era, de certa forma, semelhante às que Jenner havia imaginado quase cem anos antes. Ele havia suposto que o “vírus” que causava a varíola humana e a varíola das vacas provinha do cavalo mas que, nas vacas, por algum motivo, ele mudava suas propriedades e já não era mais tão perigoso quanto o vírus humano.

Pasteur logo imaginou que o mesmo processo poderia ser utilizado para conseguir “vacinas” contra todas as doenças causadas por microorganismos: bastaria atenuar o micróbio.

Sabemos atualmente que isso não é verdade, infelizmente. Mas pouco depois ele conseguiu desenvolver uma vacina para o antraz.

Koch fez um duro ataque a Pasteur, nessa época. Ele o acusou de não saber nem estudar os micróbios, nem de obtê-los em culturas puras. Pasteur trabalhava apenas sobre hipóteses, pois não havia provado a atenuação da virulência dos micróbios. Em um trabalho que publicou em 1882, Koch afirma que Pasteur é incapaz de estudar o assunto.

Na verdade, Pasteur procurava resultados práticos e não se preocupava muito com os mecanismos da imunidade. Ele supôs, nessa época, que a imunidade se dava por uma transformação química do animal.

Quando o micróbio do cólera das galinhas atingisse os animais de forma atenuada, ele seria incapaz de provocar a doença de forma grave, mas estaria de qualquer forma vivendo e se alimentando das substâncias orgânicas desse animal. Pasteur imaginou que, dessa forma, os micróbios atenuados consumiriam certas substâncias essenciais, impossibilitando que os micróbios não atenuados se desenvolvessem depois no mesmo organismo.

A explicação de Pasteur foi criticada. Se ela fosse verdadeira, a imunização seria passageira, pois o organismo acabaria por repor, pela nutrição e por seu metabolismo, as substâncias que existiam antes.

Na verdade, nem Pasteur nem ninguém, em 1880, conseguia entender o que ocorria na imunização.

O último resultado importante obtido por Pasteur foi ainda mais discutível: a vacina contra a raiva, em 1885. Apesar de muitas tentativas, o grupo de Pasteur não foi capaz nem de ver um microorganismo na saliva dos animais raivosos, nem em qualquer outra parte de seus corpos, nem cultivar esse microorganismo. No entanto, conseguiam transmitir a raiva por inoculação e, por tentativa e erro, acabaram descobrindo que o líquido tirado da medulas espinhais de coelhos inoculados com raiva tinha a capacidade de produzir a imunização e até mesmo de proteger as pessoas que já tinham contraído a raiva.

Não havia nem base teórica, nem precedentes práticos que justificassem esse trabalho. Pasteur foi criticado, e com razão. Os resultados iniciais obtidos com a vacina contra a raiva davam resultados duvidosos.

Mesmo quando as primeiras dificuldades foram superadas, ficou uma dúvida sobre a honestidade das comunicações apresentadas por Pasteur. Alguns anos depois, quando Pasteur queria constuir seu Instituto, solicitou a doação de uma área pública para isso. A municipalidade de Paris pediu para examinar os cadernos de inoculações antirrábidas de Pasteur, antes de ceder gratuitamente o terreno.

Pasteur não concordou e precisou por isso comprar o terreno. Quando, em 1889, o Instituto fica pronto, sobrou pouquíssimo dinheiro para operá-lo.

Ao longo da década de 1880, foram descobertos gradualmente os agentes de várias outras doenças: o da gonorréia, por Albrecht Neisser, em 1879; o da febre tifóide, por Eberth e Gaffky, o da lepra por Gerard Hansen e o da malária por Alphonse Laveran, todos em 1880; o da erisipela por Fehleisen, e do cólera, por Koch, em 1883; o da difteria por Klebs e por Friedrich Loeffler, com a ajuda de Koch, em 1884; o do tétano, por Nikolaier e Kitasato, e o da pneumonia, por Fraenkel, também em 1884; o da meningite por Weichsel-baum, em 1887 – e vários outros, nos anos seguintes.

A descoberta dos microorganismos permitiu, por fim, esclarecer se certas doenças eram transmissíveis ou não, e através de que meio. Apesar de todos os trabalhos que haviam sido realizados antes, foi apenas após o trabalho de Koch, em 1883, que se confirmou a existência de um vibrião causador dessa doença e sua transmissão pela água. Estudando-se as substâncias químicas que destruiam esse vibrião, foi possível, finalmente, desenvolver métodos totalmente seguros para a profilaxia dessa doença. Desde o final do século XIX, o cólera desapareceu da Max von Pettenkofer, um dos opositores das idéias de Koch.

Europa, depois de matar milhões de pessoas. Em outras partes do mundo (como o Brasil) ele ainda produz muitas mortes – não por inexistência de conhecimento científico, mas por falta de medidas públicas adequadas.

A década de 1880 marca uma verdadeira revolução no estudo das doenças transmissíveis. A utilização de um método rigoroso de investigação, desenvolvido por Koch, permitiu chegar a resultados claros e superar a fase em que se discutia interminavelmente sobre o papel dos microorganismos nas doença.

Não se pode dizer que através do método de Koch todos ficassem convencidos. O eminente higienista alemão Max von Pettenkofer, que tanta influência teve na melhoria das condições de saúde de seu país, jamais aceitou a teoria microbiana. Estava tão seguro de que os microorganismos não podem produzir doenças, que para mostrar isso bebeu uma cultura de vibriões do cólera. Por mais espantoso que seja, não adoeceu. Seria ele imune à doença? Não o sabemos.

EXCESSO DE CONFIANÇA NA TEORIA: A TRAGÉDIA DA DESCOBERTA DAS VITAMINAS

No final do século XIX, após os grandes sucessos da teoria microbiana das doenças, parecia que, depois de milênios, a Medicina havia encontrado finalmente um caminho seguro, científico, para seu desenvolvimento.

Mas o excesso de otimismo, a confiança exagerada na teoria microbiana, levou também a grandes erros.

O que as pesquisas mais cuidadosas haviam mostrado era que algumas doenças eram causadas por microorganismos. O que se passou a acreditar foi que todas as doenças são causadas por eles.

Sabemos atualmente que algumas enfermidades são causadas por alimentação deficiente. Não basta ingerir grande quantidade de alimentos; nem é suficiente ingerir alimentos com muitas proteínas – como a carne.

Todos hoje sabem que existem certas substâncias – as vitaminas – que são essenciais para a saúde . Mas isso só foi descoberto no século XX.

Durante o período das grandes navegações, como já vimos, tornaram-se conhecidas várias doenças. Algumas são atualmente consideradas transmissíveis.

Outras, como o escorbuto, são de origem alimentar: carência de vitaminas.

Nessa época, acreditava-se que os alimentos podiam produzir doenças quando estavam estragados ou quando desequilibravam os humores do corpo. Os portugueses, sofrendo grande mortalidade em terras estranhas, acreditaram que os alimentos desses locais eram incompatíveis com seus organismos. Mas como precisavam comer, imaginaram que havia um modo de superar esse problema: transformando rapidamente o seu próprio corpo, de modo que ele se adaptasse à nova alimentação. Para isso, ao chegar a novas terras, faziam grandes sangrias, de modo a tentar esvaziar o corpo dos humores antigos e substituí-los pelos novos, com os alimentos do local. O resultado era, evidentemente, que enfraqueciam muito e isso aumentava a mortalidade por outras causas.

A própria prática mostrou que era possível curar enfermidades com alimentação adequada. Antes do surgimento de qualquer estudo médico sobre o escorbuto, os próprios marinheiros já haviam descoberto a sua cura.

Em um trabalho de 1564, escrito pelo holandês Rousseus, o autor descreve que os marinheiros que fazem longas viagens curam-se do escorbuto por meio de laranjas. Ele conjeturou que os holandeses, atingidos pelo escorbuto ao retornarem da Espanha com uma carga desses frutos, descobriram sua eficácia contra a doença por acaso, e logo a notícia se difundiu.

Em um tratado sobre o escorbuto escrito em 1593, Albertus recomendava o suco de laranja e plantas ácidas. Ele recomendava que esse suco fosse colocado em sopas, e que a carne, quando estivesse ao fogo, fosse borrifada com ele. No mesmo ano, as virtudes do suco de limão na cura do escorbuto foram descritas por Sir Richard Hawkins, cuja tripulação, nos trópicos, foi afetada por essa enfermidade com grande gravidade. Hawkins descreveu que passou a utilizar com grande sucesso o suco de laranjas e limões ácidos e um certo remédio chamado “água do Dr. Stevens”.

No século XVII, o uso de limões foi amplamente empregado pelos holandeses durante o estabelecimento da Companhia das Índias, sempre de um modo empírico e às vezes sem apoio dos médicos. Diversas vezes, a eficácia dos limões e das laranjas foi redescoberta. Em 1726, a frota inglesa no Báltico foi atacada pelo escorbuto. O almirante Wager tinha a bordo, por acaso, grande quantidade de limões e laranjas.

Como ele ouvira falar da eficácia dessas frutas contra o escorbuto, distribuiu grande quantidade entre os marinheiros, que comiam e misturavam o suco à cerveja. Todos se curaram.

Verificou-se que a utilização de vegetais frescos, em geral, também ajudava a curar o escorbuto. Imaginou-se que talvez a alimentação que era utilizada nos navios – carne seca, biscoitos e outros alimentos que podiam durar durante meses – fosse a causa da doença. No entanto, mesmo transportando-se a bordo animais vivos (como ovelhas) e alimentando os marinheiros com carne fresca, surgia o escorbuto.

Em 1753, essas observações dispersas foram analisadas e reunidas em um livro pelo médico James Lind (1716-1794). Ele recomendou a adoção de limões na marinha inglesa.

Para a preservação do suco durante longas viagens, ele recomendava que o suco fosse evaporado em fogo brando, até formar um xarope grosso.

Mas a medida não foi aceita. O escorbuto continuou a matar os marinheiros. Houve graves problemas nos anos de 1780 a 1782. Em 1780, houve 1.457 casos de escorbuto atendidos no hospital de Haslar.

Ao mesmo tempo, acumulavam-se mais evidências da importância dessas frutas.

Em 1794, o navio Suffolk partiu da Inglaterra para a Índia, fazendo a viagem sem manter qualquer contato com a terra. A viagem durou 23 semanas e um dia.

Durante todo o tempo, os marinheiros receberam suco de limão misturado à bebida diária. Apenas alguns marinheiros mostraram sinais de escorbuto e esses sinais desapareceram com doses adicionais de suco de limão.

O navio chegou à Índia sem a perda de um único tripulante. Após esse teste, em 1795, sob a recomendação dos médicos D. Blair e G. Blane, a marinha inglesa passou a adotar o suco de limão.

Para a preservação do suco, ele passou a ser misturado com certa quantidade de bebida alcoólica.

Como resultado dessa medida, o escorbuto desapareceu dos navios. Em 1841, o médico George Budd escreveu um livro sobre o escorbuto, em que contava que muitos médicos da marinha nunca tinham visto um único caso da enfermidade.

No entanto, não se sabia claramente o que era essa doença, nem por qual motivo os limões e outros vegetais ácidos eram capazes de curá-la.

Podia ser que a enfermidade fosse um desequilíbrio dos humores e que os limões curassem a doença por causa de serem úmidos e frios. Além disso, desde a Idade Média, acreditava-se que os limões tinham grande poder contra os venenos. Em uma obra atribuída a Alberto Magno (século XII) que circulava muito na época das grandes navegações, conta-se que os dois grandes remédios naturais contra todo tipo de veneno são a arruda e o limão. Atribuía-se nesse tempo ao limão a capacidade de proteger contra as picadas das serpentes. Como os “venenos” eram também causa das epidemias, o limão parecia também útil nesses casos:

Pareceu-me útil e necessário provar a excelência das propriedades destes cinco preservativos, a saber, o limão, a arruda, as pílulas cordiais, a mitrídata e a teriaga, pra serem usados com segurança e sem receio, segundo a maneira que foi prescrita. Porque se têm tanto poder sobre os venenos, não devem ter menos contra a corrupção do ar, à qual é mais fácil resistir.

De certa forma, em 1841 Budd já estava próximo da noção atual, de que o escorbuto é produzido pela carência de certas substâncias (vitamina C) na alimentação e que pode ser curada por essa substância.

Ele afirma claramente que apenas os vegetais possuem a propriedade de combater o escorbuto; que diferentes vegetais são mais ou menos adequados para o tratamento, sendo que os cereais e outros vegetais semelhantes não curam a enfermidade; e que o calor destroi o poder anti-escorbútico. E termina dizendo:

Ignoramos o elemento essencial, comum ao sucos das plantas anti-escorbúticas, do qual dependem essas propriedades.

Mas não seremos considerados muito ousados se predissermos que o estudo da química orgânica e os experimentos dos fisiólogos, em um futuro não muito distante, lançarão a luz sobre esse assunto.

No caso do escorbuto, antes da descoberta das vitaminas, a prática já havia resolvido o problema. Apesar disso, no início do século XX havia pesquisas para descobrir o seu microorganismo.

Como alguns dos seus sintomas eram semelhantes aos da sífilis, também se tentava utilizar no escorbuto remédios úteis à sífilis – sem obter bons resultados.

Em outros casos, a falta de conhecimento das vitaminas levou a conseqüências muito mais graves. O episódio mais terrível foi o do estudo do beribéri, na passagem do século XIX para o século XX. Trata-se, pelo que sabemos hoje, de uma doença grave, causada pela falta de vitaminas. O beribéri é freqüente nas populações que se alimentam com grande quantidade de arroz polido (arroz branco), pois o processo de polimento retira a película que contém a vitamina B deste cereal. Até o início do século XIX, utilizava-se o arroz integral, obtido em geral de forma artesanal, batendo-se o arroz com casca e separando apenas a palha. Esse processo “primitivo” foi substituído pelo polimento industrial do arroz, criando o belo cereal branco que consumimos até hoje.

Em meados do século XIX, a produção de arroz branco na Ásia aumentou muito, e sua exportação atingiu o mundo todo.

O beribéri já era conhecido, como o escorbuto, desde as grandes navegações. Foi descrito por Diogo do Couto, que fala sobre sua ocorrência entre os marinheiros da armada de Gonçalo Pereira, na Índia: “A nossa gente ia adoecendo da doença que chamam berebere, que é inchação da barriga, e pernas, de que em poucos dias morrem, como morreram muitos, e chegou dia de dez, e de doze.”

Essa doença foi chamada, no Brasil, de “inchação das pernas”, ou epidemia das “pernas inchadas”, por causa de um dos seus sintomas.

Podemos ver em diversos quadros de Portinari figuras humanas que apresentam a aparência de doentes do bériberi. Além desse sintoma visível (que nem sempre ocorre), há dormência dos membros, fraqueza, dificuldade de se mover, que pode se transformar em uma paralisia, sensação de alguma coisa apertando o tronco, como um cinto muito justo (“cinta epigástrica”). Pode haver asfixia e morte rápida ou lenta.

Embora conhecida e descrita muitas vezes, essa enfermidade só se tornou importante na segunda metade do século XIX, quando em muitas partes do mundo começou a produzir grande número de mortes. No Brasil, em 1858, houve uma “epidemia de pernas inchadas” em um colégio em Mariana, matando várias crianças. Na década de 1860, surgem muitos casos, atacando tropas militares no Mato Grosso, que só se salvaram da “peste” fugindo do local. Na Bahia, a doença surge nesse período de forma esporádica, sendo descrita pelo médico José Francisco da Silva Lima. De 1863 a 1866, ele tratou ou acompanhou pessoalmente o tratamento de 51 doentes, dos quais 38 morreram. Esse autor acreditava que a enfermidade não era transmissível:

Sem presumir coisa alguma teoricamente acerca deste ponto, isto é, sem sair do domínio dos fatos, direi que a doença não pareceu difundir-se por contágio ou infecção, e sim depender de causa morbífica largamente espalhada, de circunstâncias ou condições higiênicas gerais desconhecidas.

Silva Lima recomendava para prevenir a enfermidade a higiene pessoal, vinhos, boa alimentação, mudança de ares, banhos salgados. O tratamento era feito através de quinino, ferro, vomitórios, diuréticos, purgantes, etc. Silva Lima intuiu que o beribéri tinha relação com alimentos, comparando-o com o ergotismo, que é produzido pelo centeio estragado. Mas não se fixou em nenhuma causa, sugerindo a existência de uma influência do clima, de miasmas paludosos, de águas impuras, etc.

Na década de 1870, surgiram explicações para o beribéri que o comparavam a um processo reumático produzido pela umidade, já que aumentava sua incidência em épocas de chuva.

Foi também comparado à anemia e à malária. Encontrou-se correlações entre sua ocorrência e a proximidade de rios ou mar. Sugeriu-se que era causado por um microorganismo presente nos peixes, pois a enfermidade ocorria com maior freqüência em população oriental que se alimentava de peixe cru. Em alguns mortos pelo beribéri foram encontrados vermes intestinais aos quais também se atribuiu a doença.

O beribéri surgia com freqüência em prisões, hospitais, asilos e navios, sugerindo que se tratasse de doença contagiosa, que se espalhasse facilmente em aglomerações de pessoas com higiene deficiente. Em 1871, uma grande epidemia de beribéri dizimou os presos na Casa de Detenção do Recife.

Em Minas Gerais, havia na época um célebre internato: o colégio do Caraça. Lá houve graves epidemias de beribéri em 1861, 1873 e 1878. Na primeira delas, uma comissão médica atribuiu a enfermidade ao salitre que os padres dissolviam na água dos alunos, para diminuir seus desejos sexuais.

Em 1870, houve no Caraça 71 casos de inchação simples; em 1872, três casos de paralisia; em 1873, dos 230 alunos, 45 foram afetados, 12 sob forma paralítica, com 2 mortes.

Quando os estudantes eram levados para outro local, a doença era curada. Nessa época, uma comissão médica atribuiu a doença à grande umidade do ar, à aglomeração de alunos e à alimentação pelo arroz (comparando com o ergotismo).

Em um seminário em Diamantina, às vezes 20% dos estudantes eram acometidos pelo beriberi. Nenhum professor sofria da enfermidade, nesses lugares. Provavelmente suas alimentações eram diferentes.

Em navios, a doença começou a aparecer cada vez mais freqüentemente. Em 1875, houve 19 casos na Bahia; em 1876, 39 casos. Em 1883, a corveta “Niterói”, indo para a Bahia, teve 111 doentes de beribéri.

Um caso famoso dessa época ocorreu quando a Marinha brasileira resolveu realizar uma grande viagem de circunavegação da Terra, na corveta “Vital de Oliveira”. A viagem durou do fim de 1879 até o início de 1881, havendo grave ocorrência de beribéri. Na época, o médico Pacífico Pereira afirmou:

(…) tudo vem corroborar a convicção a que tenho chegado pela observação clínica e pelos meios analíticos e experimentais, de que o beribéri é devido a uma anoxemia determinada por condições climatológicas freqüentes em muitos pontos das regiões intertropicais, especialmente pela ação prolongada de uma temperatura elevada e de excessiva umidade atmosférica, e tendo ainda por auxiliares quaisquer causas que diminuam a oxigenação do sangue, deprimindo a escala das combustões fisiológicas nos diferentes tecidos do organismo.

A solução de tal problema se daria pela higiene dos navios, melhor ventilação, reduzir a umidade, maior asseio pessoal, diminuir o número de pessoas no navio, etc.

O médico do navio, Galdino Cícero de Magalhães, fez uma descrição detalhada de toda a viagem, sob o ponto de vista médico. O navio partiu do Rio de Janeiro no dia 19 de novembro de 1879.

Dirigiu-se para Lisboa, depois percorreu o Mediterrâneo, passando pelo Canal de Suez no início de abril de 1880. No início de maio, chegaram ao Ceilão. O médico indica que havia muito calor e chuvas, surgindo então muitas amidalites e inchações: “(…) atribuímos a uma infecção miasmática procedente dos porões, os quais durante a viagem sempre exalaram um cheiro fétido, resultante das graxas apodrecidas nestas partes mais baixas do navio.”

Houve inicialmente dois casos com sintomas de beribéri, no Ceilão; no final de maio, há mis dois casos da doença. O médico descreve o grande calor e umidade do ar. Magalhães utilizou nos doentes o quinino, arseniato de soda, tônicos, banhos quentes, fricções com bálsamo, purgantes e outros remédios. Dois dos marinheiros melhoraram, mas os outros não.

Firmado nosso diagnóstico de beriberi empregamos os grânulos de arseniato de ferro, ácido arsenioso, sulfato de estriquinina, ácido fosfórico, e quassina.

Decocto de cevada adicionada de digitalis e acônito, laxativos; linimento volátil canforado ou terebentinado e bálsamo de Fioravanti em fricções. Banhos salgados, aplicação de choques elétricos pela máquina de correntes interrompidas de Gaiffe, vinho de quina nas refeições.

Por incrível que pareça, o médico diz que “Pelo emprego destes meios os sintomas foram cedendo sensivelmente de sua energia.”

É provável que, durante essa parte do percurso, passando por diferentes portos, a alimentação tenha sido variada e satisfatória, produzindo a melhora da enfermidade. Tudo vai bem até o Japão. No entanto, de julho ao fim de agosto, o navio atravessa o Oceano Pacífico até a Califórnia – evidentemente, sem reabastecimento de alimentos. Durante a travessia, aumentaram os problemas com o beribéri:

“Foi aterrador o movimento da enfermaria nos 20 dias de agosto”. Os vegetais acabaram e só se comia carne salgada de vaca e arroz, no navio. Apesar de citar esse fato, Magalhães atribuiu a doença ao calor e à umidade que continuaram durante o trajeto.

Em poucos dias a coberta estava repleta de doentes, não havendo mais um lugar vago na enfermaria! A moléstia resistiu valorosamente a toda terapêutica; nem poderia ser de outro modo quando todas as condições produtoras dela subsistiam [calor, umidade, chuvas]; achando-nos, além de tudo, baldo de dietas e alimentos reconfortantes; chegando ao ponto de só podermos adietar com arroz.

Houve 29 doentes de beribéri. Três morreram na viagem, outros quatro no hospital de San Francisco.

Discutindo a causa da doença, Magalhães se refere às idéias de Silva Lima, que era a mais aceita na época: “(…) o ilustrado prático considera o beriberi como uma intoxicação sangüínea, produzida pelo intermédio de um miasma que se introduz na torrente circulatória.” Magalhães concorda com a existência de intoxicação do sangue, mas não pelo intermédio dos miasmas.

Supõe que os fatores principais foram: temperaturas quentes e úmidas; alimentação insuficiente, tanto em quantidade quanto em qualidade; acúmulo de pessoas; impressões morais tristes; excessos de qualquer natureza; e cansaço.

Ao comentar sobre a alimentação, Magalhães sugere a introdução de batatas inglesas; verduras dessecadas e conservadas em latas; introdução da pimenta; uso de demais condimentos; e manutenção de aguardente nas refeições. Nenhuma dessas medidas seria útil contra o beribéri, pelo que sabemos hoje.

A enfermidade era grave e tornou-se comum nas cidades. No final do século XIX e início do século XX, no Rio de Janeiro só havia quatro doenças que matavam mais do que o beribéri: tuberculose, varíola, malária e gripe. Os casos de tifo, sarampo e desinteria eram menos numerosos do que os de beribéri.

Pela sua gravidade, o beribéri foi muito estudado, na época. Como era de se esperar, a partir da década de 1880 as explicações mais comuns são as que adotam a teoria microbiana das doenças.

Entre muitos outros casos, no Brasil, vários médicos adotaram a nova e vitoriosa teoria, dedicaram-se ao beribéri e encontraram seu micróbio. Em nosso país, o mais entusiasta defensor da teoria parasitária do beribéri foi o diretor do Museu Nacional, João Batista Lacerda, que publicou trabalhos sobre o assunto de 1883 até seus últimos dias (1915).

Embora atualmente possa nos parecer ridículo que alguém tenha descoberto uma coisa que não existe, é instrutivo estudar os trabalhos de Lacerda.

No seu primeiro trabalho, de 1883, Lacerda comenta inicialmente as descobertas de Pasteur e de Koch. Ele próprio sabe que o estudo dos microorganismos deve ser cuidadoso:

Certo que é mister, em benefício mesmo da ciência, reprimir as exageradas pretensões de alguns espíritos sôfregos ou demasiado generlisadores, que entendem que toda a doença é produto de parasitismo.

Onde, porém, se nota o contágio, a transmissibilidade por vários modos, a epidemia, a importação mórbida, deve-se suspeitar com todo fundamento que entra em ação para produzir a doença um desses seres infinitamente pequenos, que acham na sua natural reprodutibilidade, favorecida e ativada por certas condições exogênicas, ainda mal determinadas, o meio de propagar-se. Assim, tenho para mim como coisa assaz provável que a febre amarela, a cólera morbus, o tifo dos acampamentos e dos exércitos, a peste do Oriente, a varíola, a escarlatina, a raiva, etc., são produzidas por agentes dessa ordem.

Lacerda conhecia e procurava seguir os melhores métodos experimentais. Inicialmente, ele estudou o sangue de alguns doentes e acreditou ver neles alguns microorganismos.

Para verificar o que eram e se eram a causa da enfermidade, resolveu seguir os preceitos de Koch, cultivando-os fora do organismo doente.

Preparava inicialmente um meio de cultura onde pretendia cultivar os microorganismos que encontrasse: caldo de carne de vaca. Ele o cozinhava, neutralizava, filtrava duas vezes, colocava em balões de vidro que eram fechados a fogo; depois, colocava os balões em uma estufa, com temperatura entre 130 e 140 graus Celsius, para esterilizá-los. Observando esse procedimento, verificava que o caldo de carne se conservava depois límpido e transparente, sem aparecimento de microorganismos anômalos.

Lacerda colhia então o sangue de alguns beribéricos.

Eis como procedia eu na colheita do sangue. Começava por lavar uma das extremidades digitais do doente com sabão, ou álcool. Feito isto, comprimia-se fortemente a polpa do dedo de modo a enturgescer os tecidos e penetrava-se nele com um alfinete previamente passado no fogo.

A gota de sangue surgindo da picada era imediatamente aspirada por um tubo de vidro capilar, previamente esterilisado na temperatura de 180 graus centígrados.

Uma vez cheio o tubo, obturavam-se os extremos com lacre derretido.

Enquanto se enchiam assim numerosos tubos, algumas gotas do sangue aproveitavam-se para o exame microscópico imediato. Recebida a gota entre duas lâminas de vidro, depois de bem apertadas para operar-se a difusão do líquido, procedíamos ao exame microscópico (…). Via-se claramente por entre os glóbulos do sangue corpúsculos nimiamente pequenos, de forma esférica ou ovoide, quase todos brilhantes, executando no líquido movimentos de translação e de rotação assaz acentuados.

Lacerda não tinha dúvidas de que esses corpúsculos eram vivos: seu movimento diminuída quando o líquido ia secando. A quantidade desses corpúculos variava muito conforme os doentes e os dias; em alguns casos os corpúsculos cresciam em uma direção, depois se estrangulavam e formavam a aparência de diplococos.

Estas observações por muito tempo repetidas, sobre o sangue de vários doentes de beriberi, não nos deixaram dúvida alguma de que no sangue destes doentes encontra-se sempre, com mais ou menos abundância, um micróbio, cujas formas ali representadas são as dos micrococos

Com o sangue recolhido nos tubos capilares, Lacerda fazia a cultura dos microorganismos. Ele tomava esses tubos, lavava-os por fora com ácido fênico e depois com água para esterilizar seu exterior. Depois, segurando-os com duas pinças, quebrava-os ao meio e deixava cair dentro do balão com o caldo de carne (ou outros líquidos que utilizou depois). Fechava então o vidro e o levava a uma estufa, à temperatura do corpo humano. “No meio líquido, formavam-se flocos esbranquiçados. No meio sólido, surgiam pontinhos brancos formando colônias.”

Tirando uma gota do líquido de cultura e colocando entre duas lâminas de vidro, via “filamentos cilindróides, hialinos, soltos, imóveis, de comprimentos vários, alguns muito longos, chegando a medir de 10 a 15”.

Lacerda descreve várias transformações que esses filamentos podiam sofrer, produzindo corpúsculos arredondados, isolados ou em grupos, ou bastões.

Esse microorganismo de forma tão variável foi chamado por Lacerda de Bacillus beribericus.

Segundo Lacerda, a cultura com o sangue de 5 doentes deu os mesmos resultados; depois, estudou um número maior de doentes, com resultados concordantes.

Também fez culturas a partir da urina dos doentes, observando o surgimento de esporos do Bacillus beribericus.

Após conseguir a cultura do microorganismo, era necessário utilizá-la para verificar se era possível transmitir a doença. Lacerda faz a inoculação em porquinhos da Índia e em coelhos, com sucesso, e em um carneiro, sem resultado nenhum. Em todos os animais inoculados, Lacerda encontrou os microorganismos. No caso de alguns deles, houve perturbações do movimento, que Lacerda considerou como uma indicação de que eles estavam com beribéri. “Esse micróbio, sendo inoculado em porquinhos da Índia, reproduziu neles sintomas análogos aos do beriberi, e causou-lhes a morte no fim de poucos dias.”

Pelo menos aparentemente, Lacerda estava seguindo o método de Koch. Segundo sua descrição, ele verificou que os microorganismos sempre eram encontrados nos doentes de beribéri; conseguiu cultivar o microorganismo; reproduziu com o mesmo a doença em animais sãos; e reencontrou nos animais inoculados o mesmo microorganismo. O que poderia estar errado?

Há vários pontos duvidosos no trabalho de Lacerda. Teria ele de fato reconhecido algum microorganismo, ou observado vários diferentes, que por falta de treino considerou como sendo um só?

Seria o microorganismo associado de fato ao beribéri, ou seria devido a uma infecção secundária e presente também em outros casos? Lacerda não fez comparação com pacientes de outras doenças, ou com pessoas sãs. Seria a cultura pura, ou uma mistura de microorganismos?

Provavelmente era uma mistura. Pode-se de fato dizer que os animais de teste adquiriram beribéri? Provavelmente não.

O que existe de mais instrutivo neste exemplo é que ele mostra que o método de Koch não é tão simples de aplicar quanto parece.

Lacerda não se contentou com a descoberta do Bacillus beribericus. Ele procurou também indentificar a origem desse microorganismo.

Vários autores já haviam suspeitado que o arroz estragado pudesse produzir o beribéri.

Lacerda estudou um caso de uma pessoa que teve beribéri sem contato com qualquer outro doente e suspeitou da sua alimentação. Examinou o arroz e notou alguns grãos quebradiços, opacos, que se pulverizavam quando apertados; colocados no meio de outros, esses outros ficavam iguais, depois de muitos dias. Na superfície havia um parasita microscópico: filamentos que pareciam iguais aos observados nas culturas do sangue beribérico.

Lacerda cultivou o parasita do arroz em caldo de carne de vaca esterilisado: surgiram elementos iguais aos que haviam surgido com o sangue beribérico.

Lacerda tinha quase certeza de que os microorganismos do arroz eram a fonte da enfermidade.

Com o fito de apreciar os resultados produzidos pela alimentação exclusiva desse arroz parasitado, demo-lo a comer a um rato sem adjunção de nenhum outro alimento.

Ao cabo de seis dias o animal abortou quatro fetos já bastante desenvolvidos. Dois dias depois, os artelhos de uma das patas posteriores apresentaram-se vermelhos e intumescidos.

Em um deles chegou a produzir-se uma exulceração, que tornou-se depois mais profunda. O animal no fim de dez dias dava mostras de grande abatimento.

No duodécimo dia ele sucumbiu sob as nossas vistas por asfixia e convulsões.

No sangue do animal morto, encontrou granulações semelhantes às dos doentes beribéricos: filamentos, esporos, etc. Culturas desse material reproduziram “todas as formas do Bacillus beribericus”.

Três porquinhos da Índia também morreram em poucos dias, quando inoculados com a cultura de arroz.

O trabalho de Lacerda foi criticado como precipitado e pouco cuidadoso. Em 1887, ele publicou novo trabalho, mais detalhado, com novos testes. Nessa época, ele afirma que alguns estudos de autores do exterior chegaram a conclusões iguais às suas e cita Ogata Masanori e Wallace Taylor no Japão (1886), Connelissen e Sugunoya na Índia (1886). De fato, não apenas esses mas também outros autores estavam “descobrindo” microorganismos do beribéri. Cada um, no entanto, observava micróbios diferentes.

Logo depois, Lacerda encontra uma confirmação de seus estudos. O médico Cornellius Pekelharing, de Utrecht, foi enviado em 1887 à Índia pelo governo holandês para extudar o beribéri e propor medidas para combater essa doença. Tomou conhecimento dos estudos de Lacerda e lhe pediu cópias de seus trabalhos.

Através da embaixada holandesa no Rio de Janeiro, Lacerda acompanhou os trabalho de Pekelharing, que levaram a resultados semelhantes aos seus.

Pekelharing afirma que estudou a possibilidade de que a doença fosse produzida por microorganismos porque ela parecia contagiosa. E confirma a hipótese:

Efetivamente conseguimos reconhecer no sangue de beribéricos, extraído durante a vida, a existência de bactérias.

Elas aí se encontram como grânulos (micrococos) e em forma de bastonetes, porém muito menores do que os descritos por Lacerda e Ogata, menores ainda do que os encontrados em cadáveres de beribéricos pelos srs. Cornelissen, e Suguenoya.

Como se vê, cada investigador encontrava um tipo de microorganismo diferente. No entanto, Pekelharing, como Lacerda e como outros, consegue fazer uma cultura de seu microorganismo, inoculá-lo e produzir a doença. Além disso, Pekelharing descobriu que suas bactérias existiam no ar, nos lugares em que estudou a enfermidade, “exclusivamente onde reina o beriberi”.

É difícil imaginar como ele poderia afirmar que em nenhum outro lugar existem essas bactérias. Pekelharing se convence de que os micróbios são a causa do beribéri:

O que legitimamente se conclui de tudo quanto acabamos de expor é que produz-se o beriberi por meio da inoculação dos microorganismos provenientes do sangue de indivíduos acometidos daquela moléstia.

Não são ainda suficientes os dados de que dispomos para decidir se além dos micrococos já mencionados outras bactérias existem capazes de produzir a mesma moléstia, devendo notar-se que em outras enfermidades há exemplos disso. Sobre se se deve considerar ou não o beriberi moléstia infecciosa, creio que a tal respeito ninguém levantará hoje a menor dúvida.

As medidas de controle da doença sugeridas por esse autor são, evidentemente, cuidados sanitários, desinfecção dos locais e dos objetos, etc.

Outro brasileiro que descobriu um micróbio do beribéri foi Francisco Fajardo. Em 1898, ele observou um hematozoário que se apresentava no sangue de doentes de beribéri, sob a forma de granulações de cor vermelho-escura ou às vezes preta. Ele os considerou como semelhantes ao parasita da malária. Nem seria preciso dizer que seu trabalho não foi confirmado.

Continuaram a morrer milhares de pessoas por todo o mundo, enquanto se procurava o micróbio do beribéri. Surgiam indicações que parecem hoje muito claras indicando que era uma enfermidade de origem alimentar, mas ninguém percebia claramente qual a deficiência, na época. Em 1880, o médico Kamehiro Takaki, do Hospital Naval de Tóquio, convenceu-se de que havia algum problema nutricional na Marinha japonesa.

Acreditou que a causa era a pequena quantidade de nitrogênio ingerida pelos marinheiros, e para solucionar essa deficiência introduziu mais carne, mais vegetais e, em algumas refeições, cevada no lugar do arroz. Houve uma grande redução do beribéri na Marinha japonesa.

Um médico da marinha brasileira, Jaime Silvado, comentou em 1905 esse trabalho de Takaki. Elogia seu êxito, mas diz que não é a falta de nitrogênio que produz a doença, pois os marinheiros brasileiros recebiam 600 g de carne fresca e 450 g de pão por dia, em terra, mas mesmo assim surgia o beribéri. Silvado aponta que, ao mesmo tempo em que mudou a alimentação, Takaki conseguiu que fossem adotadas medidas de higiene, e que foram elas que eliminaram o beriberi.

À vista do exposto é intuitivo que o beriberi desaparecerá dos nossos navios quando imitarmos os marinheiros do Mikado, fazendo higiene, higiene, higiene e mais higiene.

Algumas pessoas, como o próprio Lacerda, acreditavam que o arroz estragado podia produzir o beribéri. Um pesquisador holandês, Christiaan Eijkman, observou em Java que as galinhas do laboratório, quando alimentadas durante algum tempo com arroz polido, ficaram doentes com sintomas semelhantes aos do beribéri. Elas se curavam quando eram alimentadas com arroz não polido, integral.

Sua interpretação foi de que havia no arroz polido algum microorganismo ou toxinas produzidas por microorganismos; mas que o arroz integral continha alguma substância que anulava o efeito desse microorganismo ou toxina. Foi o sucessor de Eijkman, Gerrit Grijns (1865-1944) que percebeu em 1901 que as galinhas também adoeciam com outras alimentações como tapioca ou carne de cavalo cozida, e se curavam com arroz integral.

Concluiu que a causa do beribéri era a falta de alguma substância que existia na película do arroz integral. Foi necessária no entanto uma série de estudos, com a contribuição de diversos pesquisadores, antes que o trabalho de Grijns fosse confirmado e se identificasse que substância era essa. Isso demorou mais de dez anos, durante os quais milhares de pessoas morreram de beribéri, estupidamente, por causa do arroz polido.

Essa longa história do beribéri nos mostra como é difícil a evolução da ciência. Quando uma teoria se mostra valiosa – como, no caso, a teoria microbiana das doenças – ela chega a cegar as pessoas, impedindo-as de vislumbrar qualquer outra alternativa.

 

 

 

OS VETORES DAS DOENÇAS MICROBIANAS

A década de 1890 foi o período no qual ocorreu um novo importante avanço: a descoberta de insetos transmissores de doenças (vetores).

Durante quase todo o século XIX, por mais que variassem as teorias, considerava-se em geral que o ar era o meio de transmissão das doenças (miasmas, germes). Desde a Antigüidade, houve esporadicamente sugestões de que as doenças pudessem ser transportadas por animais. A malária, por exemplo, como seu próprio nome indica (mal’aria), era atribuída geralmente a um mau ar dos pântanos, mas havia especulações sobre sua transmissão por mosquitos. Também no caso da febre amarela, foram feitas associações entre a incidência da doença e a presença de mosquitos. Mas em geral prevalecia a idéia de que a transmissão era pelo ar.

Davaine e Raimbert, em 1869, foram talvez os primeiros a investigar mais cuidadosamente a possibilidade de que as moscas pudesse transmitir uma doença (o antraz). Mas os primeiros estudos considerados decisivos sobre o papel dos insetos como vetores só foram realizados vinte anos depois.

Em 1889, Theobald Smith (1859-1934) iniciou estudos, publicados em 1893, que permitiram identificar os carrapatos como vetores do plasmódio da febre bovina do Texas.

A “febre do Texas” que dizimava rebanhos de gado nos Estados Unidos, era atribuída pelos criadores aos carrapatos. No entanto, os pesquisadores “científicos” consideravam essa idéia totalmente impossível. Um autor que estudou o assunto em 1868, chamado Gambee, afirmou: “A teoria dos carrapatos adquiriu grande difusão durante o último verão, mas basta pensar um pouco para perceber o absurdo dessa idéia”. Outros autores posteriores nem mencionavam tal possível fonte da doença.

Na década de 1880, foram encontradas algumas bactérias no sangue do gado doente e essas mesmas bactérias foram também encontradas nos carrapatos; por outro lado, elas eram observadas também na água, solo, urina, fezes e outros locais. Não se sabia se essas bactérias tinham alguma relação com a doença, nem se sua presença nos carrapatos era relevante.

Theobald Smith liderou uma pesquisa realizada em uma estação experimental governamental, perto de Washington. A pesquisa se iniciou em 1889.

Primeiramente, foram trazidas 7 vacas da região em que a doença existia de modo permanente. Quatro delas foram colocadas em um campo separado no dia 27 de Junho de 1889. No mesmo campo, foram colocadas, no mesmo dia, 6 cabeças de gado sadias. Todas, exceto uma, morreram da doença no final de Agosto ou início de Setembro. As vacas iniciais não manifestaram, no entanto, sinais da doença, mostrando que animais aparentemente sadios podiam transmitir a doença a outros.

As quatro vacas iniciais foram retiradas do campo no dia 17 de Agosto. Lá foram colocadas mais oito cabeças de gado, com diversos intervalos. Uma foi colocada no dia 20 de Agosto, outras duas no dia 24, mais duas no dia 6 de Setembro, outra no dia 14, uma no dia 30 e uma última no dia 19 de Outubro. Com excessão de duas, as demais morreram da mesma doença. Por algum motivo, o campo havia se tornado infectado e era capaz de transmitir a febre do Texas, mesmo tendo sido retirados os animais que haviam introduzido a doença no campo. Casos semelhantes já haviam sido descritos no campo, mas sem controle das condições.

Para verificar se a infecção do campo era produzida pelos carrapatos, como se supunha, Smith escolheu um outro campo isolado, no qual não haviam ainda sido colocados animais doentes. Espalhou pelo solo alguns milhares de carrapatos coletados de gado da região onde havia a doença. Nesse campo, no dia seguinte, foram colocadas quatro cabeças de gado sadias. Três contraíram a doença. Isso foi uma forte indicação de que a doença era transmitida pelos carrapatos.

Por fim, em outro experimento, foram colocadas vacas da região doente em um campo, depois de se retirarem dessas vacas todos os carrapatos. Depois de algum tempo, essas vacas foram retiradas. O gado sadio que foi colocado depois no mesmo campo não ficou doente. Isso indicava que não eram os excrementos do gado doente, a água, o solo ou o capim que transmitiam a doença.

No ano seguinte, após o inverno, não foram observados carrapatos no campo infectado. Colocando-se 5 cabeças de gado nesse campo, nenhuma delas ficou doente.

Em toda a série de experimentos, observou-se que bastava a presença de carrapatos provenientes de animais doentes para produzir a doença em animais sadios e que não bastava a presença de animais doentes para produzir a doença. Portanto, ela não era transmitida diretamente por contato, nem pelos excrementos, mas apenas pelo inseto.

Uma vez conhecida a causa e o modo de transmissão de uma doença, torna-se possível uma prevenção bem fundamentada. Com o conhecimento de que a febre do Texas era transmitida pelos carrapatos, foi possível o controle da mesma.

A febre amarela foi a primeira doença humana para a qual se detectou um inseto transmissor. Esses estudos foram publicados em 1884 pelo médico cubano Juan Carlos Finlay y de Barres (1833-1915), embora só fossem confirmados e aceitos vinte anos depois.

Antes de estudar o trabalho de Finlay, vamos no entanto recuar um pouco no tempo.

Já vimos que no final do século XVII e início do século XVIII, houve uma grande epidemia de febre amarela no Brasil. Durante muito tempo, a doença parece ter desaparecido do país. No entanto, no fim de setembro de 1849, um navio norte-americano, depois de passar por Havana e outros lugares em que havia a febre amarela, chegou ao Brasil. Em outubro, apareceram alguns casos da doença em Salvador.

No mês seguinte, já havia uma forte epidemia, que atingiu milhares de pessoas. No Recife, morreram cerca de 2.800 pessoas. No Pará, houve 12.000 doentes e 590 mortos de uma população total de 16.000 habitantes. A doença se fixou na região, matando mais de 5.000 pessoas nas décadas seguintes. Em Fortaleza, dos 41.000 habitantes, 28.500 adoeceram e 900 morreram, em 1851.

Os navios levaram também a doença ao Rio de Janeiro. No ano de 1850, da população de 166.000 habitantes, houve mais de 90.000 doentes, dos quais morreram mais de 4.000. Dessa época até o fim do século, houve um total de 58.000 vítimas de febre amarela, no Rio de Janeiro.

Como os médicos explicavam a doença? Sua causa parecia ser a indigestão, ou talvez a supressão da transpiração, pela umidade, pela chuva; ou talvez o sereno da madrugada, ou mesmo a insolação do verão.

A falta de trovoadas também foi considerada uma das causas. Continuava-se também a acreditar na existência de miasmas, provenientes da decomposição de organismos, que originariam a doença.

As idéias sobre a causa da febre amarela começam a mudar após o desenvolvimento da teoria microbiana das doenças. No Brasil, como em outros lugares, os primeiros sucessos da teoria logo fizeram com que todos começassem a procurar e encontrar microorganismos causadores de tudo.

Nos Estados Unidos, em 1878, um médico chamado Richardson afirmou ter descoberto bactérias em forma de halteres, que seriam a causa da febre amarela. Deu-lhes o nome de Bacteria sanguinis febris flavae (bactéria sangüínea da febre amarela). A descoberta não foi confirmada por estudos posteriores.

No Rio de Janeiro, Domingos José Freire Júnior, professor da Faculdade de Medicina, anunciou em 1880 que havia encontrado a causa da febre amarela: o Cryptococcus xantogenicus – nome que significa literalmente: a bolinha oculta que produz a cor amarela. O microorganismo teria sido localizado no fígado, baço e rins dos doentes. Freire estudou o processo de transmissão do micróbio e o encontrou na água, nos alimentos, no ar, nos cemitérios e nos hospitais. A partir dessa descoberta, produziu em 1883 uma vacina contra a febre amarela, que aplicou em mais de 10.000 pessoas. Ele alegou ter reduzido a mortalidade da doença em 90%. Em 1885, o médico Araújo Góes estudou essas descobertas e negou a existência dos “Cryptococcus”: Freire Júnior havia observado apenas hemácias. Sua vacina, por sua vez, era no mínimo inócua.

O mais insistente “descobridor” brasileiro de micróbios da febre amarela foi João Batista de Lacerda. Em 1883, ele divulgou a descoberta do Fungus febris flavae e, nos anos seguintes, à medida que eram percebidos seus erros, foi sucessivamente “descobrindo” novos micróbios.

Diante de uma seqüência de fracassos e pela importância da doença, Dom Pedro II convidou Pasteur a vir ao Brasil estudar a febre amarela. A princípio, Pasteur pareceu interessado.

Solicitou ao imperador do Brasil permissão para fazer experiências com alguns condenados à morte. Dom Pedro II disse que isso era impossível, e Pasteur desistiu de vir ao Brasil.

Durante décadas, houve sucessivos pesquisadores que anunciaram ter, enfim, corrigido o erro dos anteriores e encontrado o “verdadeiro” micróbio causador da febre amarela.

No caso desta doença, o avanço mais importante não ocorreu com a descoberta de um micróbio e sim com a descoberta do inseto que transmitia a doença.

A idéia de que os mosquitos podiam ter alguma relação com a febre amarela já havia sido proposta em 1848, por Josiah Nott. Mas foi graças às investigações cuidadosas do cubano Finlay, que em 1881 essa relação começou a ser esclarecida.

Sabia-se que a febre amarela produz imunidade: as pessoas que se salvam da doença não a adquirem novamente. Por analogia com outras doenças, imaginou-se que era uma enfermidade contagiosa.

Mas os fatos conhecidos eram confusos. Algumas vezes, pessoas que viviam junto a doentes de febre amarela também ficavam doentes; outras vezes, não.

Durante a época em que mais se discutia o contágio da doença, vários médicos – Firth, Chervin, Guyon e outros – que eram firmes opositores da doutrina do contágio, quiseram dar ao mundo uma prova da sinceridade de suas opiniões. Eles próprios se expuseram ao contato das roupas de enfermos e de cadáveres, dormindo em suas camas, respirando o seu alento, esfregando as mãos e o rosto com o vômito, ingerindo o próprio vômito negro, inoculando-se com o sangue, a saliva, e excrementos de tais enfermos. Nenhum deles adoeceu.

Concluiram que a doença não era contagiosa.

Finlay estava convencido de que a doença não passava diretamente de um doente para uma pessoa sã. Imaginou então que pudesse existir algum transmissor da febre amarela.

Como em outros casos, o ponto de partida foi uma crença popular de que os mosquitos pudessem produzir a doença. Para estudar essa hipótese, Finlay resolveu testar se era possível transmitir a febre amarela fazendo com que um mosquito picasse uma pessoa doente e, depois, uma pessoa sadia. Buscando esse agente, por exclusão, fixou-se no estudo de um inseto sempre presente nos focos de infecção, em Cuba e outros locais próximos: um mosquito que picava as pessoas durante o dia, chamado Culex fasciatus (também conhecido como Stegomya fasciata e depois chamado de Aedes aegypti)

O próprio Finlay tinha grandes dúvidas teóricas sobre a possibilidade de que esse fosse o vetor. Afinal de contas, a doença deve ser transmitida por alguma coisa material. Seria possível que o aguilhão de um mosquito, comparável a um pequeno cone de diâmetro igual a 1/30 de milímetro, pudesse reter uma quantidade suficiente de vírus para realizar uma inoculação eficaz? Isso parecia absurdo. No entanto, ele resolveu fazer o teste.

O próprio Finlay tinha grandes dúvidas teóricas sobre a possibilidade de que esse fosse o vetor. Afinal de contas, a doença deve ser transmitida por alguma coisa material. Seria possível que o aguilhão de um mosquito, comparável a um pequeno cone de diâmetro igual a 1/30 de milímetro, pudesse reter uma quantidade suficiente de vírus para realizar uma inoculação eficaz? Isso parecia absurdo. No entanto, ele resolveu fazer o teste.

Os experimentos foram realizados perto de Havana, em uma fazenda de jesuítas, onde os novos padres se “aclimatavam”, ao chegar em Cuba.

Finlay coletou inicialmente vários dos mosquitos que eram suspeitos de atuar como vetores. Para isso, ele esperava que surgissem tais insetos e que picassem uma pessoa (às vezes, ele próprio).

Dava preferência a mosquitos jovens, “que aparentemente nunca tivessem picado alguém” . O inseto era aprisionado em um tubo de vidro, que era tampado com algodão. Quando o tubo era destampado, invertido e colocado sobre o braço de uma pessoa, o mosquito imediatamente o picava, e ficava sugando o sangue de 1 a 5 minutos. O tubo era tampado novamente. O mosquito demorava 2 ou 3 dias a digerir o sangue e só então picava novamente.

No dia 13 de agosto de 1883, Finlay fez um desses mosquitos picar um jovem que estava no sexto dia de febre amarela, em um hospital de Cuba. No dia 15, o mesmo mosquito foi levado a picar uma outra pessoa que estava no sexto dia da febre amarela e que morreu 3 dias depois. Transportado para a fazenda dos jesuítas, no dia 17 de agosto, o mesmo mosquito é levado a picar o padre P. U., como experimento.

No dia 24 de agosto, o padre caiu doente. Depois de 8 dias de doença, descritas detalhadamente por Finlay, ele se recuperou.

Finlay repetiu o mesmo tipo de teste com outros enfermos e novas pessoas sadias. Houve casos em que não houve transmissão da doença.

Finlay acabou por descobrir que era necessário que o doente estivesse em certa fase da doença (entre o terceiro e o sexto dia) e que houvesse um intervalo de tempo entre o contado do mosquito com o doente e a picada da pessoa sadia. Para obter com segurança a transmissão, era necessário utilizar vários mosquitos ao mesmo tempo.

Em estudos posteriores, Finlay conseguiu também transmitir a febre amarela através de injeções com sangue colhido de doentes. Fez ainda testes de imunização, tentando desenvolver um processo de transmitir uma forma branda da doença.

A partir de seus estudos, já em 1884, Finlay indicou o modo de evitar a propagação da febre amarela: isolar os doentes dos insetos.

Do fato da inoculabilidade da febre amarela por picadas do mosquito se infere a necessidade de preservar os enfermos atacados dessa afecção contra as referidas picadas, a fim de evitar a propagação da enfermidade.

Apesar de seu sucesso nesse estudo, Finlay não conseguiu observar o agente causador da doença, que seria transmitido pelo mosquito. Isso, na verdade, não foi um defeito de seu trabalho, mas mostra que ele era um ótimo investigador. De fato: a febre amarela é causada por um vírus, que nem Finlay nem ninguém poderia ter observado com as técnicas existentes na época.

Seus estudos foram confirmados em 1900 por uma comissão norte-americana, coordenada por Walter Reed. Nessa época, o governo dos Estados Unidos tinha grande interesse no controle dessa doença, pois, além de atingir o país, a febre amarela inviabilizava a construção do Canal do Panamá, que era de enorme importância econômica. Reed e seu grupo confirmaram a descoberta de Finlay. No entanto, Reed também não conseguiu descobrir um micróbio associado à febre amarela.

Em 1901, o mesmo grupo descobriu que o soro sangüíneo, filtrado através de paredes de porcelana capazes de reter as bactérias, era ainda capaz de transmitir a doença. Não se tratava, portanto, de nenhuma bactéria ou microorganismo visível ao microscópio. Concluiu-se que a causa da febre amarela era um “vírus filtrável”, ou simplesmente um vírus – no sentido moderno da palavra.

De certa forma, o vírus invisível foi uma noção muito incômoda, nessa época. No caso da raiva, da febre amarela, da varíola e em vários outros, não se conseguia ver nenhum agente microscópico da doença.

Também não se conseguia cultivar esses vírus invisíveis em nenhum meio de cultura, fora de animais. Não se podia aplicar aqui, portanto, os postulados de Koch.

Apesar de não se chegar ao agente causal da doença, a descoberta do processo de transmissão foi suficiente para o controle da febre amarela: desde que não houvesse mosquitos, a doença não se espalharia.

A destruição dos mosquitos foi feita através de drenagem de águas estagnadas e por substâncias que destruíam as larvas dos insetos (como petróleo). Com o combate ao mosquito, a partir de 1901, a febre amarela desapareceu de Cuba e do Panamá.

É interessante lembrar os processos antigos de prevenção da febre amarela. Como vimos, a grande epidemia do Recife, no final do século XVII, foi combatida com medidas de limpeza, desinfecção de casas, roupas e objetos de doentes, fogueiras, tiros de canhão, controle da moralidade, ervas aromáticas, enterros especiais de cadáveres, etc.

Ninguém se preocupou com mosquitos nem com a existência de pântanos perto da cidade. Quais dessas medidas podem ter sido úteis, no caso? Talvez as fogueiras, as ervas aromáticas e os tiros de canhão tenham ajudado a espantar os mosquitos. As outras medidas, por mais justificadas que fossem para os conhecimentos da época, foram inúteis.

No Estado de São Paulo, a febre amarela produzia muitas mortes no início do século. Em Sorocaba, houve 2.300 casos. Diante da situação, conhecendo o trabalho de Finlay, Emílio Ribas iniciou em 1901 o combate ao mosquito, conseguindo controlar a doença.

No Rio de Janeiro, sucessivas epidemias de febre amarela produziam muitas mortes. De um modo geral, a doença chegava pelos navios. Em 1896, chegou à cidade o navio “Lombardia”, com 340 pessoas. Dessas, apenas 7 não ficaram doentes. Morreram 234.

Em 1903, Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor Geral da Saúde Pública, pelo presidente Rodrigues Alves e iniciou o combate à febre amarela. Nesse ano, houve 584 mortes por essa doença, no Rio de Janeiro.

No ano seguinte, o número baixou para 48, mas em 1905 subiu novamente para 289. Nos anos seguintes, o número de vítimas foi caindo para 42, 39, 4 e, finalmente, em 1909, não houve nenhuma morte por febre amarela. Logo depois, a vigilância diminuiu, e em 1928 ocorreu um forte surto epidêmico. De 1928 a 1929, morreram 478 vítimas da febre amarela, no Rio de Janeiro.

Outros vetores de doenças foram sendo descobertos, no final do século XIX e início do século XX. Em 1897, Ronald Ross descobriu que o plasmódio da malária era transportado por mosquitos – Anopheles – identificado por Grassi em 1898. A malária não era um problema tão grave quanto a febre amarela, pois há muito tempo se conhecia um remédio eficaz – o quinino. No entanto, com o conhecimento de seu meio de transmissão, foi também possível controlá-la.

No final do século XIX, houve epidemias asiáticas de peste bubônica. Seu estudo permitiu, primeiro, a descoberta do microorganismo causador da doença por Yersin, em Hong Kong, em 1894. Em 1897, Simond e Ogata mostraram que a peste bubônica é transmitida pela pulga de ratos doentes. A peste bubônica se espalha, primeiramente, entre os ratos, por suas pulgas, que não costumam picar seres humanos.

No entanto, quando um rato doente morre e seu corpo esfria, as pulgas procuram outro hospedeiro e se não encontram logo um outro rato, podem picar seres humanos e transmitir-lhes a doença.

Na época das grandes pestes européias, já se havia observado que havia grande mortalidade de ratos antes que a doença aparecesse nas pessoas; mas não se sabia a relação entre as duas coisas.

O modo de evitar o surgimento e a propagação da peste bubônica é a redução dos ratos, nas cidades. Isso pode ser conseguido, em parte, com medidas de limpeza: redução do lixo acumulado pelas ruas e em terrenos vazios, limpezas de porões das casas, etc.; ou por medidas dirigidas diretamente ao seu extermínio, através de venenos. Nas antigas pestes, como vimos, o primeiro tipo de medida era tomada (com o fim consciente de diminuir o mau cheiro) e algumas vezes procurava-se eliminar também todos os animais das cidades. No entanto, é difícil exterminar os ratos; e como é muito mais fácil matar os gatos, que são mais visíveis, provavelmente essas medidas eram mais prejudiciais do que benéficas, pois eliminavam os predadores naturais dos roedores.

Depois que se descobriu a relação entre os ratos e a peste, em muitos lugares em que essa doença aparecia, as autoridades estimularam a população a combater os ratos, remunerando as pessoas por corpos de ratos que fossem entregues. Essa medida é perigosa, pois se o rato já estiver doente, pouco depois de sua morte as pulgas procurarão outro lugar para viver – e escolherão, muito provavelmente, a pessoa que matou o rato e o levou para entregar às autoridades sanitárias.

Uma outra medida que era tomada contra as pestes era a purificação das roupas, colocando-as ao ar livre. Em parte, isso pode ter sido útil: as pulgas saem de roupas expostas ao calor do Sol. Por outro lado, dentre as dezenas de substâncias aromáticas recomendadas para serem usadas nas casas, é possível que alguma fosse também útil contra pulgas. Sabe-se que, no Brasil, existem ervas que, colocadas dentro de casas, são capazes de afastar as pulgas. Todas as outras medidas tomadas contra a peste, no entanto, eram inúteis: queimar substâncias aromáticas pelas ruas, fazer fogueiras, cheirar esponjas embebidas em vinagre e outras medidas semelhantes não tinham efeito nem contra os ratos, nem contra as pulgas.

Houve descobertas inesperadas de vetores. Durante o século XIX, havia sido percebido que a transmissão do tifo se dava, como no caso do cólera, pela água.

Apesar disso, não se conseguia controlar totalmente a doença, que irrompia às vezes entre os soldados, durante a guerra. Em 1909, Charles Nicolle estabeleceu que o tifo é transmitido por piolhos, que até então eram considerados como incômodos, mas inofensivos.

Deve-se a um brasileiro, Carlos Chagas, a descoberta de uma nova doença, seu microorganismo causador e seu vetor, em uma série de estudos realizados no início do século. Em 1907, estava sendo contruída uma estrada de ferro no norte de Minas Gerais. Havia muita malária na região e Carlos Chagas foi incumbido de organizar as medidas que permitissem proteger os trabalhadores contra a doença.

Durante esse trabalho, Chagas tomou conhecimento da existência de um grande inseto que se alimentava de sangue, chamado “barbeiro”. Esse inseto, quase do tamanho de uma barata, vive escondido em frestas das casas, durante o dia, mas à noite sai de seu esconderijo e suga o sangue dos moradores. Normalmente, quando se acende uma luz, ele se enconde rapidamente.

Conta-se que a mordida não é dolorosa e que o inseto ataca em geral o rosto das pessoas adormecidas, sem que elas acordem.

Como estavam sendo descobertos muitos insetos transmissores de doenças, Chagas resolveu examinar alguns barbeiros à procura de microorganismos. Talvez ele esperasse encontrar um novo vetor da malária.

Mas achou dentro de alguns barbeiros um novo tipo de microorganismo: certos flagelados, semelhantes aos que provocam a “doença do sono” do gado africano. Mais tarde, eles foram batizados como Trypanosoma cruzi

Esses microorganismos pareciam novos e não se conhecia nenhuma doença produzida por eles. No entanto, Chagas prosseguiu sua pesquisa. Experimentou picar diversos animais pelo barbeiro. Observou que, depois de algumas semanas da picada, era possível encontrar os mesmos tripanosomas o sangue desses animais de teste. Nem todos os animais eram suscetíveis. Cruz conseguiu infectar macacos, coelhos, cobaias e cães. As cobaias eram especialmente sensíveis ao microorganismo e morriam depois de uma semana.

Posteriormente, examinando o sangue de pessoas da região estudada, Chagas encontrou o tripanosoma no sangue de alguns habitantes, especialmente crianças.

Através do estudo desses enfermos, conseguiu caracterizar uma doença nova para a Medicina, que era conhecida pelo povo como “opilação” e que passou a ser chamada “doença de Chagas”.

As crianças que apresentavam tripanosomas tinham sintomas de anemia, pequeno crescimento, desordens nervosas, aumento dos gânglios linfáticos e, às vezes, fígado e baço inchados, além de outros sintomas.

Os microorganismos às vezes desapareciam do sangue, tornando-se mais fáceis de encontrar em períodos de febre. Às vezes a doença era grave e levava à morte.

Em outros casos, os sintomas mais agudos passavam e a doença se tornava crônica, produzindo gradualmente problemas cardíacos graves. No campo, onde a doença de Chagas ocorre mais comumente, é grande o número de pessoas atacadas por essa enfermidade de forma crônica, muitas vezes sem saber que estão doentes.

O trabalho de Carlos Chagas foi posteriormente confirmado, em quase todos os seus detalhes. Pouco se acrescentou ao que ele próprio fez, com seus auxiliares.

Este bom exemplo de pesquisa microbiana no Brasil nos redimiu dos trabalho de Lacerda, Fajardo e outros.

No caso da doença de Chagas, foi possível apenas encontrar um modo de prevenção, pelo combate ao barbeiro. Não existe até hoje cura para a doença, nem vacina contra ela.

Há suspeitas de que o conhecido naturalista Charles Darwin foi vítima dessa doença. Durante sua juventude, ele viajou pela América do Sul e observou em vários locais um animal semelhante ao barbeiro.

Ele conta que era muito desagradável sentir esses grandes insetos subindo por seu corpo para picá-lo. Darwin diz que os nativos de Iquiqui se divertiam com esse animal, capturando-o e vendo-o sugar o sangue do dedo de uma pessoa, pois, embora fosse normalmente achatado, ele inchava e ficava redondo. Posteriormente, Darwin teve problemas incuráveis de saúde com alguns sintomas que concordam com os da doença de Chagas, que era então desconhecida.

A gradativa descoberta de vetores das doenças permitiu controlar males terríveis, como a peste bubônica, a malária, a febre amarela e outras enfermidades. Há, no entanto, a necessidade de que as autoridades e a própria população estejam conscientes da necessidade de manter uma constante vigilância para evitar que elas reapareçam.

Quando se pensa que a luta foi vencida e que não é preciso tomar mais cuidado, pode haver o ressurgimento da febre amarela e do dengue, como ocorreu no Brasil na década de 1980.

CAPÍTULO 12: O SÉCULO XX: SUCESSOS E DIFICULDADES

AVANÇOS DO CONHECIMENTO

Seriam necessários muitos outros capítulos para discutir o desenvolvimento de nossa história ao longo do século XX. Não será possível fazer isso. As principais lições já foram apresentadas e, de qualquer forma, é impossível fazer um estudo histórico completo. Veremos apenas as linhas gerais que se desenvolveram após o século XIX, delineando as tendências, sucessos e dificuldades do período mais recente.

Ao longo de todo o período que foi aqui estudado, observa-se um lento processo de avanço do conhecimento. A partir de idéias vagas sobre o contágio, chegou-se no século XIX a uma compreensão do processo de transmissão de doenças: as doenças transmissíveis são causadas por seres vivos microscópicos, que se reproduzem dentro dos indivíduos doentes, podendo depois ser transferidos a pessoas sãs pelo ar, pelo contato físico, por dejetos que se espalham pelo solo ou pela água, por objetos sujos, ou mesmo por transportadores (vetores) animais – geralmente insetos.

Pode-se evitar a transmissão dessas doenças conhecendo-se o modo pelo qual cada uma se transmite e através de cuidados com os enfermos (impedindo que eles disseminem os microorganismos causadores da doença), controlando os vetores, tomando cuidados com a água, etc. – dependendo, em cada caso, do conhecimento do processo de transmissão.

Em certos casos, é possível também proteger as pessoas sãs através de “vacinas” que produzem uma versão branda da enfermidade e dão depois imunidade contra ela.

Ao longo do século XX, prosseguiram as linhas de trabalho iniciadas no século anterior:

identificação de microorganismos causadores de doenças;
identificação de processos de difusão desses microorganismos;
identificação de vetores;
busca de vacinas.

Além disso, houve um grande desenvolvimento de novos medicamentos (como os antibióticos).

Os exemplos já mostrados permitem perceber que nada disso é simples. A identificação correta de um microorganismo costuma ser precedida de muitos erros anteriores; e mesmo no século XX ocorreram muitas “descobertas” de microorganismos que não existem ou que não são a causa real das doenças estudadas.

Seria inútil aqui fazer uma longa lista de doenças, nomes de microorganismos que as causam, data de sua descoberta, nome dos seus descobridores.

Estaríamos reduzindo a um esquema seco e inútil as centenas de pesquisas que foram necessárias para superar todas as dificuldades e fazer a identificação correta, em cada caso.

Houve um avanço técnico fundamental, ocorrido no século XX: a observação dos vírus. No final do século XIX, já havia sido introduzida a hipótese de existência de certos microorganismos ultra-microscópicos (os “vírus filtráveis”), que não eram vistos nos melhores microscópios existentes na época, passavam por poros dos filtros de porcelana e não eram cultiváveis nos meios de cultura conhecidos. Apenas a partir da década de 1940, após o desenvolvimento do microscópio eletrônico, foi possível observar, descrever e classificar esses vírus.

LIMITES E DIFICULDADES

Houve grandes insucessos no estudo de microorganismos de algumas doenças. Um importante caso desse tipo foi a frustrante busca do vírus do câncer. Durante décadas, diferentes pesquisadores diziam ter encontrado o “verdadeiro” vírus dessa doença. Depois de muito tempo, percebeu-se que o caso é muito mais complexo. Não existe “o câncer”, como doença única, assim como não existe “a febre” como doença única.Os diferentes tipos de câncer se caracterizam por uma multiplicação anormal das células, mas esse fenômeno pode ter diferentes tipos de causa.

Há formas de câncer que se devem a vírus, como há outras formas que dependem de fatores hereditários – e muitos tipos possuem causa ainda ignorada.

Muitas vacinas novas foram desenvolvidas durante o século XX: contra difteria, poliomielite, tétano, tuberculose, meningite, etc. No entanto, em muitos casos de importantes doenças foi impossível o desenvolvimento de vacinas. A lepra, por exemplo, embora seja uma doença que pode ser tratada, não dispõe ainda de uma vacina eficaz. No Índia, onde essa enfermidade é muito mais comum do que no Brasil, foram desenvolvidas muitas tentativas de vacinas para a lepra, mas os resultados ainda não foram satisfatórios. Talvez, nesse caso, se houvesse interesse dos países ricos e dos grandes laboratórios privados de medicamentos, a vacina já tivesse sido obtida há muito tempo. No caso da aids, por exemplo, o grande interesse das nações mais ricas está levando a um desenvolvimento rápido das pesquisas, em direção a vacinas que protejam contra a doença.

Em outros casos, apesar de todo interesse, parece de fato impossível desenvolver uma vacina. É o caso da gripe, que se apresenta de cada vez com novas características, talvez por causa de mutações do vírus que a causa. Já foram desenvolvidas muitas vacinas contra a gripe, mas cada uma só funciona para uma variedade específica da doença. Isso pode parecer um problema de pequena importância, pois estamos atualmente acostumados a pensar na gripe como sendo pouco perigosa. Isso não é verdade.

Exatamente por se mostrar de cada vez sob uma nova forma, a gripe pode ser extremamente perigosa. Em 1918, a chamada “gripe espanhola” se difundiu por todo o mundo, matando cerca de 30 milhões de pessoas – mais do que a primeira grande guerra . Não havia e ainda não existe nenhum modo de proteger as pessoas contra uma ocorrência desse tipo. Se surgir nova forma mortal de gripe, ela ceifará novamente milhões de vidas.

FRONTEIRAS DA INVESTIGAÇÃO

Houve em nosso século um enorme desenvolvimento de remédios contra as doenças causadas por microorganismos. Todos os antibióticos existentes foram descobertos no século XX.

Mas como estamos centralizando nosso estudo na compreensão e prevenção das doenças transmissíveis (não em sua cura), esse assunto não será abordado aqui.

Sob o ponto de vista conceitual, houve no século XX um grande desenvolvimento do estudo da imunologia, para tentar compreender os processos que protegem uma pessoa contra os microorganismos patogênicos.

Por que uma pessoa não está sujeita à mesma doença duas vezes, para certas doenças? O que essas doenças têm de especial, e o que ocorre com o organismo da pessoa? Por que certas pessoas são, desde seu nascimento, imunes a certas doenças?

Não se pode dizer que as respostas obtidas até agora sejam definitivas, mas a imunologia atingiu um grande desenvolvimento. Se os recursos imunológicos do corpo humano fossem totalmente compreendidos, seria possível desenvolver proteções mais eficazes contras as doenças transmissíveis.

No início do desenvolvimento da teoria microbiana, acreditava-se que a entrada de microorganismos em um organismo sempre causava a doença. Isso não é verdade, e adversários da teoria apontavam que, se fosse assim, durante as epidemias, todos ficariam doentes. No entanto, algumas pessoas adoecem e outras não.

Sabe-se, atualmente, que o estado emocional de uma pessoa influi em seu sistema imunológico, podendo aumentar ou reduzir sua resistência à ação de microorganismos. A preocupação, medo, ansiedade, tristeza e outros estados semelhantes enfraquecem o sistema imunológico, tornando o organismo mais suscetível aos microorganismos. O cansaço também tem o mesmo efeito. Pelo contrário, a tranqüilidade, segurança, alegria e outros estados semelhantes possuem efeito contrário, protegendo contra a infecção por microorganismos. De certa forma, os antigos médicos que escreveram sobre a peste estavam certos: o medo e a tristeza contribuem para que as pessoas caiam vítimas das doenças transmissíveis.

Há correntes médicas que consideram muito mais importante o estado geral do organismo do que a eventual presença de microorganismos nele e que por isso procuram preservar as pessoas das doenças transmissíveis por outros meios.

A homeopatia defende a idéia de que um organismo saudável é resistente aos microorganismos; e que uma pessoa pode se preparar contra cada doença transmissível tomando certos remédios homeopáticos específicos.

Desde o século passado, a homeopatia tem sido muito discutida, mas parece nunca ter sido possível uma avaliação desapaixonada de sua eficácia: os fatos nunca mudam a opinião dos que são contrários ou favoráveis a essa prática médica. Não há dúvidas de que aquilo que os homeopatas dizem ser possível é algo extremamente desejável, proporcionando um novo modo de proteger as pessoas sãs das doenças transmissíveis.

Sob o ponto de vista conceitual, houve no século XX um grande desenvolvimento do estudo da imunologia, para tentar compreender os processos que protegem uma pessoa contra os microorganismos patogênicos.

Por que uma pessoa não está sujeita à mesma doença duas vezes, para certas doenças? O que essas doenças têm de especial, e o que ocorre com o organismo da pessoa? Por que certas pessoas são, desde seu nascimento, imunes a certas doenças?

Não se pode dizer que as respostas obtidas até agora sejam definitivas, mas a imunologia atingiu um grande desenvolvimento. Se os recursos imunológicos do corpo humano fossem totalmente compreendidos, seria possível desenvolver proteções mais eficazes contras as doenças transmissíveis.

No início do desenvolvimento da teoria microbiana, acreditava-se que a entrada de microorganismos em um organismo sempre causava a doença. Isso não é verdade, e adversários da teoria apontavam que, se fosse assim, durante as epidemias, todos ficariam doentes. No entanto, algumas pessoas adoecem e outras não.

Sabe-se, atualmente, que o estado emocional de uma pessoa influi em seu sistema imunológico, podendo aumentar ou reduzir sua resistência à ação de microorganismos. A preocupação, medo, ansiedade, tristeza e outros estados semelhantes enfraquecem o sistema imunológico, tornando o organismo mais suscetível aos microorganismos. O cansaço também tem o mesmo efeito. Pelo contrário, a tranqüilidade, segurança, alegria e outros estados semelhantes possuem efeito contrário, protegendo contra a infecção por microorganismos. De certa forma, os antigos médicos que escreveram sobre a peste estavam certos: o medo e a tristeza contribuem para que as pessoas caiam vítimas das doenças transmissíveis.

Há correntes médicas que consideram muito mais importante o estado geral do organismo do que a eventual presença de microorganismos nele e que por isso procuram preservar as pessoas das doenças transmissíveis por outros meios.

A homeopatia defende a idéia de que um organismo saudável é resistente aos microorganismos; e que uma pessoa pode se preparar contra cada doença transmissível tomando certos remédios homeopáticos específicos.

Desde o século passado, a homeopatia tem sido muito discutida, mas parece nunca ter sido possível uma avaliação desapaixonada de sua eficácia: os fatos nunca mudam a opinião dos que são contrários ou favoráveis a essa prática médica. Não há dúvidas de que aquilo que os homeopatas dizem ser possível é algo extremamente desejável, proporcionando um novo modo de proteger as pessoas sãs das doenças transmissíveis.

De um modo geral, pode-se dizer que a teoria microbiana teve uma rápida difusão e aceitação, no final do século XIX. No início do século XX, apenas por teimosia seria possível ignorar a causa microbiana e o meio de transmissão de certas doenças. Houve pessoas, é verdade, que mantiveram a crença de que os microorganismos seriam apenas um sintoma e não os agentes transmissores das enfermidades.

Mas essa crença só poderia ser justificada se algumas vezes a doença fosse acompanhada por microorganismos e outras vezes não – e isso não acontece.

Houve, como vimos, casos em que a teoria microbiana foi utilizada de forma exagerada ou pouco crítica. Por mais estranho que pareça, a aceitação de uma teoria científica passa por processos semelhantes aos da aceitação de uma religião ou partido político: nem sempre as pessoas possuem bom conhecimento ou bons argumentos para aceitar ou rejeitar uma nova teoria, mas aderem a ela ou a negam violentamente por motivos de difícil compreensão.

As pessoas que aceitaram de forma entusiástica a teoria microbiana das doenças geralmente não estavam mais bem informadas do que as que a negavam.

A nível popular, em todo o mundo, a teoria microbiana foi divulgada e aceita. É claro que as pessoas com baixo nível de instrução podem nunca ter ouvido falar nessas idéias, mas de um modo geral essa teoria se integrou na visão popular de mundo, assim como as idéias de que a Terra é redonda. Isso não quer dizer que a população possuam um conhecimento científico dessa teoria.

Para se adquirir um conhecimento científico da teoria microbiana, é necessário conhecer os fatos e argumentos em que ela se baseia.

Uma pessoa sem formação científica acredita no poder dos micróbios como acredita nos anjos da guarda: simplesmente porque alguém diz que eles existem e estão à nossa volta.

Mesmo pessoas relativamente bem informadas dificilmente saberão quais os testes necessários para se estabelecer que certo microorganismo é a causa de determinada doença.

A crença generalisada na teoria microbiana não é, portanto, uma mostra de evolução científica popular: para a grande maioria da população, essa crença é da mesma natureza que qualquer superstição.

Talvez exatamente por isso, os conhecimentos médicos modernos coexistam ainda hoje com interpretações religiosas e mágicas das doenças. Quando a aids surgiu, não houve muitas pessoas que afirmaram tratar-se de um castigo divino por causa dos pecados humanos? Quando as técnicas médicas não curam uma pessoa, ela não recorre a orações aos santos, benzedeiras ou curandeiros? Os substratos mais profundos de nossa cultura popular não são muito diferentes dos de dois mil anos atrás.

REAÇÕES CONTRA A VACINA

A questão das vacinas foi um capítulo à parte em toda a discussão da nova teoria. No século XIX, a aceitação da teoria microbiana era, em princípio, independente da aceitação das vacinas.

As vacinas não foram uma conseqüência da teoria microbiana nem eram explicadas por ela. Houve uma grande resistência contra a obrigatoriedade da vacinação, por vários motivos.

Um deles foi a falta de compreensão do processo de imunização: a vacinação foi descoberta ao acaso, era completamente empírica. Sua única justificativa era que funcionava. Por outro lado, a própria eficácia da vacinação foi colocada em dúvida: parecia que nem sempre ela protegia as pessoas da doença. Por fim, em certos casos a vacinação era perigosa, pois houve muitos casos de pessoas que morreram por causa da inoculação.

No Brasil, já existia, desde o século XIX, a vacinação contra a varíola. Mas só em 1904 foi proposta a vacinação obrigatória de toda a população contra essa doença. O projeto, apresentado e defendido pelo governo de Rodrigues Alves, foi duramente combatido por várias correntes. Os monarquistas, positivistas, operários, militares e outros grupos se uniram, formando uma “liga contra a vacina obrigatória”. A imprensa se posicionou contra a vacinação, divulgando “charges” que ridicularizavam o processo. Apesar de toda a oposição, o projeto de lei foi aprovado no dia 9 de novembro de 1904. Seguiu-se imediatamente um motim, que paralisou a cidade do Rio de Janeiro durante uma semana. Uma insurreição militar tentou depor Rodrigues Alves, sem sucesso.

Não se deve pensar que a oposição à vacinação tenha sido apenas fruto da ignorância e do preconceito. Vejamos rapidamente os argumentos que eram utilizados pelos dois lados.

Um dos defensores da vacinação obrigatória, Vieira Bueno, argumentava que:

em todos os países cultos a vacinação anti-variólica é obrigatória;
graças a isso, a varíola não aparece mais onde há vacinação e revacinação (por exemplo, na Alemanha);
durante a guerra franco-prussiana, os franceses não tinham a vacinação obrigatória; morrearam de varíola 23.600 franceses e de um milhão de soldados alemães que atravessaram a França só houve 659 óbitos;
antes atacavam a vacinação porque ela podia ser o veículo da sífilis e da tuberculose, mas com a vacinação animal não há mais este perigo.

Respondendo a esses argumentos, um opositor da vacinação obrigatória, Horta Barbosa, afirmava:

a vacinação não era obrigatória em todos os países cultos: a obrigatoriedade só existia na Alemanha, França, Sérvia e Japão. Não existia na Holanda, Suíça, Bélgica e Inglaterra. Na Suíça, houve rejeição popular à obrigatoriedade (70%) e ela não foi instituída; na Inglaterra, havia obrigatoriedade e foi revogada por causa da oposição que surgiu contra ela ;a vacinação pode não proteger da doença: no Egito, apesar da vacinação e revacinação, o exército britânico foi atacado pela varíola: 1,22% contraíam a doença e 0,175% morriam;
há perigos na vacinação: 1.069 crianças morreram pela vacinação na Inglaterra e em Gales, antes de 1859;
faltava uma base científica para a vacina, que não era justificada pela teoria microbiana.

Como se vê, havia argumentos fortes dos dois lados. Os que defendiam a vacinação obrigatória nem sempre reconheciam a existência de limitações e perigos reais do processo – e talvez os adversários da vacinação tivessem mais razão do que os defensores, na época. A longo prazo, a vacinação venceu e a varíola foi a única doença eliminada da face da Terra, até hoje, pela Medicina.

Mas até hoje é necessário admitir que as vacinas apresentam riscos, que não oferecem proteção total e que não se chegou a uma compreensão completa de seu modo de atuação.

DIFICULDADES DE APLICAÇÃO DOS CONHECIMENTOS

Quanto aos processos de prevenção das doenças transmissíveis por medidas sanitárias e controle de vetores, pode-se dizer que nunca houve uma oposição significativa a essas medidas. Algumas vezes, os interesses comerciais foram superiores ao interesse da saúde pública, e não foram aplicadas medidas de controle de pessoas e mercadorias nos portos, alegando-se que essas medidas eram desnecessárias e inúteis.

Mas, de um modo geral, aceitou-se a importância das medidas de isolamento de doentes, controle de dejetos, extermínio de vetores, etc. Atualmente, quando tais medidas não são adotadas de forma adequada por algum governo (como o brasileiro), isso não ocorre por ignorância científica ou por dúvidas sobre a eficácia dos métodos de prevenção: a omissão é geralmente causada por falta de interesse político na prevenção das doenças.

Sob o ponto de vista da população em geral, no Brasil, pode-se dizer que existe pouca conscientização do perigo representado por doenças como a febre amarela ou o cólera.

Toda propaganda governamental divulgando os cuidados necessários contra essas doenças, na década de 1980, evitavam toda descrição dos sintomas da doença. A campanha contra a disseminação do cólera (que se mostrou ineficaz) divulgava que essa doença se transmitia pela água e pelos alimentos (mas não falava sobre fezes e vômitos dos doentes, porque isso seria muito desagradável). Dizia que o cólera podia matar – mas não dizia que 1/4 dos doentes podem morrer, se não são tratados imediatamente. Dizia que as pessoas que tivessem início de diarréia líquida deviam procurar os postos de saúde – mas não informavam sobre outros sintomas da doença, nem explicavam como a pessoa definha e morre, desidratada, em poucas horas, por causa dessa doença.

Como resultado, a visão popular da doença é de que o cólera é um tipo qualquer de diarréia sem importância, com o qual não precisamos nos preocupar muito. Talvez por isso o cólera ainda esteja presente no Brasil, na década de 1990.

Mesmo quando se conhece muito bem o processo de transmissão de uma doença, como a aids, pode ser impossível deter o seu avanço por motivos sociais e culturais. No início do século, quando uma pessoa tinha febre amarela, as autoridades eram notificadas e ela era literalmente presa em um quarto, totalmente fechado com tela, para não poder passar a doença a outras pessoas.

Ninguém discutia se isso violava ou não os direitos da pessoa. Atualmente, ninguém pode propor que os doentes de aids sejam isolados ou sequer identificados, pois isso não seria correto.

Pode-se discutir se é correto que uma pessoa saiba que está com aids e oculte esse fato daqueles que estão à sua volta, em situações de risco (contato sexual, por exemplo).

Seria possível controlar a aids e impedir o aumento que observamos? Provavelmente sim. Mas isso talvez exigisse medidas antipáticas e uma conscientização popular de um tipo que se tem evitado.

Como no caso do cólera, as campanhas de prevenção da aids são “suaves”, nunca mostram os estragos horríveis que essa enfermidade causa nem divulgam as assustadoras estatísticas dessa doença no Brasil.

Apenas aqueles que conviveram com doentes em estágio avançado sabem de fato o que a aids provoca. Para os outros, continua a ser um risco obscuro de algo que talvez possa matar, mas que não amedronta, pois a população é “protegida” contra as informações sobre os sintomas e desenvolvimento da doença.

Existe uma distância entre o conhecimento e a aplicação desse conhecimento. Entre esses dois elos da Medicina preventiva, existem decisões e ações de âmbito político e governamental, que exigem recursos e interesse.

Mesmo quando há o conhecimento e existem verbas, a incompetência ou falta de interesse político pode ocasionar a morte de milhares de pessoas.

Não podemos ser excessivamente otimistas nem pessimistas. Por um lado, a situação atual do Brasil, sob o ponto de vista médico, é certamente melhor do que o dos países europeus no século XIX. Houve um avanço.

Por outro lado, não atingimos o nível atual dos países mais avançados. A falta de condições higiênicas, de alimentação adequada e mesmo de instrução da maior parte da população brasileira impede uma adequada prevenção de doenças transmissíveis.

Considerando-se o mundo, como um todo, também não se deve ser excessivamente otimista nem pessimista. Constatamos que houve avanços incríveis, quando comparamos a situação atual com a de um século atrás. Mas o próprio surgimento e disseminação da aids mostra que sempre existirão novos problemas contra os quais será preciso lutar.

ROBERTO DE ANDRADE MARTINS

Colaboração de:

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins
Maria Cristina Ferraz de Toledo
Renata Rivera Ferreira

Fonte: www.ifi.unicamp.br